Toda religião que perdura o faz porque responde a uma necessidade que não desaparece quando seus deuses se tornam inverossímeis. O erro recorrente dos críticos modernos é tratar a fé como um erro cognitivo, quando ela é, antes de tudo, uma estratégia adaptativa. Não nasce da ignorância, mas da exposição prolongada à instabilidade. Onde a vida é frágil, o sentido precisa ser robusto. E quanto mais arbitrário o mundo, mais rígidas tendem a ser as narrativas que o explicam.
A atração exercida pelas religiões antigas sobre sociedades já saturadas de mitos não se explica por seu exotismo, mas por sua austeridade. Elas prometiam menos prazer e mais disciplina. Menos consolo imediato e mais coerência a longo prazo. Num mundo em que os deuses haviam se tornado entretenimento ritual, surgia um tipo de divindade que exigia algo incômodo: constância. Essa exigência foi confundida, retrospectivamente, com profundidade moral.
A ideia de um deus que se interessa obsessivamente pelo comportamento humano não é uma elevação espiritual; é uma intensificação do controle. A vigilância divina antecipa, em forma mitológica, aquilo que os Estados modernos realizariam com meios burocráticos. Nada escapa ao olhar que tudo vê, nada é moralmente neutro, nada é apenas contingente. A vida inteira converte-se em matéria de julgamento.
Esse tipo de divindade não compete com outras porque seja mais verdadeira, mas porque é mais invasiva. Enquanto os deuses antigos exigiam rituais pontuais, o deus único exige o sujeito inteiro. Pensamentos, desejos, hesitações — tudo passa a ser relevante. A interioridade torna-se campo de batalha. Não surpreende que essa forma religiosa tenha sobrevivido à queda de impérios. Ela coloniza aquilo que os impérios não alcançam diretamente.
O interesse moderno por essas tradições costuma romantizar sua suposta superioridade ética. Mas o que se interpreta como elevação moral é, em grande parte, uma pedagogia do sofrimento. O valor não está na felicidade, mas na resistência. Não na harmonia com o mundo, mas na recusa dele. A vida boa não é a vida bem vivida, mas a vida corretamente suportada.
Quando essas narrativas são reinterpretadas filosoficamente, como ocorreu repetidas vezes ao longo da história, o que se faz não é purificá-las, mas torná-las socialmente reutilizáveis. O mito bruto, tomado ao pé da letra, torna-se inconveniente. Ele precisa ser traduzido em alegoria, psicologia ou metafísica. Não porque seja falso, mas porque se tornou impraticável. A alegoria é o modo civilizado de preservar aquilo que já não pode ser acreditado.
O problema é que, ao espiritualizar o mito, preserva-se sua estrutura normativa. A linguagem muda, mas a exigência permanece. O conflito entre o homem e uma instância superior reaparece como conflito entre razão e desejo, consciência e impulso, autenticidade e alienação. O vocabulário é novo; a tensão é a mesma. O indivíduo continua sendo convidado a travar uma guerra contra si mesmo em nome de um ideal abstrato.
A filosofia moral moderna herdou essa guerra interna e a proclamou universal. A ideia de que existe uma forma correta de vida, acessível a todos, independentemente das circunstâncias, é uma secularização direta do monoteísmo. Apenas substitui a obediência a Deus pela fidelidade a princípios. Mas princípios, como deuses, exigem sacrifícios — e raramente perguntam quem os pagará.
A promessa implícita dessas visões é sempre a mesma: se o indivíduo se alinhar corretamente com a ordem do mundo — seja ela divina, racional ou histórica —, o sofrimento encontrará justificativa. O que nunca se questiona é por que o sofrimento precisaria de justificativa. Talvez ele seja apenas um dado, não um problema a ser resolvido por narrativas redentoras.
O ceticismo radical começa quando se abandona a expectativa de reconciliação. Não entre homem e deus, nem entre sujeito e mundo, nem entre desejo e razão. O mundo não está em desordem; ele simplesmente não foi feito para acomodar nossas expectativas morais. A tentativa incessante de forçar essa acomodação produziu mais violência do que resignação.
Nesse sentido, as religiões não fracassaram. Elas cumpriram sua função com eficiência admirável. Produziram comunidades coesas, justificaram sofrimentos extremos e ofereceram um vocabulário para suportar o intolerável. O equívoco está em esperar delas — ou de seus sucedâneos seculares — algo que nunca prometeram: libertação.
O máximo que essas narrativas oferecem é anestesia simbólica. Elas não eliminam o caos; apenas o tornam narrável. E talvez isso seja tudo o que a maioria dos seres humanos jamais quis. Não a verdade, não a liberdade, mas uma história suficientemente convincente para atravessar a vida sem olhar diretamente para sua indiferença.
Sempre que um texto antigo abandona a narração impessoal e introduz um “nós”, não estamos diante de uma confissão espontânea, mas de uma técnica. Não é o sujeito que emerge; é o dispositivo retórico que entra em funcionamento. O pronome coletivo não acrescenta informação relevante, tampouco esclarece os fatos. Ele serve para outra coisa: criar a ilusão de proximidade e, com ela, uma obrigação tácita de confiança. O leitor não é convencido; é cooptado.
O testemunho, tão valorizado pela sensibilidade moderna, nunca foi garantia de verdade. É, no máximo, garantia de presença — e presença, por si só, nada prova. Pessoas estão presentes em todos os acontecimentos decisivos da história humana e quase sempre entendem mal o que presenciam. A convicção íntima de ter visto algo não protege ninguém do autoengano. Pelo contrário, costuma reforçá-lo.
A introdução súbita de uma voz que afirma “estávamos lá” cumpre uma função precisa: bloquear a dúvida antes que ela se formule. O leitor é convidado a aceitar o relato não porque ele seja coerente, mas porque questioná-lo pareceria indelicado. A dúvida passa a ser interpretada como desconfiança pessoal, não como exigência intelectual. Trata-se de um deslocamento sutil, porém eficaz, da crítica para o campo moral.
As religiões históricas não se estruturaram sobre provas, mas sobre relações de lealdade. Não exigem que se acredite em fatos, mas que se confie em narradores. A fé não é assentimento a proposições; é adesão a uma cadeia de vozes. O erro do racionalismo ingênuo foi imaginar que bastaria desmontar os enunciados para dissolver a crença. Mas crenças não sobrevivem porque são verdadeiras; sobrevivem porque organizam vínculos humanos.
A figura do acompanhante discreto — aquele que não protagoniza, mas legitima — é recorrente em toda construção de autoridade simbólica. Quem escreve não precisa dominar; basta enquadrar. Ao permanecer parcialmente invisível, o narrador preserva a aparência de neutralidade enquanto exerce controle decisivo sobre o sentido. A história, como sempre, é menos moldada por quem age do que por quem escolhe o que será lembrado.
A modernidade, que se imagina vacinada contra tais artifícios, apenas substituiu os personagens. Onde antes havia apóstolos, há especialistas. Onde havia testemunhas inspiradas, há sobreviventes, pacientes, usuários, identidades narrativas. O mecanismo é o mesmo: o relato pessoal converte-se em autoridade inquestionável, não porque seja mais verdadeiro, mas porque parece mais vulnerável. Questioná-lo soa cruel. E a crueldade tornou-se o pecado capital de uma cultura sem transcendência.
O apego contemporâneo à experiência vivida como critério último de verdade revela menos maturidade epistemológica do que desespero simbólico. Quando nenhuma visão de mundo consegue se impor de forma estável, o indivíduo recorre à própria biografia como âncora. Mas biografias são materiais instáveis. Elas mudam conforme a memória muda, conforme o vocabulário muda, conforme o clima moral do tempo muda.
Os textos antigos que continuam a nos inquietar não o fazem porque contenham verdades profundas, mas porque exploram com eficiência essa fragilidade humana. Eles oferecem enquadramentos duráveis. Não explicam o mundo; ensinam como suportá-lo. Essa utilidade prática explica sua longevidade muito melhor do que qualquer inspiração divina.
A investigação histórica que busca recuperar a “intenção original” desses textos parte de uma ilusão semelhante à religiosa. Supõe que, por trás das camadas de interpretação, exista um núcleo estável, acessível, capaz de resolver ambiguidades posteriores. O que se encontra, no entanto, é apenas outra camada. Não há origem pura, apenas versões mais antigas do mesmo problema.
O efeito desmoralizante da leitura crítica não reside na perda da fé, mas na constatação de que nunca houve um ponto de apoio externo à narrativa. A autoridade sempre foi interna ao texto, reforçada pela repetição, pelo hábito e pelo medo da exclusão. O “nós” não indica comunidade real; indica apenas a fronteira entre quem pertence e quem não pertence.
No fim, a pergunta decisiva não é quem esteve lá, mas por que ainda estamos aqui, lendo isso, procurando nesses vestígios um sentido que eles nunca prometeram fornecer. Talvez porque, mesmo cientes do artifício, continuemos dependentes dele. O ceticismo não nos liberta das narrativas; apenas nos impede de acreditar plenamente em qualquer uma delas.
Tornar-se cético não é um gesto heroico, nem um triunfo do espírito sobre a superstição. É, quase sempre, um acidente. Algo que ocorre quando a engrenagem simbólica que sustentava o mundo deixa de girar sem que outra esteja pronta para substituí-la. O cético não escolhe a dúvida; ele acorda nela, como alguém que percebe, tarde demais, que a casa em que vivia não tinha fundações. O erro mais comum é supor que essa condição produza liberdade. Na verdade, ela produz apenas lucidez suficiente para perceber o grau de servidão em que se viveu — e a impossibilidade de escapar completamente dela.
A crença religiosa, ao contrário do que imaginam seus críticos mais entusiasmados, raramente se baseia na ingenuidade intelectual. Ela se ancora, sobretudo, na necessidade humana de continuidade narrativa. Os deuses oferecem aquilo que a experiência comum se recusa a garantir: sentido retrospectivo e promessa prospectiva. Abandoná-los não elimina essa necessidade; apenas a desloca. Por isso, o mundo moderno está repleto de ex-crentes que continuam esperando salvação — agora sob a forma de progresso, ciência, emancipação ou terapia.
O ateísmo contemporâneo, quando militante, é apenas uma teologia negativa mal resolvida. Mantém intacta a estrutura mental da fé: a crença num fim último da história, a expectativa de redenção coletiva e a convicção de que a verdade, uma vez conhecida, produzirá efeitos morais desejáveis. A diferença é que, no lugar de Deus, instala-se a Humanidade — entidade ainda mais abstrata e certamente mais cruel, pois não pode ser responsabilizada por nada.
A desconfiança genuína não se dirige apenas às crenças herdadas, mas também às crenças adquiridas como antídoto contra elas. O cético que se contenta em negar o sobrenatural costuma fazê-lo para preservar intacta alguma outra ficção reconfortante. A mais persistente delas é a ideia de que os seres humanos aprendem com a experiência histórica. Nada na sucessão de catástrofes políticas, guerras religiosas e entusiasmos ideológicos autoriza essa esperança. O passado não ensina; ele apenas se repete sob novas justificativas morais.
A figura de Jesus, como tantas outras figuras fundadoras, sobrevive menos pelo que disse ou fez do que pelo que foi feito com ela. As tradições não se perpetuam porque são verdadeiras, mas porque são úteis. Elas oferecem esquemas interpretativos que reduzem a complexidade da experiência e tornam o sofrimento suportável. A utilidade, contudo, cobra um preço: exige adesão incondicional e pune a ambiguidade. É por isso que as figuras centrais das religiões, quando observadas de perto, produzem mais cegueira do que iluminação. Não porque escondam algo, mas porque concentram excesso de significado.
O erro recorrente do pensamento religioso — e de suas versões seculares — é confundir intensidade emocional com verdade ontológica. Experiências transformadoras são tratadas como revelações universais. A conversão individual converte-se em prova metafísica. No entanto, estados mentais não são janelas para a estrutura do mundo; são apenas eventos neurológicos interpretados à luz de narrativas disponíveis. Se essas narrativas fossem outras, a experiência seria a mesma, mas o significado atribuído a ela mudaria radicalmente.
É por isso que toda investigação honesta sobre a origem das crenças precisa começar não no ápice simbólico, mas nas margens. Não nos milagres, mas nos documentos. Não na revelação, mas na transmissão. O que sobrevive não é o acontecimento, mas o relato. E todo relato carrega a marca de quem o produziu, das circunstâncias em que foi produzido e das finalidades — conscientes ou não — que ele serviu.
A obsessão moderna pela autenticidade é, nesse sentido, profundamente anacrônica. Esperar dos textos antigos a transparência factual que exigimos de um relatório contemporâneo é desconhecer sua função original. Eles não foram escritos para registrar o que aconteceu, mas para organizar o que devia ser lembrado. A memória coletiva é sempre seletiva, e sua seleção obedece menos à verdade do que à sobrevivência.
Há uma ingenuidade persistente na tentativa de distinguir, de modo definitivo, entre fé e manipulação. As duas caminham juntas desde o início. Toda crença compartilhada exerce poder, e todo poder simbólico tende a se autopreservar. Isso não implica uma conspiração consciente, mas um processo evolutivo: as narrativas que mobilizam adesão emocional profunda são aquelas que permanecem. As outras desaparecem sem deixar vestígios.
Assim, quando se retorna aos textos fundadores não em busca de conforto, mas de compreensão, a decepção é inevitável. Não se encontra ali uma origem pura, mas um emaranhado de vozes, interesses e interpretações concorrentes. O que chamamos de tradição é apenas o resultado contingente de disputas esquecidas. E talvez seja essa constatação — mais do que qualquer dúvida metafísica — que torna o ceticismo irreversível.
Quando o fim não acontece, algo se quebra de forma mais silenciosa. Não é o mundo que entra em colapso, mas a confiança na própria espera. O cristianismo precisou aprender isso cedo. A geração que acreditava que veria o retorno iminente de Cristo morreu sem testemunhar nada além da continuidade banal do sofrimento. A escatologia não foi refutada; foi adiada. O adiamento tornou-se permanente, e a exceção converteu-se em norma. A partir daí, viver passou a significar habitar uma promessa em ruínas.
Esse estado — viver depois de um fim que não veio — é a condição psicológica da modernidade tardia. Herdamos expectativas grandiosas e instrumentos poderosos, mas não herdamos uma razão convincente para usá-los. O progresso, outrora inevitável, tornou-se incerto. A redenção histórica, antes garantida, transformou-se em slogan. O futuro continua a ser invocado, mas já não convence inteiramente nem mesmo os que o proclamam.
Paulo jamais concebeu essa situação. Sua fé exigia urgência. Um cristianismo sem fim iminente seria, para ele, uma contradição. No entanto, foi exatamente esse cristianismo diluído que triunfou: um sistema capaz de sobreviver à frustração de sua própria profecia central. Ao fazê-lo, ensinou ao Ocidente uma lição decisiva: uma crença não precisa cumprir suas promessas para dominar uma civilização. Basta estruturar seus desejos.
As ideologias modernas aprenderam bem essa lição. Cada fracasso é interpretado como etapa. Cada desastre, como confirmação. A promessa se afasta à medida que o caminho se alonga. O fim permanece sempre à frente, como miragem. E, como toda miragem, é mais poderosa à distância do que de perto.
O resultado não é esperança, mas exaustão. Uma humanidade cansada de esperar, mas incapaz de desistir da espera. A lucidez, quando surge, é breve e desconfortável. Ela sugere que talvez não haja conclusão, nem síntese, nem redenção — apenas continuidade. Essa ideia não inspira movimentos, nem revoluções, nem fé. Por isso é rapidamente descartada.
Gray não propõe substitutos. Seu ceticismo não é um novo sistema, mas uma recusa. Recusa-se a acreditar que a história tenha aprendido algo. Recusa-se a ver na tecnologia um antídoto para a natureza humana. Recusa-se, sobretudo, a transformar o sofrimento em etapa de um plano maior. Para ele, a condição humana não é um problema a ser resolvido, mas um fato a ser suportado.
O paulinismo, nesse sentido, foi uma recusa ainda mais radical — mas em direção oposta. Recusou-se a aceitar o mundo tal como é e apostou tudo em sua superação iminente. Essa aposta falhou, mas deixou rastros profundos. Vivemos entre eles. Cada vez que alguém fala em “momento decisivo da humanidade”, ecoa uma voz antiga. Cada vez que se promete que esta será a última crise antes da solução final, repete-se um gesto aprendido há dois mil anos.
Talvez o desencanto contemporâneo não seja sinal de decadência, mas de saturação. Saturação de promessas não cumpridas. Saturação de futuros que nunca chegam. Saturação de narrativas que exigem sacrifícios constantes sem oferecer descanso. Se há alguma sabedoria possível nesse cansaço, ela não aponta para um novo fim, mas para a aceitação da ausência dele.
Isso não nos salvará. Não nos tornará melhores. Não impedirá desastres. Apenas nos livrará de uma superstição persistente: a de que a história nos deve alguma coisa. Paulo acreditou que o mundo estava prestes a ser julgado. O mundo continuou. Nós acreditamos que ele precisa ser corrigido. Ele continuará também. A diferença é que já não podemos alegar surpresa.
Nada indica que aprenderemos a viver sem fins últimos. Mas talvez possamos, ao menos, reconhecer o custo de insistir neles. O erro que venceu moldou tudo à sua imagem. Sobreviveu às religiões, às ideologias e às críticas. Continua operando sempre que confundimos desejo com destino. O fim do mundo não veio. O que veio foi algo mais difícil de suportar: a necessidade de viver sem ele.
Há um tipo particular de conforto na ideia de colapso. Não o conforto da salvação, mas o da absolvição. Se tudo está condenado, ninguém é responsável. A escatologia cristã oferecia exatamente isso: um mundo tão corrompido que apenas sua destruição poderia fazer justiça. Paulo não precisava explicar por que a vida humana era tão marcada pela dor; bastava afirmar que ela estava prestes a terminar. O sofrimento não exigia solução, apenas resistência.
John Gray identifica nesse gesto um traço recorrente do pensamento ocidental: a tendência a transformar o desespero em narrativa. Quando a realidade se mostra opaca e hostil, inventa-se um enredo no qual essa hostilidade tem função. O colapso deixa de ser um fracasso e passa a ser um clímax. A catástrofe, nesse sentido, não é temida; é aguardada. Ela promete encerrar a confusão, simplificar o mundo, pôr fim à ambiguidade.
Paulo falava a homens e mulheres esmagados por impérios, doenças e hierarquias rígidas. A promessa do fim não lhes oferecia poder, mas dignidade. Não prometia que venceriam, apenas que o jogo seria interrompido. Essa é uma promessa sedutora, sobretudo para os que nunca foram convidados a ganhar. O apocalipse iguala todos no desastre, e essa igualdade negativa pode parecer justiça.
As versões modernas dessa lógica são menos explícitas, mas não menos eficazes. Quando se anuncia o colapso ambiental inevitável, a falência moral irreversível ou a extinção iminente da espécie, muitas vezes o tom não é apenas de alerta, mas de alívio. O futuro aterrador funciona como álibi. Se nada pode ser salvo, nada precisa ser cuidado. Se tudo está perdido, o fracasso deixa de ser pessoal.
Gray observa que o pessimismo contemporâneo raramente é genuíno. Ele não aceita a ausência de sentido; ele a dramatiza. Em vez de reconhecer que a vida humana sempre foi precária, prefere imaginar que estamos vivendo um momento excepcional, o último ato de uma peça cósmica. Essa excepcionalidade devolve importância a uma espécie que, no fundo, teme sua irrelevância.
O cristianismo paulino também era uma doutrina de exceção. O presente não era apenas ruim; era terminal. Essa percepção intensificava tudo: a fé, o ódio, a solidariedade, a exclusão. Quando o tempo é curto, não há espaço para nuances. A urgência elimina a tolerância. Essa dinâmica se repete sempre que uma crise é tratada como definitiva, e não como mais uma entre tantas.
Há uma ironia cruel nisso. As sociedades que mais falam sobre o fim são aquelas que mais investiram na ideia de controle. Planejamento, previsão, gestão de riscos — tudo isso pressupõe um futuro administrável. Quando esse futuro escapa, a reação não é humildade, mas pânico moral. O apocalipse surge como compensação simbólica para a perda da ilusão de domínio.
Paulo não oferecia controle algum. Oferecia submissão. Dizia: nada do que fizeres mudará o curso dos acontecimentos, exceto tua adesão a eles. O mundo acabará; resta escolher de que lado estarás quando isso acontecer. Essa estrutura permanece intacta nas escatologias seculares. Não importa o quão inevitável seja o desastre anunciado; sempre há uma ortodoxia a ser seguida, uma linguagem correta, um conjunto de gestos que sinalizam pertencimento aos “justos”.
O resultado é uma moralidade de trincheira. O mundo é dividido não entre os que compreendem e os que ignoram, mas entre os que aceitaram a narrativa e os que a resistem. Como no tempo de Paulo, a incredulidade não é vista como erro intelectual, mas como falha ética. Não acreditar torna-se uma forma de culpa.
Nada disso impede que o mundo continue. Ele continua, apesar das profecias, apesar das promessas, apesar das advertências. Continua de modo irregular, injusto e imprevisível. O que não continua é a paciência humana com essa continuidade sem sentido. Incapazes de aceitar a persistência do mundo, os homens insistem em anunciar seu fim.
Talvez o verdadeiro legado de Paulo não seja a fé cristã, mas a incapacidade ocidental de conviver com a duração. Com o fato de que a vida não se resolve, não se explica e não se encerra de maneira satisfatória. A escatologia foi uma resposta desesperada a essa constatação. Seu fracasso não a desacreditou; apenas a multiplicou.
A ideia de futuro, tal como herdada pela modernidade, não é uma descoberta racional, mas um resíduo teológico. Antes de Paulo, o tempo não precisava justificar-se. Ele passava, repetia-se, corroía tudo igualmente. A escatologia cristã introduziu uma exigência inédita: o tempo deveria responder por si mesmo. Deveria conduzir a algum lugar. Deveria culminar. A partir daí, viver passou a significar esperar — não no sentido trivial, mas metafísico. Esperar que o mundo se explicasse.
John Gray insiste que essa expectativa não é apenas ilusória, mas perigosa. Quando o futuro é investido de sentido moral, o presente torna-se descartável. Sacrifícios deixam de ser tragédias e passam a ser meios. Mortes tornam-se estatísticas provisórias. Catástrofes são toleradas como etapas necessárias. A crueldade, quando exercida em nome de um fim último, adquire um ar de virtude.
Paulo acreditava que o mundo estava condenado. Não havia como salvá-lo, apenas atravessá-lo. A destruição iminente relativizava todas as perdas. Esse desprezo pelo mundo não impediu a violência; apenas a tornou irrelevante. Se tudo estava prestes a desaparecer, nada precisava ser preservado. O mesmo raciocínio reaparece, secularizado, sempre que se declara que certas formas de vida são incompatíveis com o futuro da humanidade.
O problema não é prever desastres. Catástrofes existem e continuarão existindo. O problema é transformá-las em narrativa redentora. Quando o colapso deixa de ser um risco e passa a ser um capítulo necessário da história, ele se torna desejável. Há uma estranha excitação moral em anunciar o fim. Um alívio perverso em acreditar que a complexidade do mundo será reduzida a um julgamento final, ainda que simbólico.
O cristianismo primitivo viveu dessa excitação. Cada terremoto, cada fome, cada perseguição parecia confirmar que o fim estava próximo. Quando o fim não veio, a excitação precisou ser domesticada. O apocalipse foi empurrado para um horizonte indefinido. A espera tornou-se longa, mas não menos intensa. A história passou a ser lida como uma série de sinais, nunca como um processo sem direção.
A modernidade herdou essa leitura paranoica do tempo. Mesmo quando se declara pós-religiosa, continua à procura de sinais. Crises econômicas, colapsos ambientais, convulsões políticas — tudo é interpretado como prenúncio de um ponto de inflexão decisivo. O vocabulário muda, mas a estrutura permanece. Ainda se fala em “antes” e “depois”, em “ponto sem retorno”, em “momento decisivo da humanidade”. O apocalipse foi traduzido em linguagem técnica.
Gray observa que essa obsessão com o futuro não melhora nossa relação com o presente. Pelo contrário, ela a deteriora. Incapazes de aceitar a contingência, os homens projetam sobre o amanhã expectativas que o amanhã não pode cumprir. Quando essas expectativas falham, como sempre falham, a frustração se converte em raiva. O futuro, que deveria redimir, passa a acusar.
A escatologia cristã oferecia ao menos uma saída: o fracasso do mundo era compensado por uma promessa fora dele. As escatologias seculares não têm essa válvula de escape. Quando o progresso decepciona, não há para onde olhar. A esperança frustrada não se dissolve; ela se radicaliza. Exige mais sacrifícios, mais vigilância, mais pureza ideológica. O fim, sempre adiado, torna-se mais tirânico.
Paulo acreditava que a morte perdera seu poder porque seria abolida em breve. Essa crença permitia desprezá-la. Mártires podiam ser celebrados. O sofrimento adquiria valor. Hoje, sem a promessa da ressurreição, a morte voltou a ser absoluta. Ainda assim, continuamos a tratá-la como se fosse provisória, desde que ocorra em nome da causa certa. O paradoxo é cruel: rejeitamos a transcendência, mas mantemos sua lógica sacrificial.
Talvez o traço mais persistente do paulinismo seja a recusa em aceitar que nada nos espera. Que não há síntese final, nem reconciliação, nem ajuste de contas universal. Para Gray, essa recusa é compreensível, mas infantil. O desejo de sentido não cria sentido. O anseio por redenção não torna o mundo redimível. Persistir nessa expectativa é prolongar o sofrimento que ela promete curar.
Aceitar a ausência de finalidade não nos torna melhores, nem mais felizes. Apenas mais lúcidos. A história não caminha para lugar algum. Ela apenas acontece, de maneira desigual, violenta e indiferente. O futuro não é uma promessa; é uma repetição com variações. O erro de Paulo não foi acreditar no fim do mundo, mas acreditar que o mundo precisava de um fim para fazer sentido.
A conversão, no sentido paulino é uma fratura. Um colapso interior que torna a vida anterior irreconhecível, quase obscena. Paulo não propõe um aperfeiçoamento da existência humana; ele a declara inviável. Tudo o que veio antes é lixo, carne morta, erro. O homem convertido não é alguém que aprendeu algo novo, mas alguém que foi arrancado de si mesmo. Essa violência inicial nunca foi superada pelo cristianismo; apenas foi administrada.
John Gray insiste que as grandes crenças redentoras exigem esse gesto inaugural de aniquilação. Para que o futuro absoluto possa nascer, o presente precisa ser desqualificado. Nada do que existe basta. Nada do que somos merece continuar. A conversão não liberta; ela substitui uma prisão por outra, geralmente mais estreita, porém dotada de sentido. A liberdade prometida é sempre adiada, situada além da morte, além da história, além do mundo tal como é.
O fascínio de Paulo não está na coerência de seus argumentos, mas na intensidade de sua experiência. Ele não persuade; ele contagia. Não demonstra; afirma. Seu discurso não apela à razão, mas à exaustão. Dirige-se aos que já não suportam o peso de viver sem uma explicação última. Aos que experimentaram o fracasso, a doença, a culpa ou o vazio como algo intolerável. A esses, ele oferece uma narrativa total, capaz de reorganizar o caos interior ao preço da submissão completa.
Essa dinâmica não desapareceu. Apenas mudou de vocabulário. As ideologias modernas também exigem conversões. Não no sentido religioso, mas psicológico. Pedem que o indivíduo reconheça que viveu até então numa falsa consciência, numa alienação estrutural, numa ignorância moral. A partir daí, tudo se reordena. O passado torna-se erro, o presente torna-se luta, o futuro torna-se promessa. A semelhança com o esquema paulino não é acidental; é hereditária.
A conversão tem ainda outra função: ela protege o convertido da ambiguidade. O mundo, antes confuso e opaco, torna-se subitamente legível. O bem e o mal se separam com clareza brutal. Os salvos e os perdidos ocupam campos distintos. A dúvida, que antes corroía, agora é sinal de fraqueza ou tentação. Essa clareza é intoxicante. Em troca dela, o convertido aceita a perda de complexidade, de ironia, de hesitação — tudo aquilo que torna a vida humana suportável, mas intelectualmente instável.
Paulo não tolerava a indiferença. Os que não acreditavam eram inimigos, mesmo quando silenciosos. A neutralidade era impossível porque o tempo era curto. A urgência escatológica transforma qualquer desacordo em ameaça existencial. Essa lógica reaparece sempre que uma visão de mundo se apresenta como a última oportunidade antes do desastre final. Quem não adere não é apenas ignorante; é cúmplice do mal que se aproxima.
Gray observa que o humanismo secular herdou esse traço sem perceber. Ao declarar certas crenças ou atitudes como inaceitáveis para o futuro da humanidade, ele recria a divisão paulina entre os que estão do lado certo da história e os que serão varridos por ela. A história, novamente personificada, assume o papel que antes cabia a Deus. Ela julga, pune e absolve. Não há apelação possível.
A diferença é que, ao contrário do cristianismo primitivo, as escatologias modernas não admitem seu caráter mítico. Apresentam-se como científicas, racionais, inevitáveis. O fracasso, quando ocorre, é atribuído a desvios contingentes, nunca à estrutura da crença. O fim prometido é sempre adiado, mas jamais abandonado. Assim como os primeiros cristãos aprenderam a conviver com a ausência do retorno de Cristo, os modernos aprenderam a conviver com a ausência do progresso definitivo.
O custo psicológico dessa espera é elevado. Viver orientado para um futuro que não chega produz ressentimento, ansiedade e uma agressividade latente. A promessa não cumprida precisa ser defendida com mais fervor do que a promessa recente. Quanto mais o tempo passa, mais intolerável se torna a dúvida. A crença, para sobreviver, precisa se endurecer.
Paulo acreditava que o sofrimento era transitório. Que a dor, a doença e a injustiça eram sinais de um mundo prestes a ser substituído. Essa crença não eliminava o sofrimento; apenas o reinterpretava. Dava-lhe um lugar numa narrativa maior. Quando essa narrativa se rompe, o sofrimento retorna em estado bruto, sem explicação nem recompensa. O homem moderno herdou a dor, mas perdeu o enredo que a tornava suportável.
Talvez por isso as escatologias seculares sejam tão agressivas. Elas precisam compensar a ausência de transcendência com intensidade moral. Onde não há salvação garantida, há cruzadas intermináveis. Onde não há juízo final, há julgamentos constantes. O espírito de Paulo sobrevive menos na fé religiosa do que na recusa moderna de aceitar a finitude sem promessas.
Há crenças que sobrevivem não porque sejam verdadeiras, mas porque respondem a uma necessidade mais profunda do que a verdade. Entre elas, poucas foram tão fecundas quanto a convicção de que a história caminha para um desfecho redentor. A escatologia cristã, tal como formulada por Paulo, não foi apenas uma doutrina religiosa: foi um erro colossal, e precisamente por isso moldou o mundo. O erro de supor que o tempo humano possui direção, sentido e finalidade. O erro de acreditar que a injustiça acumulada da existência será compensada por um juízo final. O erro — talvez o mais persistente — de imaginar que o sofrimento tem um porquê.
Paulo não inventou o fim dos tempos. Herdou-o do judaísmo apocalíptico, saturado de derrotas políticas e humilhações históricas. O que ele fez foi mais radical: universalizou o fracasso. Transformou a frustração particular de Israel em destino da humanidade. Ao proclamar que o Messias já viera e que o mundo estava prestes a acabar, Paulo operou uma inversão decisiva. O futuro deixou de ser uma continuação do presente e tornou-se sua negação. A vida comum passou a existir apenas como intervalo — um tempo emprestado antes do colapso definitivo.
Nada disso se cumpriu. O mundo não acabou. Os mortos não ressuscitaram. O Cristo não voltou para separar os bons dos maus. O que permaneceu foi a expectativa frustrada, transmitida como herança cultural. As gerações seguintes ajustaram a doutrina, diluíram a urgência, espiritualizaram o apocalipse. Mas o núcleo permaneceu intacto: a ideia de que a história tem um sentido moral, e que esse sentido será revelado no fim.
John Gray observa, com razão, que as ideologias modernas são versões seculares dessa escatologia falhada. O cristianismo prometia o Reino de Deus; o Iluminismo prometeu o progresso; o marxismo prometeu a sociedade sem classes; o liberalismo promete um mundo governado por direitos universais e mercados racionais. Todas compartilham a mesma estrutura: um presente intolerável, um futuro redentor e um mecanismo — seja a graça, a razão ou a revolução — que garante a passagem de um ao outro. Quando falham, como sempre falham, não são abandonadas. São reformuladas.
Paulo acreditava sinceramente que o fim estava próximo. Essa crença não era metafórica nem simbólica. Era literal. Ele esperava estar vivo quando o mundo terminasse. Essa convicção moldava tudo: sua urgência, sua intolerância, sua indiferença às instituições existentes. Se o tempo estava se esgotando, não havia motivo para reformas graduais, nem para compromissos com a ordem estabelecida. A conversão que ele exigia não era moral, mas ontológica. Não se tratava de melhorar a vida; tratava-se de abandoná-la.
O paradoxo é que uma doutrina fundada na iminência do fim produziu uma civilização obcecada com o futuro. Ao contrário dos gregos, para quem o tempo era cíclico e a tragédia inevitável, os herdeiros de Paulo aprenderam a esperar. Esperar justiça. Esperar redenção. Esperar que o sofrimento fosse provisório. Essa espera não tornou os homens mais sábios, mas mais impacientes. Quando a salvação não veio do céu, tentaram arrancá-la da terra.
A modernidade não rompeu com o cristianismo; apenas trocou seus símbolos. Onde Paulo via o Cristo ressuscitado como garantia do fim, os modernos veem a ciência, a tecnologia ou a democracia como garantias de um futuro melhor. Mas o impulso é o mesmo: a recusa em aceitar que a condição humana não tem solução. Que não há ponto final onde as contas serão ajustadas. Que a dor não é um erro no sistema, mas o próprio sistema.
O ceticismo moderno, quando é honesto, não oferece consolo. Ele não promete libertação, nem progresso, nem iluminação final. Limita-se a constatar que a história humana é uma sucessão de tentativas fracassadas de escapar de si mesma. O cristianismo paulino foi uma dessas tentativas — talvez a mais influente. Ao prometer o fim do mundo, ensinou os homens a desprezar o mundo. Ao prometer uma vida futura, esvaziou esta de valor intrínseco. Ao anunciar uma justiça transcendente, tornou toleráveis injustiças muito concretas.
Nada disso exige que Paulo tenha sido um impostor. As ideias mais destrutivas quase sempre nascem da sinceridade. O problema não é a má-fé, mas a ilusão. E a ilusão central do paulinismo — de que a história caminha para um desfecho moral — continua operando, muito depois de sua base teológica ter se dissolvido. Vivemos entre os escombros de um apocalipse que nunca aconteceu, repetindo seus gestos, suas esperanças e seus fracassos, agora sem sequer o consolo da fé.
Poucos artistas tornam tão evidente a precariedade de nossas devoções quanto Morrissey. O simples ato de gostar dele já parece exigir uma espécie de estoicismo sentimental, como se o apreço fosse um fardo a ser carregado com a mesma resignação com que suportamos as imperfeições inevitáveis da vida moderna. Ao revisitar o período que verdadeiramente importa—até 1987, com a dissolução dos Smiths, e depois, talvez, até Vauxhall and I—percebemos que a admiração que nutrimos por ele é sempre acompanhada por um cansaço. Não um cansaço trivial, mas aquele exaurimento que surge quando reconhecemos, com relutância, que aquilo que nos formou já não nos acompanha.
Gostar de Morrissey é encarar, repetidas vezes, a deterioração de um mito que insiste em sobreviver à sua própria verdade.
Os seres humanos são movidos por mitos, não por doutrinas racionais. Morrissey, nesse sentido, opera como um mito particularmente incômodo: seu romantismo só funciona enquanto dissolução completa da fronteira entre artista e obra. Não há distância crítica possível, porque o próprio projeto estético dele rejeita essa separação. Os sofrimentos da juventude, o fascínio pela tristeza, a autopiedade narcísica — tudo isso não é apenas material para canções, mas o tecido de uma persona que exige nossa cumplicidade. Não se trata de arte que transcende o artista; trata-se de arte que o reproduz, intacto, com todas as suas arestas.
Por isso, a misantropia que aparece nas memórias e nas letras não pode ser descartada como mero artifício. Ela está entranhada na obra, como se a crueldade fosse um modo de tornar o mundo tolerável. O catálogo de alvos é vasto: imigrantes, grávidas, crianças, pacientes de hospital, banhistas felizes. Em qualquer outro artista, poderíamos diagnosticar ressentimento. Em Morrissey, trata-se de método: a recusa deliberada das virtudes modernas, a negação de uma fraternidade humana sempre proclamada, raramente sentida. Sua compaixão, quando aparece, é desviada para os mortos, os fracassados, os personagens literários, os animais cuja inocência é tanto uma condição biológica quanto uma fantasia moral.
Esse deslocamento afetivo revela algo essencial. Buscarmos salvação moral em figuras públicas é um erro tipicamente moderno, derivado da crença ingênua de que indivíduos podem encarnar a pureza que as instituições não entregam. Morrissey expõe esse erro porque sua obra sempre negou a própria ideia de redenção. Mesmo nos momentos de doçura — There Is a Light That Never Goes Out — existe a sombra de uma entrega que depende da aniquilação. A beleza é inseparável da morbidez. O amor, da renúncia. A vida, da recusa em aceitá-la.
Ainda assim, durante muito tempo, sua ambiguidade nos salvou. A autoironia, a teatralidade, o topete insinuante, a voz que oscilava entre ternura e desprezo — tudo isso mantinha um frágil equilíbrio. Havia graça na crueldade, havia humor no desespero, e a combinação produzia um tipo raro de beleza: aquela que nasce da contradição e se sustenta justamente porque nunca se resolve por inteiro. Essa dubiedade é que permitiu que continuássemos ao lado dele, mesmo quando o mundo parecia movido por uma crença crescente na pureza moral e na correção de conduta. Morrissey era o lembrete incômodo de que nem a arte nem a vida funcionam segundo regras tão simples.
Mas toda ambiguidade, quando esticada demais, finalmente rompe. Na fase tardia, seja qual for o nome que se queira dar a ela, o que era ironia tornou-se mofo. O frescor que um dia emanava da tensão entre o desprezo e a ternura evaporou-se, deixando apenas a rigidez de convicções que já não seduzem, apenas cansam. E o admirador — esse ser melancólico que insiste em revisitar as ruínas do próprio gosto — precisa agora admitir que a beleza que o tocava continua ali, mas cercada por zonas de sombra cada vez mais árduas de atravessar.
É nesse ponto que o dilema se torna inevitável: como continuar amando aquilo que, pouco a pouco, se degrada diante de nossos olhos? A crença no progresso — seja moral, estético ou biográfico — é apenas um consolo metafísico. Nada garante que artistas amadureçam. Nada assegura que evoluam. Nada impede que entrem em declínio. A suposição contrária é apenas mais um mito moderno. Morrissey, em sua franqueza brutal, talvez seja apenas um dos poucos que nos obriga a reconhecer essa verdade.
E, no entanto, há uma espécie de catarse possível nesse reconhecimento. Quando finalmente aceitamos que o artista não tem obrigação de corresponder às projeções que depositamos nele, algo dentro de nós se liberta. Abandonamos a busca infantil por heróis coerentes, compreendemos que a beleza que nos formou não precisa permanecer intacta para continuar sendo nossa. O que Morrissey foi — não o que é — segue vibrando no presente, porque a experiência estética não depende da integridade moral do criador, mas da intensidade com que nos atravessou.
O cansaço de gostar de Morrissey, então, transforma-se. Deixa de ser frustração e torna-se maturidade. Deixa de ser lamento e torna-se lucidez. Reconhecemos que a obra é finita, que o artista é falho, que a devoção é sempre arriscada. E, nesse instante, aprendemos algo que talvez o próprio Morrissey tentou nos ensinar desde o início: que a luz que nunca se apaga não ilumina o artista, mas sim o lugar que a arte ocupou dentro de nós.
A catarse não está no perdão nem no esquecimento. Está na aceitação plena de que é possível honrar o passado sem aprisioná-lo, e possível caminhar adiante com as ruínas sem desejar reconstruí-las.
E assim, cansados, lúcidos, mas de algum modo aliviados, deixamos Morrissey onde ele sempre esteve: não no pedestal impossível dos gênios imaculados, mas na zona cinzenta dos humanos que, por um breve e fulgurante período, conseguiram dizer algo verdadeiro demais para ser esquecido.
Entre terreiros, fazendas e bairros de Ipiaú, a memória de um sambador de cocos e cantador de Reis revela como a cultura popular resiste ao tempo, sustentada pela voz coletiva, pela fé e pela insistência em não deixar a tradição morrer
Por Samio Cássio*
A primeira coisa que se ouve quando se fala de Ipiaú não é o barulho do trânsito nem o apito distante de alguma fábrica inexistente. O que ecoa, para quem escuta com atenção, é um compasso antigo: o pé batendo no chão de terra, a palma da mão marcando o tempo, a voz puxando o verso que o coro responde. Essa cadência atravessou décadas, correu por terreiros, fazendas e bairros, e encontrou em um homem chamado Zaqueu — ou Mestre Zaqueu — um de seus principais guardiões.
Esta reportagem é um exercício de escuta. O que se conta aqui foi tecido pela memória coletiva de quem conviveu com Zaqueu no Cantinho do Céu, no bairro Euclides Neto e nas andanças do Terno de Reis. As falas foram preservadas em sua oralidade original, não como recurso estilístico, mas como gesto de respeito. Porque, em Ipiaú, a história sempre foi contada assim: de boca em boca, de canto em canto.
Um tempo em que a cidade cantava
Entre as décadas de 1960 e 1990, Ipiaú viveu um período de intensa efervescência cultural. O samba de coco, o Terno de Reis, as rezas coletivas, os cordões de caboclos das micaretas, o bumba-meu-boi e outras manifestações populares ocupavam o calendário e o cotidiano. Não eram eventos isolados, mas formas de convivência. O festejo fazia parte da vida comum.
O coco — manifestação cultural e estilo musical originário do litoral do Nordeste, com raízes indígenas e africanas — encontrava ali terreno fértil. Cantado em roda, marcado pelo ritmo do corpo e pela repetição coletiva, ele servia tanto à celebração quanto à memória. O Terno de Reis, inspirado na jornada bíblica dos três Reis Magos, cumpria função semelhante: percorria casas, fazendas e bairros, levando cantoria, devoção e pertencimento.
Hoje, grande parte dessas práticas se enfraqueceu. A juventude, atravessada por linguagens e ritmos contemporâneos, muitas vezes desconhece o que veio antes. Ainda assim, como lembram os mais velhos, o novo não precisa apagar o velho. Em Ipiaú, a cultura segue viva justamente nesse diálogo tenso entre permanência e mudança.
Zaqueu antes de ser Mestre
Zaqueu nasceu em 1918, na zona rural de Ipiaú, em uma região conhecida como Bom Sem Farinha, que à época integrava o antigo distrito de Rio Novo. O próprio território ainda buscava nome e forma: Ipiaú foi chamada de tudo um pouco antes de se fixar como município, reflexo de um espaço em constante transformação territorial e identitária.
Filho de Cesária de Jesus e Nelau Damião dos Santos, Zaqueu carregava uma herança indígena direta: seu avô era indígena. Essa ancestralidade, dizem os que conviveram com ele, talvez explique sua inclinação natural para o coco — ritmo coletivo, oral, marcado pelo corpo e pela memória. Não por acaso, todos os seus irmãos também eram sambadores. A música, ali, não era escolha individual, mas ambiente.
Mais tarde, Zaqueu se estabeleceu no bairro Euclides Neto, onde viveu por muitos anos. Foi ali que consolidou sua atuação como cantador de cocos, folião do Terno de Reis, rezador eventual e presença indispensável nas celebrações populares. Trabalhador da fazenda do senhor Valdomiro Barreto, dividia o tempo entre o labor diário e a vida cultural da comunidade.
Zaqueu nasceu em 1918, na zona rural de Ipiaú, em uma região conhecida como Bom Sem Farinha, que à época integrava o antigo distrito de Rio Novo. O próprio território ainda buscava nome e forma: Ipiaú foi chamada de tudo um pouco antes de se fixar como município, reflexo de um espaço em constante transformação territorial e identitária.
Filho de Cesária de Jesus e Nelau Damião dos Santos, Zaqueu carregava uma herança indígena direta: seu avô era indígena. Essa ancestralidade, dizem os que conviveram com ele, talvez explique sua inclinação natural para o coco — ritmo coletivo, oral, marcado pelo corpo e pela memória. Não por acaso, todos os seus irmãos também eram sambadores. A música, ali, não era escolha individual, mas ambiente.
Mais tarde, Zaqueu se estabeleceu no bairro Euclides Neto, onde viveu por muitos anos. Foi ali que consolidou sua atuação como cantador de cocos, folião do Terno de Reis, rezador eventual e presença indispensável nas celebrações populares. Trabalhador da fazenda do senhor Valdomiro Barreto, dividia o tempo entre o labor diário e a vida cultural da comunidade.
“Zaqueu do samba, da viola e do pandeiro”
Quem conta essa história com precisão afetiva é Dona Ilzete, conhecida como Zete, filha de Zaqueu. Em entrevista concedida em 5 de dezembro de 2025, ela desenha o retrato de um homem que era, ao mesmo tempo, pai, trabalhador e mestre da cultura popular.
“Meu pai era conhecido como Mestre Zaqueu, ou Zaqueu do samba, da viola e do pandeiro”, ela diz. Nas festas de Reis, era figura indispensável. Saía para cantar como folião do Terno de Reis e, muitas vezes, só voltava no dia seguinte, depois de percorrer casas e fazendas em longas jornadas de canto e devoção.
A música atravessava toda a família. Zaqueu e os irmãos participavam dos sambas de coco e dos ternos, e, na comunidade, todos se chamavam de “irmãos” nas cantorias. Era um parentesco construído pelo ritmo e pela convivência.
Dona Ilzete lembra também de um episódio que resume o caráter do pai. Quando ela era criança, um cigano a pegou no colo em tom de brincadeira. Zaqueu, ainda coberto de cacau do trabalho na roça, correu desesperado para defendê-la. “Ele era assim”, diz ela, “carinhoso, protetor, muito humano”. Zaqueu morreu em 2005, aos 86 anos.
O avô que fazia a festa acontecer
Alex Sousa, neto de Zaqueu, fala do avô como quem descreve um estado de espírito. “Alegria, força e tradição”, resume. No Cantinho do Céu e no bairro Euclides Neto, Zaqueu era a voz que animava as noites. Cantador do Terno de Reis, sambador de cocos, bastava ele começar a cantar e bater o pé no terreiro para a festa ganhar vida.
Zaqueu foi um dos primeiros moradores do bairro Euclides Neto e ajudou a formar a comunidade. Nas festas de Reis, segundo Alex, ele era o destaque final. “Sem ele, parecia que faltava alguma coisa.” Havia também a parceria sólida com Valdomiro, marcada por amizade e respeito mútuos.
Alex recorda ainda as tradições familiares: a criação de porcos, as festas de São João que reuniam o povo, as conversas longas. Confirma, sem hesitação, a ascendência indígena do avô. O legado, diz ele, permanece vivo não só na memória, mas no modo como a comunidade ainda se reconhece.
A turma de Zaqueu
Valdomiro Barreto, conhecido como Coveiro, é hoje o único vivo daquele tempo. Ele e o filho, Gilvando — o Gazo — guardam lembranças e uma responsabilidade. Valdomiro descreve Zaqueu como “parceiro de verdade”, alguém que cantava coco, Terno de Reis, chula, samba e tudo o que surgisse nas rodas. Zaqueu transitava entre casas, fazendas e bairros, sempre em busca do encontro musical.
Gazo fala com a emoção de quem herdou um compromisso. “Meu pai sentiu muito quando Zaqueu se foi. Ficou um tempo mais quieto, porque os dois eram parceiros de verdade.” Ele se lembra das palavras que ouviu ainda jovem: “Gazo, não deixe essa tradição cair, não. Entre mim e você, nós fazemos alegria. Eu estou indo, mas a tradição fica com vocês.”
Nos encontros, faziam de tudo: samba de roda, cantos de Reis, chulados. Contavam casos, lembravam das coisas antigas, riam muito. “Era felicidade de verdade”, diz Gazo. Onde Zaqueu chegava, levava paz, união e bom humor. “O pessoal logo dizia: ‘A turma de Zaqueu chegou!’”
Antes de morrer, Zaqueu deixou um pedido claro: que a tradição não acabasse, mesmo que fosse mantida apenas dentro de casa. Continuar, para eles, é uma forma de honra.
Mulheres da memória
Dona Carmelita, esposa de Valdomiro, completa o quadro. Ela lembra das rodas de samba que reuniam dezenas de pessoas, de Zaqueu tocando coco e samba com naturalidade, como quem respira. No Terno de Reis, recorda, os grupos percorriam longos caminhos levando cantoria e fé, fortalecendo laços de identidade comunitária.
O que fica
A memória coletiva, como lembra Maurice Halbwachs, é formada por lembranças individuais, mas se consolida socialmente. Cada pessoa guarda um ponto de vista, e é na soma deles que a história se sustenta. Jacques Le Goff vai além: a memória não é apenas herança, é também instrumento e objeto de poder.
Em um cenário em que narrativas populares são frequentemente marginalizadas, registrar essas vozes é um gesto de resistência. Zaqueu encontrou na música — especialmente no coco e no Terno de Reis — uma forma de expressão cultural e de fortalecimento comunitário. Entre as décadas de 1960 e 1990, teve papel decisivo na difusão do samba de coco em Ipiaú, ajudando a consolidar práticas que ainda hoje compõem a identidade do município.
O pé que batia no chão já não bate mais. A voz que puxava o verso silenciou. Mas, enquanto alguém repetir o refrão, enquanto uma roda se formar, enquanto houver quem diga “a turma de Zaqueu chegou”, a memória seguirá viva — não como nostalgia, mas como presença.
A memória coletiva, como lembra Maurice Halbwachs, é formada por lembranças individuais, mas se consolida socialmente. Cada pessoa guarda um ponto de vista, e é na soma deles que a história se sustenta. Jacques Le Goff vai além: a memória não é apenas herança, é também instrumento e objeto de poder.
Em um cenário em que narrativas populares são frequentemente marginalizadas, registrar essas vozes é um gesto de resistência. Zaqueu encontrou na música — especialmente no coco e no Terno de Reis — uma forma de expressão cultural e de fortalecimento comunitário. Entre as décadas de 1960 e 1990, teve papel decisivo na difusão do samba de coco em Ipiaú, ajudando a consolidar práticas que ainda hoje compõem a identidade do município.
O pé que batia no chão já não bate mais. A voz que puxava o verso silenciou. Mas, enquanto alguém repetir o refrão, enquanto uma roda se formar, enquanto houver quem diga “a turma de Zaqueu chegou”, a memória seguirá viva — não como nostalgia, mas como presença.
Nada revela mais sobre a natureza paradoxal do reconhecimento humano do que o momento em que ele finalmente chega. Poucos rituais contemporâneos condensam essa ironia com a clareza do Prêmio Nobel de Literatura, que há muito se converteu em uma espécie de canonização secular. Nele projetamos a expectativa de que uma vida inteira de trabalho encontre sua conclusão, como se o gesto simbólico da coroa encerrasse um percurso e justificasse todas as renúncias. Mas, como tudo o que é verdadeiramente humano, o ato de coroar está impregnado de ambivalência. A consagração muda o escritor menos pelo que afirma do que pelo que exige.
Jon Fosse, ao receber o Nobel em 2023, parece ter experimentado esse deslocamento com intensidade particular. Em vez de apenas júbilo retrospectivo, houve alívio — como se o prêmio encerrasse um ciclo que ele próprio não desejava continuar. “Heptalogia”, a obra mais longa que escreveu e que agora chega ao Brasil, representa não apenas um ápice literário, mas também o limite até o qual seu modo de existência como escritor podia ser sustentado. O texto surge quase como uma obra inconcebível após a fama, uma criação que só pôde existir em um momento anterior ao tumulto das expectativas.
Esse ponto é crucial: para Fosse, a escrita é inseparável da escuta —uma atitude de atenção rara, quase ascética, que pressupõe um tipo de silêncio interior que o mundo das celebridades conspira para destruir. Em entrevista, ele descreve o período pós-Nobel como um regime de interrupções contínuas. É significativo que a palavra usada por ele —interrupção— pertença tanto ao vocabulário do cotidiano quanto ao da metafísica. Pois, na verdade, o que se interrompe não é a rotina, mas o frágil processo pelo qual uma obra emerge. A criação literária, como a concebemos desde o romantismo, exige que o autor seja sujeito; no entanto, a fama exige que ele seja objeto.
Essa transmutação é uma das ironias mais persistentes da modernidade. Vivemos em sociedades que celebram indivíduos criativos enquanto fazem o possível para torná-los inacessíveis a si mesmos. A própria ideia de realização se desconecta da experiência íntima que a torna possível. O Nobel, longe de ser apenas um tributo ao passado, torna-se um vetor que reconfigura o futuro do escritor. Como diz Fosse, passa-se “de sujeito a objeto”. É um destino quase ritual: aquele que alcança o ápice é sacrificado à visibilidade.
Este tipo de narrativa ressoa profundamente. A crença no progresso —inclusive o progresso individual— é uma ilusão que projetamos no mundo para domesticar a contingência. Supomos que a vida criativa, se bem sucedida, levará a uma forma de repouso, a um ponto de chegada que justificará todos os esforços anteriores. Mas a lógica da existência humana é outra: aquilo que tomamos por conclusão não passa de deslocamento. A linha do tempo pessoal não culmina em sentido; apenas se converte em outra coisa, muitas vezes indesejada.
Fosse, que sempre escreveu a partir de zonas de silêncio, encontra-se agora transformado em produtor de discursos públicos, performances discursivas, justificativas a respeito de sua própria obra. Ele recusa a maior parte dos convites, mas até o ato de recusar consome tempo e energia. A celebridade lhe impõe uma nova economia psíquica: gerir, limitar, filtrar, afastar o excesso —como se estivesse constantemente podando ruídos para tentar resgatar algum fragmento de quietude interior, condição para que continue escrevendo.
Há quem veja nisso um drama trivial da vida artística, mas o fenômeno é mais revelador: mostra o quanto a sociedade contemporânea infiltra a lógica da exposição em todos os domínios. Ser reconhecido hoje não significa apenas ser lido ou apreciado; significa ser capturado por expectativas externas que se sobrepõem à própria obra. A literatura, nesse contexto, torna-se quase um subproduto do aparato de visibilidade que a cerca. E é por isso que “Heptalogia” —uma obra monumental escrita antes dessa avalanche— se converte em testemunho de um tempo que já não existe mais para seu autor.
No entanto, há também algo de profundamente humano no modo como Fosse responde à situação. Apesar das distrações, ele continua escrevendo: peças, uma novela, e agora o primeiro romance de uma nova trilogia. Isso não é sinal de superação, mas de continuidade —um conceito que frequentemente contrasta com a ideia ilusória de progresso. Continuar não é triunfar; é apenas persistir na atividade que dá forma à própria existência. A literatura de Fosse, marcada pela repetição, pelo silêncio e pelo despojamento, talvez já antecipasse essa condição: escrever não como promessa de transcendência, mas como forma de permanecer no mundo mesmo quando o mundo insiste em transformá-lo em outra coisa.
O caso de Fosse nos lembra que nenhuma consagração resolve a tensão fundamental entre o indivíduo e sua obra. A vida depois da coroação não é uma vida mais plena; é apenas outra vida, sujeita às mesmas ironias que afetam todas as biografias humanas. O escritor celebra, mas também lamenta; conquista o reconhecimento, mas perde parte da liberdade interior que o levou a escrever. Tal é a lógica do destino humano: tudo o que se obtém tem seu preço, e raramente sabemos calculá-lo antes que seja tarde demais.
Se existe sabedoria nessa história, ela não está na glória do Nobel, mas no desconforto que ele gera. Pois é desse desconforto —desse atrito entre o que desejamos e o que realmente ocorre— que se pode entrever a estrutura trágica da vida humana, uma estrutura que nenhuma narrativa de progresso é capaz de eliminar. Jon Fosse, ao reconhecer sua própria transformação de sujeito em objeto, apenas dá voz a uma verdade antiga: toda realização carrega em si o germe de sua perda. E talvez seja justamente na aceitação dessa ironia que o escritor reencontre seu silêncio, e nele, a possibilidade de continuar criando.
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