A modernidade ensinou-nos a duvidar das coisas. Confiamos no discurso, desconfiamos do silêncio; valorizamos o gesto grandioso, desprezamos a repetição modesta. Contudo, a verdade — se ainda é lícito usar essa palavra — raramente se revela no que é barulhento. Ela habita o que não se anuncia. E nisso, talvez, os objetos tenham nos compreendido melhor do que nós mesmos.
Uma xícara com a borda lascada pode carregar mais humanidade do que um romance inteiro de frases bem compostas. Nela está depositada a memória — não apenas como lembrança, mas como forma de vida sedimentada. É o que Nietzsche poderia ter chamado de um hábito da alma. Em seu uso diário, sem exaltação nem fanfarra, revela-se o que resta da autenticidade num mundo entregue à encenação.
A crítica ao sentimentalismo barato — ou pornografia emocional — não é uma recusa da emoção. É, antes, o reconhecimento de que o afeto genuíno exige tempo, hesitação, ambiguidade. Ao contrário da catarse instantânea prometida pela cultura de massas, a emoção verdadeira é desconfortável. Ela não se presta ao espetáculo porque não é redutível à fórmula. Ela exige a coragem do não dito.
A cultura contemporânea, porém, vive sob o império da transparência afetiva. A literatura, a música, o cinema — tudo parece concebido para produzir uma reação previsível, como se o valor de uma obra se medisse pela intensidade da lágrima que provoca. O que se perde nesse processo é o próprio espaço interior, onde a emoção se elabora de forma não-linear, onde o silêncio também é fala.
Talvez essa ânsia por comoção tenha origem no vazio de sentido. Um mundo desprovido de transcendência precisa dramatizar a imanência. Mas a tentativa de substituir o sagrado pela emoção produz apenas uma paródia do sagrado — algo que emociona sem transformar. A pornografia emocional é, nesse sentido, um sintoma de desespero espiritual.
Há, porém, uma resistência silenciosa. Está nos escritores que recusam o excesso. Em Tchekhov, o silêncio vale mais que a lágrima. Em Thomas Mann, a emoção infiltra-se como o vento sob a porta — imperceptível, mas real. Em ambos, há uma aposta no detalhe como portador de verdade. A colher no prato, o gesto repetido, a pausa entre duas palavras — são aí que se esconde o que a linguagem não pode dizer.
Isso nos obriga a repensar o próprio ato de escrever. Escrever não é manipular emoções. É oferecer um espaço onde elas possam acontecer. O bom escritor não se impõe como maestro de um concerto emotivo; ele se retira, como um anfitrião discreto, e deixa que o leitor descubra sozinho o que há de verdadeiro numa cena comum.
Essa retirada exige uma forma de humildade que é rara num tempo em que o narcisismo se tornou virtude. Exige também uma visão trágica da vida: o reconhecimento de que há dores que não se resolvem, afetos que se contradizem, momentos que passam sem redenção. E, sobretudo, exige a disposição de confiar no pequeno. Pois é no pequeno — nas xícaras, nos silêncios, nos gestos esquecidos — que o real se manifesta.
Ao fim, talvez reste apenas isso: uma recusa ativa à encenação. Não como gesto de pureza moral, mas como forma de resistência ontológica. Num mundo saturado de emoção performática, a contenção torna-se subversiva. E uma xícara lascada pode ser, sem exagero, o último reduto do humano.
por alguém que ainda prefere pensar devagar
A maioria das pessoas lê poesia como quem folheia panfletos: busca a mensagem, a lição, a moral da história. E quando não a encontra, acusa o autor de obscuro, hermético, irônico demais — como se ironia fosse um defeito. Esse impulso redutivo não é um problema de leitura, mas de formação espiritual: vivemos num tempo em que quase ninguém sabe mais escutar uma forma.
É nesse ambiente hostil à linguagem que a poesia de Paulo Leminski aparece com um brilho paradoxal. Brilho discreto, quase indiferente ao aplauso. Leminski não quer ser amado — quer ser ouvido. E para ouvi-lo, é preciso reaprender algo que nossa cultura há muito esqueceu: que a linguagem não serve apenas para dizer o mundo, mas para dizer-se mundo.
Reler Leminski hoje é reencontrar a presença do logos em estado bruto: a palavra antes da interpretação. Seus poemas curtos não são resumos; são proposições filosóficas na forma de murmúrio. Ao contrário da verborragia acadêmica ou da poesia inflacionada de sentimentos, ele escolhe a via mais difícil: dizer pouco, para que cada sílaba seja uma decisão ontológica. E isso, que deveria ser evidente, passa despercebido.
Tomemos o poema:
isso?Muitos lerão isso como um jogo. Outros, como um gracejo pós-moderno. Estão errados — ou melhor, estão cegos à gravidade do gesto. Esse poema não é uma brincadeira. É uma síntese existencial. Está ali o espanto primordial do ser lançado no tempo: a surpresa do nascimento, a violência da finitude, a velocidade da experiência e a impotência da linguagem. Leminski condensa em quatro palavras uma angústia milenar — e o faz com a leveza de quem sabe que, no fim, nenhuma angústia é original.
aqui?
já?
assim?
Sua poesia, ao contrário do que pensam os cultores da espontaneidade, não é produto do improviso. É fruto de uma inteligência cultivada com disciplina: há latim ali, há Zen, há Nietzsche, há Bashô, há concretismo e haicais, há erudição e sensibilidade histórica. Mas tudo isso é destilado até chegar ao essencial — ao que permanece quando a linguagem se esgota de si mesma.
O poeta que muitos chamam de "malandro" é, na verdade, um monge disfarçado. Um monge que se move por dentro do caos urbano com a tranquilidade de quem medita em trânsito. Seus poemas são rituais privados executados em público. Não há sentimentalismo, não há retórica de sofrimento, não há pedido de empatia. Há forma. E a forma, se bem compreendida, é sempre uma ética.
Por isso mesmo, não se pode ler Distraídos venceremos sem perceber a mudança de temperatura. Ali, Leminski já não é apenas o virtuose da concisão, mas o homem que retorna do sofrimento com uma nova técnica: a rarefação. Ele mesmo escreveu que buscava a “abolição da referência”, e isso não é escapismo — é alquimia poética. Transforma a dor em música silenciosa. Não a comunica, a transmuta. É o contrário da confissão.
Há um ponto aqui que vale sublinhar. A maior parte da poesia contemporânea oscila entre o sentimentalismo kitsch e o formalismo estéril. Leminski escapa disso com uma elegância brutal. É como se dissesse ao leitor: “sinta, mas não se derrame; pense, mas não se prenda à ideia”. Essa exigência formal vem de uma consciência aguda do tempo — de sua brevidade, de sua desordem, de sua indiferença. E é justamente por compreender o tempo que Leminski constrói uma poética da pausa. Um poema, nele, é sempre uma interrupção. Não no fluxo da linguagem — mas no automatismo do mundo.
Tampouco se engane com seu humor. O humor em Leminski é um índice da sua inteligência trágica. Ele sabe que a piada, quando bem feita, revela mais que mil diagnósticos sociológicos. Isso é algo que o leitor sério precisa reaprender: o riso não é inimigo da verdade. Muitas vezes, é sua única forma aceitável.
arte do cháEste poema é um tratado espiritual condensado. A cerimônia do chá, na tradição zen, exige atenção plena, gestos conscientes, economia absoluta. Leminski captura tudo isso em um convite informal — e termina com uma frase que parece banal: “ficou por isso mesmo”. Mas aí está a beleza. Tudo ficou por isso mesmo — e isso basta. Esse é o ponto em que a poesia toca a sabedoria: quando abandona o desejo de provar algo.
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
A trajetória final de Leminski, marcada pela decadência física, não apaga sua lucidez — a torna mais rara. Em seus últimos versos, a linguagem já não é mais instrumento de expressão, mas vestígio de algo que resiste ao colapso: a integridade da forma diante do caos interior.
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
Esse tipo de formulação não nasce do desespero, mas da aceitação. E aceitar não é resignar-se. É compreender que viver, como ele diz, “não tem cura” — e seguir escrevendo como quem doma o incurável com precisão cirúrgica.
Leminski não quis ser um modelo. E é por isso mesmo que se tornou um. Seu exemplo não está no que pensava, mas em como escrevia. Ele não propõe ideias: propõe gestos de linguagem. E esses, ao contrário das ideias, são difíceis de falsificar.
Hoje, sua obra cintila nas redes como se tivesse sido feita para isso. Mas é apenas um acaso — ou, como ele escreveu:
acaso é este encontroPode ser. Mas esse acaso, em Leminski, nunca é gratuito. É sempre um convite à atenção. E a atenção, nos dias que correm, é talvez a última forma legítima de resistência.
entre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que eu faço?
A frase de Cristina Peri Rossi — “desde criança tinha o desejo veemente de escrever contra vento e maré” — é, à primeira vista, uma expressão de teimosia artística, um ímpeto individual. Mas, ao olhar mais de perto, essa declaração revela uma postura mais profunda: a do escritor como insurgente. Não insurgente no sentido revolucionário clássico, de tomada de poder, mas no sentido mais sutil e duradouro: o de resistência contra a tentativa de aniquilar a memória.
Na tradição liberal ocidental, costuma-se celebrar a liberdade de expressão como direito inalienável. No entanto, raramente se reconhece o papel do escritor sob regimes autoritários: não como alguém que simplesmente deseja se expressar, mas como alguém que carrega a responsabilidade de preservar aquilo que o Estado deseja apagar — a lembrança da violência, a dignidade dos vencidos, a subjetividade dos silenciados.
A América Latina do século XX conheceu muito bem esse processo. As ditaduras militares que se espalharam pela região — no Chile de Pinochet, na Argentina da Junta, no Brasil do AI-5 e no Uruguai que forçou Peri Rossi ao exílio — não foram apenas projetos de dominação política. Foram também máquinas de esquecimento. Como todo projeto totalitário, essas ditaduras entendiam que o controle da memória era uma forma superior de poder. Apagar, manipular ou reescrever o passado era tão essencial quanto reprimir o presente.
Cristina Peri Rossi, Leila Guerriero, Beatriz Sarlo: nomes de mulheres que se colocaram contra esse processo de apagamento. A literatura, em suas mãos, não é um reflexo do real nem uma fuga dele — é um campo de disputa. Guerriero, ao mergulhar no testemunho de Silvia Labayru, torturada na Argentina, não apenas reconstrói um episódio histórico: ela reabre uma ferida que muitos prefeririam manter cauterizada. Sarlo, por sua vez, não nos oferece respostas, mas exige que enfrentemos as contradições entre a memória e a história — pois, como ela bem diz, “nem sempre a história consegue acreditar na memória”.
Essa distinção é fundamental. A história, em sua forma acadêmica e institucional, busca provas, evidências, cronologias. Já a memória é vivida, fluida, frequentemente incômoda. A memória dos que sobreviveram à tortura, ao desaparecimento de filhos, ao exílio, não se encaixa nas narrativas reconfortantes de reconciliação nacional. Por isso, tende a ser descartada ou relativizada. No Brasil, por exemplo, onde nenhuma comissão da verdade resultou em punições e onde autoridades atuais questionam os horrores da ditadura, o esquecimento é quase uma política de Estado.
Para um pensador secular como eu, que rejeita utopias políticas e desconfia de qualquer teleologia da história, a obra desses escritores é uma forma de verdade mais profunda do que a historiografia pode oferecer. Porque ela não tenta organizar o passado em nome de um futuro melhor. Ao contrário: ela nos mostra que o passado não passa. Ele insiste. Ele sangra. Ele se infiltra no presente — seja na fala de um presidente que nega a tortura, seja no silêncio de uma sociedade que prefere não lembrar.
E aqui voltamos à figura do escritor como insurgente. Em um mundo onde os horrores do século XX são constantemente reescritos em nome da estabilidade, da paz ou do progresso, o verdadeiro gesto radical não é propor um novo sistema político — é lembrar. Recontar. Escrever, contra vento e maré.
Cristina Peri Rossi escreveu durante o exílio, quando o Estado queria que ela desaparecesse. Guerriero ouve vozes que o poder preferiria esquecer. Sarlo questiona a própria possibilidade de construir uma história verdadeira a partir de uma memória conflitante. Essas mulheres não escrevem por nostalgia ou heroísmo. Escrevem porque sabem que o esquecimento é a forma mais insidiosa de violência. E porque sabem que, em última instância, a luta pelo passado é também uma luta pelo presente.
Talvez o mais perturbador seja que a repressão, mesmo derrotada, continua vencendo se consegue fazer com que se esqueça. Contra isso, resta apenas a literatura — não como monumento, mas como ruína viva, como ferida aberta, como insistência.
Essas autoras estão sendo publicadas no Brasil. Procure por suas obras.
A história da leitura é também a história do ser humano tentando escapar da condição humana. No gesto silencioso de quem abre um livro há, frequentemente, um desejo não de compreender o mundo, mas de abandoná-lo — ou, no máximo, de torná-lo suportável. A leitura foi, por séculos, uma das poucas formas aceitáveis de alienação — um meio respeitável de esquecimento. Hoje, porém, esse esquecimento se automatizou.
Durante milênios, os seres humanos se dedicaram à tarefa impossível de reter conhecimento. A memória falha, os livros se perdem, as bibliotecas queimam. A figura do erudito, consumido por textos, tentando abarcar o mundo com os olhos, não é mais do que a ilustração melancólica de nossa impotência diante do tempo. Ainda assim, por um breve momento da história — um interlúdio entre a invenção da imprensa e o surgimento da internet — a leitura profunda foi tida como virtude. Uma forma de alcançar algo que se aproximava do sentido. Isso foi uma ilusão.
A inteligência artificial revela essa ilusão com clareza brutal. As máquinas leem mais rápido, mais profundamente (se profundidade for reduzida à extração de padrões), mais consistentemente. Se o objetivo da leitura fosse puramente informacional, os humanos estariam agora obsoletos. Mas a leitura nunca foi apenas isso — embora a maior parte da atividade humana sempre tenha fingido que era.
Ao contrário do que os otimistas tecnológicos afirmam, a IA não ameaça o ideal humanista da leitura — ela o torna visível como mito. O sujeito que lê “tudo”, que conhece o cânone, que lembra cada verso de Spenser ou cada traço de Joyce, nunca existiu fora da ficção acadêmica. A IA não substitui esse leitor ideal: ela o desmascara. O que ela nos força a admitir é que a maior parte do que chamamos de conhecimento sempre foi transitório, superficial, insustentável.
Mas, nesse reconhecimento, há uma liberdade. Ao nos liberar da pressão de acumular, a IA pode nos permitir — paradoxalmente — uma relação mais humana com os livros. Se aceitarmos que não seremos bibliotecas ambulantes, podemos retornar ao que a leitura já foi: uma experiência finita e falível, marcada pelo tempo, pela repetição, pela perda. A beleza da leitura não está na completude, mas na incompletude. Lemos mal, esquecemos, distorcemos — e é nisso que reside a marca do humano.
O verdadeiro perigo da leitura automatizada não é que percamos o acesso aos textos, mas que passemos a tratá-los como descartáveis. Se o texto é apenas um trampolim para outro produto — um resumo, um vídeo, uma sinopse interativa — ele deixa de ser um fim e passa a ser um meio. O livro deixa de ser lugar de repouso e se torna esteira de produção. Isso não é apenas uma mudança cultural: é uma transmutação da própria ideia de conhecimento.
No fim, não será a IA que decretará a morte da leitura, mas o fato de que os humanos deixarão de ver valor em ler. A máquina lerá por nós. Nós, talvez, passemos a ouvir o que ela leu. Ou nem isso.
Talvez reste, para alguns poucos, o prazer secreto de se perder num texto inútil, de reler por puro cansaço, de esquecer metade do que se leu e lembrar de uma frase no momento preciso em que ela não resolve nada. Esses serão os últimos leitores. Não melhores, não superiores — apenas sobreviventes de uma prática que já foi uma forma de fingir que éramos mais do que animais que passam.
Durante muito tempo, a leitura foi um ato quase invisível, íntimo, insuspeito. Uma pessoa lendo em um banco de praça — um romance barato, um jornal velho, uma biografia de presidentes mortos — era apenas isso: uma pessoa lendo. Sem curadoria, sem audiência, sem performance. Ler era ato de interioridade: o que importava era o silêncio do olho que roçava a linha, não o que os outros achariam do que se lia. A leitura acontecia como uma espécie de respiração da alma — contínua, ritmada, invisível.
Essa era, no entanto, uma leitura ancorada num mundo em que a informação ainda obedecia à forma do livro. No Parêntese de Gutenberg, como diria um teórico qualquer, o livro era o dispositivo central de transmissão de saber, e a leitura era o ato solene de ingressar no mundo das ideias. Hoje, esse parêntese está se fechando — não com um ponto final, mas com uma cacofonia de hiperlinks, recomendações algorítmicas e feeds infinitos. E com ele se fecha uma certa ideia de sujeito leitor: lento, reflexivo, solitário.
No lugar desse leitor antigo, surge o leitor pós-moderno, moldado pelo atrito constante entre atenção e distração. Ele lê enquanto espera o micro-ondas apitar, enquanto ouve um podcast sobre produtividade, enquanto escapa do peso de um dia inútil rolando textos semi-informativos no Substack ou ouvindo o resumo de um livro sobre o Estoicismo narrado por um coach no Spotify. O novo leitor não lê: ele absorve, ele se atualiza, ele consome conteúdo — e o faz sob a vigilância constante das notificações.
Eu não lamento o fim de uma "tradição ocidental" que nunca existiu fora dos compêndios escolares. Observo, com olhar clínico, a mutação do sujeito da leitura como parte da reconfiguração geral da cultura. Para a direita, o declínio da leitura tradicional é sinal do fim da civilização. Para a esquerda crítica — não aquela anestesiada por TikTok progressista, mas a que ainda pensa — trata-se da transformação de uma forma histórica da leitura em outra, ainda informe, ambígua, contraditória.
Eis a verdade: nunca lemos tanto — mas nunca lemos tão mal. A quantidade de texto em circulação hoje é incalculável, mas sua função é cada vez mais instrumental: ler para clicar, para julgar, para compartilhar indignação, para reforçar convicções. O texto perde profundidade e vira interface. A leitura, antes jornada, vira atalho.
Há, claro, resistências. Há ainda quem leia como quem cava um túnel: lentamente, contra a superfície, buscando luz no fundo. Mas são poucos. A IA, por sua vez, entra nesse cenário como uma espécie de golem leitor. Não sente, não cansa, não esquece. Lê tudo, sintetiza tudo, responde tudo. Os Cowens do mundo agora escrevem para serem lidos por máquinas — máquinas que talvez nos leiam melhor do que nós mesmos. Que saibam mais sobre nosso estilo do que nossos amigos. Que poderão, no futuro, escrever nossa autobiografia melhor do que nós jamais conseguiríamos.
E aqui eu preciso parar para perguntar: o que resta do humano na leitura mediada por IA? A resposta não é simples. Há algo de fascinante na possibilidade de ter à disposição um leitor ideal — incansável, atento, gentil. Mas há também algo de profundamente melancólico nisso: saber que os grandes textos que moldaram o espírito humano — de Tolstói a Ferrante, de Joyce a Clarice — podem se tornar apenas matéria-prima para resumos otimizados.
No entanto, resistir à mutação é inútil. O remix chegou à literatura, como chegou à música e ao cinema. Ler será, cada vez mais, editar. Adaptar. Pular. Reordenar. Compartilhar. Uma leitura feita a partir de prompts, de pedaços, de filtros. O leitor do futuro será um leitor-produtor — um hacker da linguagem, um DJ da interpretação.
Mas isso não precisa ser o fim da leitura. Pode ser o começo de outra coisa. Insisto: a leitura não morre, ela muda de forma. Cabe à esquerda crítica não apenas lamentar o que se perde, mas entender o que se ganha. E, sobretudo, lutar para que a nova ecologia da leitura não seja um instrumento de adestramento, mas de libertação. Que a IA seja não um pastor eletrônico, mas uma ferramenta para aprofundar o pensamento.
No fim, o que você lê — e por quem — nunca foi uma questão neutra. É uma questão política. E o futuro da leitura será aquilo que fizermos dele: distração ou despertar, alienação ou insurgência.
Essa era, no entanto, uma leitura ancorada num mundo em que a informação ainda obedecia à forma do livro. No Parêntese de Gutenberg, como diria um teórico qualquer, o livro era o dispositivo central de transmissão de saber, e a leitura era o ato solene de ingressar no mundo das ideias. Hoje, esse parêntese está se fechando — não com um ponto final, mas com uma cacofonia de hiperlinks, recomendações algorítmicas e feeds infinitos. E com ele se fecha uma certa ideia de sujeito leitor: lento, reflexivo, solitário.
No lugar desse leitor antigo, surge o leitor pós-moderno, moldado pelo atrito constante entre atenção e distração. Ele lê enquanto espera o micro-ondas apitar, enquanto ouve um podcast sobre produtividade, enquanto escapa do peso de um dia inútil rolando textos semi-informativos no Substack ou ouvindo o resumo de um livro sobre o Estoicismo narrado por um coach no Spotify. O novo leitor não lê: ele absorve, ele se atualiza, ele consome conteúdo — e o faz sob a vigilância constante das notificações.
Eu não lamento o fim de uma "tradição ocidental" que nunca existiu fora dos compêndios escolares. Observo, com olhar clínico, a mutação do sujeito da leitura como parte da reconfiguração geral da cultura. Para a direita, o declínio da leitura tradicional é sinal do fim da civilização. Para a esquerda crítica — não aquela anestesiada por TikTok progressista, mas a que ainda pensa — trata-se da transformação de uma forma histórica da leitura em outra, ainda informe, ambígua, contraditória.
Eis a verdade: nunca lemos tanto — mas nunca lemos tão mal. A quantidade de texto em circulação hoje é incalculável, mas sua função é cada vez mais instrumental: ler para clicar, para julgar, para compartilhar indignação, para reforçar convicções. O texto perde profundidade e vira interface. A leitura, antes jornada, vira atalho.
Há, claro, resistências. Há ainda quem leia como quem cava um túnel: lentamente, contra a superfície, buscando luz no fundo. Mas são poucos. A IA, por sua vez, entra nesse cenário como uma espécie de golem leitor. Não sente, não cansa, não esquece. Lê tudo, sintetiza tudo, responde tudo. Os Cowens do mundo agora escrevem para serem lidos por máquinas — máquinas que talvez nos leiam melhor do que nós mesmos. Que saibam mais sobre nosso estilo do que nossos amigos. Que poderão, no futuro, escrever nossa autobiografia melhor do que nós jamais conseguiríamos.
E aqui eu preciso parar para perguntar: o que resta do humano na leitura mediada por IA? A resposta não é simples. Há algo de fascinante na possibilidade de ter à disposição um leitor ideal — incansável, atento, gentil. Mas há também algo de profundamente melancólico nisso: saber que os grandes textos que moldaram o espírito humano — de Tolstói a Ferrante, de Joyce a Clarice — podem se tornar apenas matéria-prima para resumos otimizados.
No entanto, resistir à mutação é inútil. O remix chegou à literatura, como chegou à música e ao cinema. Ler será, cada vez mais, editar. Adaptar. Pular. Reordenar. Compartilhar. Uma leitura feita a partir de prompts, de pedaços, de filtros. O leitor do futuro será um leitor-produtor — um hacker da linguagem, um DJ da interpretação.
Mas isso não precisa ser o fim da leitura. Pode ser o começo de outra coisa. Insisto: a leitura não morre, ela muda de forma. Cabe à esquerda crítica não apenas lamentar o que se perde, mas entender o que se ganha. E, sobretudo, lutar para que a nova ecologia da leitura não seja um instrumento de adestramento, mas de libertação. Que a IA seja não um pastor eletrônico, mas uma ferramenta para aprofundar o pensamento.
No fim, o que você lê — e por quem — nunca foi uma questão neutra. É uma questão política. E o futuro da leitura será aquilo que fizermos dele: distração ou despertar, alienação ou insurgência.
Comecemos pelo óbvio: escrever bem é uma arte — e como toda arte, exige muito mais do que a triste soma de regras gramaticais e fórmulas estilísticas. Exige alma. Exige visão. E — me perdoem os coachs literários de Instagram — exige mundo.
Sim, é verdade: o sujeito que acha que escrever bem é meter uma vírgula onde “manda a norma culta”, seguido de um advérbio elegantemente pomposo, geralmente também acredita que política é sobre “bons gestores” e que Camus é um coach da resiliência emocional. Estamos falando de um problema de repertório, claro. Mas também de um problema mais profundo: uma recusa em compreender o que é linguagem.
A linguagem não é um espelho cristalino da realidade. Não é neutra. Não é uma vitrine de palavras sofisticadas nem um desfile de aforismos de LinkedIn. A linguagem é uma faca. É instrumento e violência, é escolha e silêncio. É política pura — e disso, o pessoal que vive colecionando frases do Cortella e parágrafos do Pondé ainda não entendeu nada.
Veja: vivemos numa era em que boa parte da classe média letrada (essa triste massa ressentida que acha que cultura é sinônimo de bons modos) cultiva um fetiche obsceno pela estética “limpa”. O texto bom é o “bem escrito”, e o “bem escrito” é o que soa acadêmico, objetivo, impessoal — ou seja, mortiço, seco, esvaziado de qualquer tensão.
Essa gente não leu Bakhtin, nem vai ler. Não entende que há vozes, há embates, há polifonia — e que o romance, como forma, é uma arena de confronto entre discursos sociais. Preferem acreditar que Machado era um elegante cronista da alma humana, quando na verdade era um sabotador de sentidos, um destruidor sutil de certezas, um prosador de veneno lento.
O leitor conservador (de esquerda ou de direita — o conservadorismo estético é um vírus multiespectro) exige clareza, exige coerência, exige o “português correto”. Ele teme o erro, o tropeço, o exagero. Pois bem: que vá se tratar, porque literatura, quando é grande, erra de propósito.
Só existe um motivo para escrever literatura hoje — e não é para “comunicar melhor” nem “expressar sentimentos”. O único motivo válido é o enfrentamento. O enfrentamento com a linguagem, com a tradição, com a história, com os clichês.
Clichês, aliás, não morrem à toa. Morrem de excesso de uso. Mas também vivem — e às vezes são como ervas daninhas. Você os remove de um trecho, e eles reaparecem no parágrafo seguinte, mais resilientes, mais adaptados. O clichê é uma espécie que sobrevive por adequação — mas cabe ao escritor tratá-lo com desconfiança. Ou ironia. Ou perversidade.
Não se escreve literatura apenas para dizer algo bonito. A boa prosa não é aquela que impressiona pelo momento-a-momento, mas a que serve a um projeto — estético, político, existencial. E o projeto, aqui, não é a moral da fábula. É o modo como o texto configura o mundo que propõe. A prosa não é uma vitrine: é uma estrutura viva que reage às forças da própria narrativa.
Por isso a prosa rebuscada pode ser genial — e pode ser um lixo. Depende do quê? Do uso. Da intenção. Da coerência interna. Quem acha que escrever bem é “evitar adjetivos” ou “escrever como Hemingway” deveria ser proibido de usar teclado. Há personagens que só podem existir se falarem torto. Há narradores que só fazem sentido se se encharcarem de metáforas ruins. Há cenas que exigem, sim, uma cacofonia barroca — e, em outros momentos, uma secura documental.
A exigência de “beleza” constante na prosa literária é coisa de quem confunde romance com concurso público.
Outro ponto crucial: quantidade de leitura não é sinônimo de repertório. Há quem leia cinco romances por mês e, mesmo assim, escreva como redator de panfleto de farmácia. Não porque seja burro, necessariamente, mas porque só lê variações de si mesmo.
A bolha do best-seller de nicho é uma armadilha. A bolha do cânone também. A prosa precisa de atrito, de fricção, de contraste. Precisa do ridículo, do estranho, do ruim que é bom e do bom que parece ruim.
Sim: Joyce escreveu mal de propósito. Clarice é incompreendida por ser densa, mas também porque às vezes é tosca, e essa tosquice é parte do jogo. Raduan é minimalista porque o projeto pede — e mesmo assim seu minimalismo é febril, cheio de tensão.
A maior tragédia da formação literária brasileira é que muita gente lê Machado, mas ninguém lê os parágrafos errados dele — os truncados, os indecisos, os exasperados. Preferem citar o “ao vencedor, as batatas” e esquecem o cinismo ácido que perpassa tudo.
Hoje, qualquer adolescente com acesso à internet consegue pedir para um robô escrever um texto “bem escrito”. Isso é o triunfo da mediocridade sintática. E é exatamente por isso que a literatura precisa cada vez mais de ruído, falha, erro e fratura.
O que diferencia uma boa prosa de um bom parágrafo? A capacidade de sustentar um projeto. A boa literatura não é uma coleção de frases sublinháveis, mas uma arquitetura simbólica onde até os clichês têm função.
Se você quer mesmo escrever bem, comece parando de tentar escrever bem. Escreva de acordo com o que o seu projeto pede. E se você não tem projeto, talvez você não esteja escrevendo literatura — esteja apenas tentando impressionar uma plateia imaginária de professores de redação.
Todo grande prosador é, no fundo, um sabotador da linguagem. Sabe usar o lirismo — e sabe ironizá-lo. Sabe apelar ao clichê — e depois desmontá-lo. Sabe parecer feio — e ser genial.
A pior prosa é a que quer apenas agradar. A melhor é a que se arrisca a desagradar, se isso fizer parte da coerência de seu mundo narrativo.
Em tempos de inteligência artificial e literatura pasteurizada, o maior ato de resistência é escrever algo que não cabe numa planilha, que não serve para citação, que não funciona como tuíte.
Ou, em outras palavras: escreva como se a linguagem ainda importasse. Porque ela importa.
“A fantasia não é um refúgio: é o lugar onde a realidade se despe da ilusão do poder.”A pergunta não é por que a direita se sente em casa na literatura fantástica — mas por que ela acredita ser a única moradora legítima desse castelo simbólico.
Quando um político ou bilionário se vê num espelho feito de mitos, espadas e reis antigos, não está sonhando: está legitimando uma ordem que o beneficia. A fantasia — esse território fértil, desmesurado, profundo — tornou-se o playground simbólico de quem quer restaurar o passado, mas apenas o passado que lhe convém.
Porém, o erro da esquerda, desde o século XIX, foi abandonar esse campo. Deixou que a fantasia se tornasse instrumento de restauração, quando deveria ser o laboratório da utopia.
A direita ama a fantasia porque ali encontra uma ilusão de ordem natural: reis justos, linhagens puras, distinções inatas entre os seres — elfos superiores, orcs degenerados, magos sábios, camponeses mudos. Tudo isso alivia o pânico contemporâneo da indeterminação. A fantasia oferece clareza onde o mundo oferece ambiguidade.
Mas toda clareza é suspeita.
Porque a verdade da fantasia não está no que ela afirma, mas no que ela denuncia sem querer. A estética da nobreza, a beleza do herói, a ordem do castelo — tudo isso, visto de fora, é um cemitério simbólico onde enterramos a complexidade do real.
Quando Ursula Le Guin escreve Terramar, ela não está inventando uma mitologia alternativa. Está reescrevendo o mito a partir de outra ótica: o mago não conquista, aprende. O poder não se impõe, equilibra. O herói não vence, abdica.
Esse é o gesto que a direita não compreende — e que a esquerda esqueceu de reivindicar.
A fantasia verdadeira não é sobre tronos, mas sobre mapas. Ela desenha mundos. E o mapa de Tolkien, por mais belo, é um mapa que exclui: não há camponesas que governem, não há mestiçagens simbólicas, não há ambiguidades morais fora de Gollum.
A direita ama esse mapa porque ele é familiar: há um lugar para cada coisa. Mas a fantasia pode traçar outros mundos — com margens móveis, mares que pensam, cidades que nascem em coletivos.
N.K. Jemisin faz isso. Nnedi Okorafor também. Le Guin, Octavia Butler, Naomi Mitchison. Mulheres e autores racializados, queer, exilados — todos reescrevendo o espaço mítico com novos centros gravitacionais. E isso a direita ignora porque sua bússola só aponta para o passado.
A fantasia de esquerda não é “progressista” no sentido panfletário. Ela é simbólica. Derruba arquétipos antigos com novas imagens. Apresenta o herói como um coletivo, o vilão como uma estrutura, o final feliz como um processo — nunca uma volta ao lar, mas a invenção de um lar que ainda não existe.
E se a direita vê em Tolkien um manual de política, a esquerda deveria ver em Le Guin uma profecia: o mundo só muda quando aprendemos a narrá-lo diferente.
A verdadeira luta não é entre luz e trevas, mas entre a fantasia como instrumento de ordem e a fantasia como gesto de liberdade.
Não se trata de disputar Tolkien, mas de reconhecer que há mais de um Anel. A fantasia é um espelho partido — e cada estilhaço mostra uma ideologia.
A esquerda, se quiser sobreviver à tecnocracia que a esvaziou e ao cinismo que a corrompeu, precisa voltar a sonhar com mundos. Não com programas de governo. Mas com fábulas, cosmogonias, mitologias. Porque quem perde o mito, perde o povo. E quem perde o povo, perde o mundo.
“Toda forma é uma inteligência congelada.” — Autoria desconhecida
No reino das aparências, a melodia é a cortesã preferida dos sentidos. Ela dança, sorri, enfeitiça. Está na ponta da língua e no assobio inconsciente. Mas é o ritmo — esse ente subterrâneo, quase metafísico — quem dá a ela o passo. E, no entanto, quase ninguém o vê. Há uma obscenidade no modo como as pessoas, mesmo as mais cultas, confundem o ornamento com o esqueleto, o perfume com a carne. É o triunfo moderno do sensível sobre o inteligível, do deleite sobre a estrutura.
A melodia é memória; o ritmo, arquitetura. Aquela se imprime na superfície da alma como uma sombra luminosa, esta se infiltra na substância mesma do tempo. Quando falamos em ritmo na música ou na prosa, estamos lidando com uma categoria da ordem — uma forma de inteligência encarnada no movimento. O ritmo é o modo como o ser se manifesta no tempo, não como aparência, mas como potência organizadora.
Mas os idiotas úteis da estética moderna, inflacionados por um sentimentalismo terminal, ignoram que toda boa prosa é, antes de mais nada, uma dança. E como toda dança, ela pressupõe gravidade, pausa, impulso. Falar em ritmo literário é, pois, invocar uma cosmologia: a ideia de que há um tempo certo para tudo, e que o escritor verdadeiro é aquele que sabe escutá-lo.
O leitor comum — esse consumidor de frases pasteurizadas e pensamentos de micro-ondas — não percebe quando uma frase morre sufocada por sua própria afetação. Mas o escritor sério, aquele que conhece o logos, sabe que escrever é ritmar o ser. Uma vírgula mal colocada pode ser o abismo entre o sentido e a ruína. O ponto final, esse tirano silencioso, pode ser a queda de um império ou o respiro de uma eternidade.
É por isso que Flaubert lia suas frases em voz alta: não para agradar o ouvido burguês, mas para testar o nervo da linguagem. A frase que não vibra como um nervo tocado está morta — mesmo que esplêndida em adjetivos. Conrad, por sua vez, escrevia como quem governa um navio em mar traiçoeiro. Cada palavra, cada pausa, era uma manobra contra o naufrágio do espírito.
Mas quem ainda tem ouvidos para isso? A sensibilidade contemporânea foi adestrada por algoritmos, não por métrica. A cadência da linguagem foi substituída pelo jargão dos estúpidos — aquela verborragia inflada que serve apenas para esconder a ausência de pensamento. Um texto sem ritmo é como um corpo sem coluna vertebral: pode ter músculos, mas não tem direção.
E há quem ainda ouse perguntar por que ler em voz alta? Como se a voz não fosse a carne da palavra, como se o pensamento pudesse viver fora da respiração. Quem não lê em voz alta não pensa em voz alta, e quem não pensa em voz alta escreve como quem se afoga no próprio silêncio. A palavra nasceu falada — e só se escreve bem quando se escreve como quem fala com os deuses.
Vamos destrinchar a noção de estrutura invisível — essa espinha dorsal do ritmo literário que, como um esqueleto sob a pele, não se mostra mas sustenta tudo.
Imagine uma frase de Flaubert:
"Elle se sentait prise par une torpeur vague, un engourdissement qui paralysait ses pensées."
Traduzindo: "Ela se sentia tomada por uma vaga letargia, um entorpecimento que paralisava seus pensamentos."
A frase é simples, direta. Mas o que a torna literariamente eficaz não está apenas no vocabulário, mas no modo como o tempo e a respiração se organizam nela — no ritmo. Essa cadência vem de uma estrutura invisível que regula a alternância entre o leve e o pesado, o curto e o longo. Veja:
- "Elle se sentait prise..." — A aliteração em "se sentait prise" provoca um freio, um torpor já sugerido foneticamente.
- "...par une torpeur vague..." — A vaguidão rítmica da sonoridade em "torpeur vague" ecoa a imprecisão do estado emocional.
- "...un engourdissement qui paralysait ses pensées." — A lentidão da palavra engourdissement, seguida do verbo paralysait, literalmente prende a respiração do leitor.
Você não vê o ritmo, mas o sente. A estrutura invisível não é a sintaxe apenas — é a ordenação interior do tempo no interior da frase. Ela dita onde acelerar, onde suspender, onde interromper. Essa estrutura não se ensina como se ensina gramática: ela se percebe com o ouvido interno, e se desenvolve com leitura atenta e escuta ativa.
Sem essa estrutura invisível, a linguagem desaba. É como construir uma catedral com linhas tortas: pode ter vitrais deslumbrantes, mas desmorona no primeiro vento.
O ritmo, portanto, não é um detalhe estético, mas uma forma de revelação. Ele é o que faz a linguagem deixar de ser um artifício e se tornar ato. E como todo ato, ele exige corpo, tempo e atenção. A pressa é o veneno da prosa, e a vaidade, sua prostituta mais ordinária.
Escrever bem é ritmar o mundo — e só o mundo ritmado pode ser compreendido. O resto é barulho.
Com meu desprezo cordial pela banalidade,
J. Fagner
No cenário literário contemporâneo, emergiu uma figura paradoxal: onipresente e ausente ao mesmo tempo. Elena Ferrante é essa escritora que se faz presente em milhares de mesas de cabeceira, mas cuja identidade permanece tão misteriosa quanto suas narrativas. Trata-se de uma estratégia não de evasão, mas de intensificação: ao retirar sua presença, Ferrante torna mais visível o pulsar interior de suas personagens, criando um desdobramento narrativo que nos encanta com a sensação de que quem conta a história não somos nós, mas a própria vida.
É impossível não perceber uma relação direta entre a condição social de suas protagonistas — saídas de bairros pobres da pós-guerra napolitana — e o modo como elas se transformam, camada a camada, ao longo de cada livro. Não se trata apenas de ascensão social ou literária, mas de um processo de transmutação identitária. Tomemos como exemplo as heroínas de L’amore molesto, I giorni dell’abbandono e, sobretudo, dos quatro volumes da série napolitana: nelas, a filha torna-se esposa, a esposa torna-se mãe, e todas as versões coexistem, se chocam e dialogam dentro de uma mesma cabeça.
Esse efeito de “metamorfose” remete às figuras clássicas da mitologia e da alquimia, mas com raízes profundamente humanas. A prosa de Ferrante, segundo a crítica, faz um espelho das transformações internas das mulheres que atravessam as rupturas da existência moderna — o deslocamento íntimo, doloroso, porém fecundo.
Ao contrário dos narradores circulares dos contos antigos, Ferrante se afasta do artificioso e abraça o real: ela pode nos mostrar uma mãe que, em La figlia oscura, retém silenciosamente a boneca de uma criança alheia, não por maldade, mas pela voraz tentativa de recuperar a infinitude perdida da infância. Trata-se de um gesto simbólico — e perturbadoramente humano — que define seu talento para mostrar como as pequenas atitudes cumprem funções emocionais gigantescas.
O anonimato voluntário da autora reforça ainda mais essa dinâmica: não há biografia nos extravasando pelos poros do texto, nem sociólogos opinando sobre sua origem. Decifrar Ferrante é decifrar o ritmo interno de suas personagens — e essa anomia tutelar faz com que o leitor fique frente a frente consigo mesmo, desarmado de distrações.
No fim do terceiro volume da série napolitana, Storia di chi fugge e di chi resta, ficamos imersos num limbo narrativo inventivo: não sabemos bem o que acontecerá com Elena ou com Lila. A tetralogia termina em Storia della bambina perduta deixando apenas rastros de desejo, ruínas afetivas, ambições abortadas e perpétuas reinvenções. É um universo que respira, pulsa e nos abandona com perguntas insolúveis — como se a narrativa fosse a própria vida.
Em última instância, Ferrante reativa uma tradição mitopoiética — aquela de contar histórias que nos ressoam mais pela epifania vivida do que pelo elegante encerramento da trama. É esse dispositivo de suspensão que dá a seus livros um caráter eterno: as mulheres que lemos não são personagens de livro, são corpos que habitam para sempre as nossas memórias.
É claro que, para o leitor domesticado pelas convenções culturais do nosso tempo, a figura de Elena Ferrante aparece como uma espécie de milagre editorial: uma escritora que vende milhões, sem aparecer, sem dar entrevistas presenciais, sem posar nua para a Vanity Fair e — pasmem — sem sequer assinar com seu nome verdadeiro. A intelligentsia bate palmas, os professores universitários suspiram aliviados, e os leitores repetem como papagaios que finalmente apareceu uma autora “livre do ego”, “sem vaidades pessoais”. Balela.
Anônimo é o canal de esgoto. A identidade — a pessoalidade concreta do artista — é o que diferencia o escritor do chatbot. A tentativa de Ferrante de desaparecer é, paradoxalmente, um projeto estético profundamente autocentrado. A máscara do anonimato não é ausência do eu, mas sua duplicação teatral. Trata-se de um fingimento altamente calculado, que, claro, funciona à perfeição nos tempos em que a covardia virou virtude e a renúncia à responsabilidade estética é confundida com misticismo.
Não estou dizendo que a obra é ruim. Ao contrário. A tetralogia napolitana — L’amica geniale, Storia del nuovo cognome, Storia di chi fugge e di chi resta, Storia della bambina perduta — é, em muitos aspectos, um dos documentos literários mais intensos da degeneração da experiência feminina na modernidade. Ferrante descreve o mundo das mulheres com um talento quase oracular: sem sentimentalismo, sem empoderamento de almanaque, sem o lirismo artificial que costuma infectar esse tipo de narrativa. O que ela oferece é carne viva. Sangue coagulado em ressentimento, desejo e sobrevivência. É a anatomia da alma feminina em colapso.
O problema, como sempre, é a leitura que se faz da obra. Leitura é uma atividade espiritual, ou não é nada. O leitor moderno — sobretudo o acadêmico — tem a estranha mania de considerar a superfície como essência. Lê Ferrante e vê um catálogo sociológico: mulheres da classe baixa, violência patriarcal, mobilidade social, silêncios opressores, blá blá blá. Tudo verdade, tudo irrelevante.
O centro da obra de Ferrante não está no bairro pobre, nem nas tensões políticas, nem mesmo na amizade de Lila e Lenù. Está no abismo ontológico da identidade: o eu que não se sustenta. O eu que dissolve. O eu que trai. Toda a narrativa gira em torno de um tema que a filosofia moderna enterrou sob toneladas de banalidade existencialista: a unidade interior é um milagre. E quando ela se quebra — e sempre se quebra — o que sobra é o ruído da memória, a sombra da infância, a escrita como tentativa desesperada de reconstituir a alma fragmentada.
É curioso que tanta gente leia La figlia oscura e pense que se trata de um “thriller psicológico”. Não é. É uma meditação brutal sobre a culpa materna. Uma mulher que abandona as filhas, que “se torna livre”, e que depois vê essa liberdade como uma espécie de autoexílio infernal. Isso, meus caros, é tragédia grega no coração da modernidade. E é esse tipo de coisa que o leitor contemporâneo — com sua mente viciada em narrativas edificantes — não sabe mais reconhecer.
No fim das contas, a obra de Ferrante é valiosa não por aquilo que ela diz, mas por aquilo que ela permite que vejamos, se ainda temos olhos. Sua literatura não é “feminina” no sentido estúpido da militância literária. É feminina no sentido eterno: ali onde a forma humana se contorce entre o amor e o desespero, entre o ventre e o espírito, entre a memória e o esquecimento.
Elena Ferrante é uma escritora de primeira grandeza — apesar de si mesma. O anonimato não a protege: a enfraquece. Sua literatura resiste não porque ela se esconde, mas porque, ao contrário, ela se entrega por inteiro naquilo que escreve. A ausência do rosto é apenas uma última vaidade de uma cultura que tem horror à presença real — e à verdade que dela emana.
Carta aberta a um jovem estudante de letras
Querido Miguel,
Li sua carta — e antes que eu responda qualquer coisa, precisei me sentar em silêncio. Às vezes, a resposta precisa nascer mais da escuta do que da palavra.
Estarei em São Paulo entre os dias 4 e 27 de agosto, por conta das aulas do doutorado em Literatura e Crítica Literária na PUC. Se estiver livre, marcamos algo — um café, uma caminhada, talvez só um banco numa praça onde o vento sussurre palavras que não couberam no e-mail. Seria bom revê-lo, ver com os olhos o que agora escutei com os olhos.
Você me pergunta como estou. Eu te conto sem rodeios: meu pai morreu.
Escrevi sobre isso, talvez para não esquecer que ele existiu. Talvez para me lembrar de que existo eu também. Está aqui, aqui e aqui. Três textos, mas nenhum deles é suficiente. Porque, no fundo, toda perda é mal escrita — mesmo a que fazemos com esmero. Mesmo a que tentamos transformar em literatura.
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O que você me conta sobre o bairro, sobre Santo André, sobre o túnel imaginário que divide a cidade pequena da cidade grande, me lembrou algo que Ferrante nunca escreve diretamente, mas que está ali, em cada sílaba que Lenu pronuncia com vergonha: o mundo da linguagem é também o mundo da exclusão.
A vergonha do próprio vocabulário, do próprio “r” — isso, meu caro, não é pequeno. É o centro da narrativa da tetralogia. Quando Lenu sobe a escada da escola para ler um texto e tenta esconder o sotaque, ela não quer apenas parecer culta — ela quer ser aceita pelo país que não a quer. O país, a universidade, o mercado editorial, o marido, os críticos. Todos esses circuitos sociais que dizem: “seja outra”.
Mas há uma diferença entre Lenu e você. Ela se ilude com a aceitação. Você sabe que a cidade grande é apenas um cenário. E que às vezes, mesmo sendo bom, ele pode não ser suficiente para dar abrigo.
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Você diz que teme a mudança. Que quer manter um dedinho em casa. Que sente que a casa já não te pertence. Que a cidade é grande demais, que você talvez não seja dela.
Isso é crescer.
Aos dezenove, São Paulo sempre parece um monstro. Aos vinte e nove, ela ainda é. Mas você aprende a dançar com ele. Aprende, talvez, que o concreto não engole: apenas testa seu equilíbrio.
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Sobre Ferrante — sim, quero conversar contigo. Muito. A tetralogia é um território que relê a ideia de identidade a partir da tensão entre visibilidade e desaparecimento. Um dos textos mais belos que li sobre ela é da Rachel Donadio, no New York Times (aqui), e também o de Elaine Nathani Medeiros Dantas e João Pedro Wizniewsky Amaral, que fala sobre a escrita de Ferrante como elaboração dos traumas (aqui). Há também Elissa Schappell, que percebe como a raiva é um motor de consciência feminina na obra (aqui).
Você me pergunta: existe algo tão bom quanto Ferrante?
Existe. Mas depende da fome. Clarice pode ser mais cortante. Natalia Ginzburg mais seca e desoladora. Annie Ernaux, mais implacável. A Place for Us, da Fatima Farheen Mirza, se quiser chorar de novo. Vida e Destino, de Vassili Grossman, se quiser mergulhar num oceano sem fim.
Mas o que talvez você procure — e isso li nas entrelinhas — é um livro que o obrigue a se ver. Que o empurre a se despir do personagem que você acha que precisa ser.
Talvez a literatura mais necessária nesse momento da sua vida seja aquela que lhe devolve a própria voz. Mesmo que gagueje, mesmo que venha com palavrões, mesmo que soe como Santo André. Mesmo que soe como verdade.
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Não, você não é tolo. E, se me permite, não seja tão duro consigo mesmo. Há uma beleza honesta no seu texto — e honestidade, hoje, é luxo.
Obrigado por me escrever. E por confiar em mim.
Nos vemos logo,
Com carinho,
J. Fagner
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