Vou começar com uma constatação pouco festiva: o fim do ano tem o estranho talento de expor aquilo que passamos meses inteiros evitando. Não porque o Natal tenha algum poder místico especial, mas porque a rotina — essa engenhosa invenção moderna para nos manter distraídos — sofre uma interrupção temporária. E, quando o ruído cessa, mesmo que por poucos dias, algo inconveniente acontece: somos deixados a sós conosco.

As crises existenciais que emergem nas festas não são acidentes psicológicos nem falhas de caráter. São efeitos colaterais previsíveis de uma vida organizada para evitar o silêncio. Durante o ano, aprendemos a nos mover continuamente: metas, prazos, mensagens, obrigações. O movimento constante cria a ilusão de direção. Confundimos atividade com sentido, ocupação com realização. Quando esse sistema desacelera, o vazio aparece mas como pergunta.

A modernidade prometeu libertar o indivíduo. O resultado, em grande parte, foi deixá-lo sem abrigo simbólico. Perdemos narrativas comuns que organizavam o sofrimento, o amor, a perda e a passagem do tempo. Em troca, ganhamos entretenimento, consumo e a ideia persistente de que a felicidade é um projeto pessoal mal executado. No Natal, essa crença se torna particularmente cruel: se tudo conspira para a alegria e ela não vem, o problema só pode estar em você.

As famílias, reunidas à mesa, sentem o peso dessa contradição. Não porque faltem boas intenções, mas porque muitas relações sobrevivem apoiadas em pactos frágeis: rotinas funcionais, cordialidade disciplinada, lembranças seletivas. Quando a convivência se intensifica, essas estruturas revelam sua precariedade. Descobre-se, às vezes com espanto, que é possível administrar uma vida em comum sem jamais tocar o centro dela.

A tristeza que surge nesse contexto costuma ser tratada como uma falha a ser corrigida rapidamente. O mercado oferece soluções prontas: mais estímulo, mais consumo, mais distração. Mas a tristeza persistente raramente é um erro de funcionamento. Com frequência, é um sinal de lucidez. Ela indica que algo essencial foi negligenciado por tempo demais. Ignorá-la é fácil; compreendê-la exige coragem.

Religiões tradicionais responderam a esse mal-estar oferecendo uma estrutura de sentido que transcende o indivíduo. O cristianismo, por exemplo, interpreta o Natal como a lembrança de uma distância — entre o que somos e o que deveríamos ser — e, ao mesmo tempo, como a promessa de reconciliação. Mesmo para quem não partilha dessa fé, é difícil negar a força simbólica da ideia: a vida humana é marcada por uma insuficiência estrutural que não se resolve com ajustes superficiais.

O problema contemporâneo não é apenas a falta de respostas, mas a recusa em formular perguntas incômodas. Preferimos explicações rápidas a investigações honestas. Nesse ponto, práticas antigas como a leitura atenta e a escrita reflexiva mantêm um valor inesperado. Elas não curam, não salvam, não prometem redenção. Mas oferecem algo mais raro: clareza. Um bom livro não consola; ele nomeia. E aquilo que pode ser nomeado perde parte do seu poder de nos governar às cegas.

Escrever, por sua vez, é um ato de resistência contra a autoilusão. Ao tentar dar forma às próprias inquietações, o indivíduo se vê obrigado a confrontar contradições que normalmente varreria para debaixo do tapete da pressa. Não é um exercício terapêutico no sentido leve do termo; é uma investigação moral, frequentemente desconfortável.

Se o Natal provoca tristeza, talvez valha a pena suspender o impulso de eliminá-la. Tratar esse sentimento com respeito pode revelar que ele não é um inimigo, mas um mensageiro. Ele aponta para a distância entre a vida que se vive e a vida que, em algum nível, se reconhece como necessária.

Não há garantias de que esse reconhecimento leve a soluções duradouras. A condição humana não funciona assim. Mas há uma diferença significativa entre viver anestesiado e viver atento. Talvez isso seja o máximo que podemos esperar: menos ruído, menos ilusões de progresso moral, mais paciência com nossos limites reais.

Que o próximo ano não seja melhor no sentido ingênuo da palavra, mas mais lúcido. Menos disperso, menos confiante em promessas fáceis. Um ano em que se troque um pouco de entretenimento por compreensão — e um pouco de pressa pela rara coragem de permanecer diante do que não se resolve.



Há figuras históricas cuja importância não reside tanto no que viveram quanto no que tornaram possível. Paulo de Tarso é uma dessas figuras. Mais do que um discípulo, mais até do que um teólogo, ele foi um engenheiro conceitual: alguém que soube converter uma seita local, profundamente enraizada nos conflitos internos do judaísmo do século I, em uma religião portadora de pretensões universais. Se Jesus pertence ao registro do profeta — obscuro, enigmático, irredutível à biografia — Paulo pertence ao registro do intelectual prático: aquele que escreve, argumenta, persuade e organiza. É por isso que, paradoxalmente, sabemos mais dele do que daquele a quem diz servir.

Esse deslocamento não é um acidente. A história do cristianismo é menos a história de uma revelação do que a história de sua tradução. E toda tradução implica perda, adaptação e, sobretudo, escolha. O cristianismo que moldou o Ocidente não foi apenas o resultado da pregação de um messias judeu na periferia do Império Romano; foi o produto de uma síntese intelectual realizada por homens que não pertenciam inteiramente nem a Jerusalém nem a Atenas, mas habitavam o espaço instável entre ambas.

Entre esses homens, Lucas ocupa uma posição singular. Não porque saibamos muito sobre ele — sabemos quase nada —, mas justamente porque essa ignorância é reveladora. Lucas representa uma figura que se tornaria cada vez mais comum na história ocidental: o estrangeiro espiritual, o convertido parcial, o intelectual atraído por uma tradição que não é a sua, não por fé infantil, mas por saturação cultural.

O mundo greco-romano do primeiro século não era um mundo ateu. Era, em certo sentido, algo mais complexo: um mundo religiosamente exausto. Os deuses ainda eram honrados, os rituais continuavam a ser observados, os sacrifícios não haviam cessado. Mas a crença, no sentido forte do termo, já não sustentava essas práticas. Elas funcionavam como hábitos sociais, não como convicções existenciais. Assim como boa parte do Ocidente contemporâneo continua a celebrar festividades religiosas desprovidas de conteúdo metafísico efetivo, o paganismo tardio sobrevivia como uma coreografia sem transcendência.

Essa exaustão não gerava imediatamente o ceticismo filosófico radical. Ao contrário, produzia um apetite difuso por formas religiosas que parecessem mais sérias, mais exigentes, mais densas. A religião dos judeus oferecia exatamente isso: um monoteísmo austero, uma moral rigorosa, uma narrativa histórica coerente, e, talvez acima de tudo, uma comunidade que parecia viver de acordo com aquilo que professava.

Para um grego instruído — um médico, por exemplo — esse contraste era eloquente. O judaísmo não prometia êxtase místico nem redenção cósmica; prometia ordem, sentido e continuidade. Em um mundo politicamente dominado por Roma e culturalmente saturado de mitos reciclados, essa promessa tinha peso. A Torá não era apenas um texto sagrado; era uma arquitetura moral. E as sinagogas, com sua sobriedade quase doméstica, ofereciam algo que os templos monumentais haviam perdido: proximidade.

É importante notar que esse movimento de atração não implicava adesão total. A maioria dos prosélitos permanecia na fronteira. Não aceitavam a circuncisão, não assumiam integralmente a Lei, mas frequentavam as sinagogas, ouviam as leituras, absorviam a ética. Eram, em termos modernos, simpatizantes. Essa posição intermediária — nem dentro nem fora — é decisiva para compreender o tipo de cristianismo que emergiria posteriormente.

Lucas, tudo indica, pertencia a esse grupo. Ele não era judeu de nascimento. Não compartilhava a memória tribal, as genealogias, a sacralidade do hebraico. Para ele, a Escritura já era tradução. A Bíblia que conhecia não era o texto original, mas a Septuaginta: um texto grego, moldado por categorias mentais gregas, acessível a quem jamais pisaria em Jerusalém. Esse detalhe, aparentemente técnico, é filosoficamente decisivo.

A tradução da Torá para o grego não foi apenas um evento linguístico; foi um acontecimento metafísico. Ao ser vertida para a língua do logos, a revelação judaica tornou-se interpretável fora de seu contexto ritual específico. O Deus de Israel pôde, então, ser pensado como princípio universal, não apenas como divindade nacional. O que antes era uma aliança particular começou a adquirir a forma de uma verdade geral.

Essa transformação não ocorreu por fidelidade, mas por deslocamento. Ao perder o chão da prática ritual cotidiana, a religião ganhou abstração. Ao perder o Templo como centro, ganhou o texto como mediador. Ao perder a exclusividade étnica, ganhou a vocação universal. Nada disso foi inevitável; tudo isso foi contingente. Mas uma vez iniciado o processo, suas consequências foram irreversíveis.

Paulo compreendeu isso de modo intuitivo e radical. Lucas, ao que parece, compreendeu de modo gradual e reflexivo. Um era um judeu helenizado que rompeu com a Lei para salvar sua mensagem; o outro, um grego que se aproximou da Lei para encontrar uma mensagem que pudesse sobreviver à ruína dos deuses. Entre ambos, forma-se o núcleo intelectual do cristianismo primitivo.

Mas ainda não estamos no cristianismo propriamente dito. Estamos em um terreno mais instável: um mundo em transição, no qual antigas certezas haviam perdido sua força, e novas certezas ainda não haviam se imposto. É nesse intervalo — esse espaço entre o descrédito do politeísmo e a consolidação do monoteísmo cristão — que se deve situar a figura de Lucas.

Ele não é um apóstolo no sentido estrito. É um mediador cultural. Um tradutor, não apenas de palavras, mas de mundos. E como todo tradutor, ele seleciona, omite, organiza. Sua contribuição não está na originalidade doutrinal, mas na forma narrativa. Ele escreve para leitores que, como ele, precisam que a história faça sentido antes de que a fé possa ser concebida.

Nesse ponto, emerge uma questão que atravessará todo o ensaio: o cristianismo triunfou por ser verdadeiro ou por ser inteligível? Ou, para formular de modo ainda mais incômodo: ele triunfou porque respondia às aspirações humanas universais, ou porque se ajustava com precisão às carências específicas de um mundo em declínio?

Responder a essa pergunta exige abandonar tanto a teologia quanto a apologética. Exige uma análise histórica desprovida de consolação. Exige reconhecer que as religiões, como as ideologias modernas que as sucederam, não prosperam por sua veracidade, mas por sua utilidade existencial. Elas oferecem não tanto respostas corretas quanto narrativas habitáveis.

O mundo de Lucas precisava de uma narrativa habitável. O paganismo já não oferecia isso. A filosofia, embora sofisticada, permanecia restrita a minorias. O judaísmo, por sua vez, oferecia densidade, mas não abertura. O cristianismo nascente, moldado por figuras como Paulo e transmitido por figuras como Lucas, ofereceria algo novo: uma ética exigente desacoplada de uma identidade tribal, uma salvação universal sem necessidade de pertencimento étnico, um Deus único acessível em qualquer lugar.

Esse arranjo não era inevitável. Foi uma construção histórica frágil, sujeita a desvios e disputas. Mas foi suficiente para reorganizar o imaginário do Ocidente por dois milênios.

A partir daqui, torna-se necessário examinar como essa narrativa foi construída — não apenas em seus conteúdos, mas em suas formas. Para isso, será preciso olhar mais de perto o gesto literário de Lucas, sua concepção de história, sua tentativa de ordenar o caos dos testemunhos, e sua ambição silenciosa: tornar o contingente necessário e o local universal.

Se Paulo foi o arquiteto conceitual do cristianismo nascente, Lucas foi seu primeiro historiador — e talvez seu primeiro editor no sentido moderno do termo. Essa distinção é crucial. Não se trata apenas de estilos diferentes, mas de funções intelectuais distintas. Paulo escreve para intervir; Lucas escreve para estabilizar. Um responde a crises locais; o outro tenta produzir uma narrativa contínua que sobreviva à morte das testemunhas e à dispersão das comunidades.

A escrita de Lucas nasce de uma ansiedade que não é teológica, mas temporal. O tempo está passando. As testemunhas oculares estão desaparecendo. As versões se multiplicam. O que era uma experiência vivida ameaça tornar-se uma coleção de rumores concorrentes. Nesse contexto, escrever não é um ato de fé; é um ato de contenção. Trata-se de impedir que a pluralidade das lembranças dissolva a possibilidade de uma história comum.

Esse impulso não é exclusivo do cristianismo. Sempre que um movimento carismático sobrevive ao seu fundador, surge a necessidade de organizar o passado. O carisma, por definição, é instável. Ele depende da presença, do gesto, da voz. Uma vez ausente o fundador, o carisma precisa ser traduzido em regras, textos e instituições. O que Max Weber identificaria muito mais tarde como a “rotinização do carisma” já está plenamente em curso nos escritos de Lucas.

Mas Lucas não escreve como um cronista neutro. Ele escreve como alguém que já habita um mundo no qual o cristianismo não é mais apenas um episódio judaico, mas uma possibilidade universal. Seu gesto historiográfico não é o de registrar o que aconteceu, mas o de tornar o acontecido inteligível para leitores que não compartilham o contexto original. Nesse sentido, sua obra é menos memória do que pedagogia.

Isso se manifesta, antes de tudo, na forma. O grego de Lucas — elegante, fluido, distante da rudeza semítica — não é um mero ornamento estilístico. Ele sinaliza uma mudança de destinatário. Não se escreve assim para pescadores da Galileia ou artesãos da Judeia. Escreve-se assim para leitores habituados à historiografia helenística, para os quais uma narrativa deve obedecer a critérios de verossimilhança, continuidade e causalidade.

A história, para esse público, não é uma sucessão de intervenções divinas arbitrárias. É uma sequência de eventos que podem ser compreendidos como efeitos de decisões humanas, ainda que orientadas por um desígnio superior. Lucas adapta a mensagem cristã a esse horizonte intelectual. O milagre não desaparece, mas é enquadrado. A providência não é negada, mas se manifesta por meio de trajetórias reconhecíveis.

Esse enquadramento tem consequências profundas. Ao transformar a experiência cristã em narrativa histórica, Lucas contribui para uma mutação silenciosa: a fé deixa de ser apenas uma resposta à revelação e passa a ser também uma adesão a uma história. Crer já não é apenas confiar; é aceitar uma versão do passado. E toda versão do passado implica exclusões.

É aqui que o cristianismo começa a adquirir uma relação ambígua com a verdade. Não porque Lucas minta deliberadamente, mas porque a própria ideia de “relato ordenado” pressupõe seleção. Entre versões concorrentes, escolhe-se uma. Entre episódios contraditórios, harmoniza-se. Entre silêncios e excessos, constrói-se uma linha narrativa. Esse processo não é fraudulento; é inevitável. Mas ele introduz um elemento novo: a verdade como coerência interna, não como fidelidade absoluta aos fatos.

Essa mutação reaparecerá inúmeras vezes na história ocidental. As grandes narrativas modernas — do progresso, da emancipação, da revolução — herdaram do cristianismo essa estrutura: uma história dotada de sentido, orientada para um fim, na qual os sofrimentos presentes são justificados por um desfecho redentor. Lucas não inventa essa forma, mas a adapta com eficácia duradoura.

Há, contudo, uma ironia fundamental nesse processo. O cristianismo nasce como uma mensagem escatológica: o fim está próximo, o mundo como o conhecemos será transformado. Mas, ao se tornar história, essa expectativa é adiada. A urgência cede lugar à duração. O Reino não chega; ele se institucionaliza. A escrita de Lucas marca esse deslocamento. O cristianismo começa a aprender a esperar.

Esse aprendizado da espera é decisivo para sua sobrevivência. Movimentos que anunciam o fim iminente tendem a desaparecer quando o fim não chega. O cristianismo, ao contrário, transforma o adiamento em virtude. A paciência torna-se um valor. A história, um campo de prova. A salvação, algo que se vive no tempo, não apenas fora dele.

Nesse sentido, Lucas contribui para uma domesticação do apocalipse. O escândalo da cruz é integrado a uma narrativa de continuidade. A ruptura torna-se episódio. O trauma é absorvido. O que era uma interrupção radical da ordem do mundo passa a ser apresentado como seu cumprimento paradoxal. Essa operação é intelectualmente sofisticada e politicamente fecunda.

Mas ela tem um preço. Ao tornar-se história, o cristianismo perde parte de sua capacidade de contestação radical. Ele se adapta ao mundo que pretendia transformar. Aprende a conviver com o poder, com o império, com a desigualdade. A mensagem que prometia a inversão dos valores acaba fornecendo, com o tempo, uma gramática para legitimá-los.

Nada disso é visível de imediato. No horizonte de Lucas, o cristianismo ainda é frágil, minoritário, frequentemente perseguido. Mas a forma narrativa que ele ajuda a estabelecer contém, em estado latente, as possibilidades futuras da religião. A história ordenada que ele escreve pode ser lida tanto como promessa quanto como justificativa.

É por isso que Lucas interessa menos como indivíduo do que como sintoma. Ele encarna a transição de uma experiência religiosa intensa para uma tradição transmissível. Ele representa o momento em que a fé se torna cultura. E toda cultura, uma vez formada, tende a se preservar mais do que a se interrogar.

Ao escrever para leitores gregos, Lucas contribui para a helenização do cristianismo. Mas essa helenização não é apenas linguística; é conceitual. A ideia de um logos que estrutura a história, de uma racionalidade subjacente aos eventos, de uma narrativa universal que pode ser compartilhada por povos distintos — tudo isso é herança grega. O cristianismo não substitui essa herança; ele a reocupa.

Essa reocupação explica tanto o sucesso quanto as tensões internas da religião. O cristianismo se apresenta como revelação, mas opera como filosofia moral. Proclama mistério, mas exige assentimento racional. Promete transcendência, mas organiza a vida cotidiana. Essa ambivalência não é um defeito acidental; é o resultado de sua gênese híbrida.

Lucas, o médico grego atraído pela religião dos judeus, é o mediador perfeito dessa hibridização. Ele não tem nostalgia do Templo, nem apego à Lei em sua forma ritual. Para ele, o essencial é o sentido. E o sentido, para um grego, deve ser narrável. O que não pode ser narrado não pode ser compartilhado; o que não pode ser compartilhado não pode fundar uma comunidade durável.

Assim, ao escrever sua história, Lucas não apenas registra o nascimento do cristianismo; ele participa ativamente de sua reinvenção. Ele transforma um conjunto de experiências fragmentárias em uma tradição coerente. E ao fazê-lo, inaugura uma lógica que se repetirá ao longo dos séculos: a lógica segundo a qual a sobrevivência de uma verdade depende menos de sua origem do que de sua capacidade de adaptação.

Na próxima parte, será necessário examinar como essa lógica — inaugurada no interior de uma religião — acabaria por moldar também as ideologias seculares que, muito mais tarde, proclamariam ter superado a religião. Veremos como o cristianismo, ao ensinar o Ocidente a pensar historicamente, preparou o terreno para narrativas que dispensariam Deus, mas conservariam sua estrutura.

Ao transformar uma seita apocalíptica em uma narrativa histórica dotada de coerência interna, o cristianismo realizou algo que ultrapassa em muito seu próprio horizonte religioso. Ele forneceu ao Ocidente uma forma específica de pensar o mundo: a ideia de que a história possui um sentido unitário, inteligível e potencialmente universal. Essa ideia, que hoje parece quase natural, é tudo menos óbvia. Ela não deriva da observação empírica nem da experiência cotidiana. Surge de uma construção intelectual específica, situada no cruzamento entre a tradição profética judaica e a historiografia grega.

Antes disso, as civilizações pensavam o tempo de modo diferente. Para os gregos clássicos, o tempo era cíclico. Os regimes políticos se sucediam, as cidades floresciam e declinavam, mas não havia um ponto final redentor. Para os romanos, o tempo era pragmático: uma sucessão de conquistas, administrações e reformas. Mesmo quando falavam em decadência, não imaginavam um desfecho transcendente. O judaísmo, por sua vez, introduzira a ideia de um tempo orientado, de uma história guiada por um Deus que intervém. Mas essa história permanecia particular, ligada ao destino de um povo específico.

O cristianismo rompe esse limite. Ele universaliza a história sem abandonar sua orientação teleológica. O que antes era a narrativa de Israel torna-se a narrativa da humanidade. Essa universalização não é apenas um gesto missionário; é uma operação conceitual profunda. Ela implica que todos os povos, independentemente de sua cultura, estão inseridos na mesma história e caminham, queiram ou não, em direção ao mesmo desfecho.

Essa é uma ideia extraordinariamente poderosa — e extraordinariamente perigosa. Poderosa porque fornece um quadro comum para a experiência humana. Perigosa porque tende a apagar diferenças reais em nome de um destino abstrato. Ao afirmar que todos participam da mesma história, o cristianismo prepara o terreno para uma forma específica de intolerância: aquela que não se baseia no ódio ao outro enquanto outro, mas na convicção de que o outro ainda não compreendeu a verdade que, no fundo, lhe diz respeito.

Lucas não formula essa lógica de maneira explícita, mas sua escrita a torna possível. Ao narrar os eventos de modo que façam sentido para leitores gregos, ele demonstra que a história cristã pode ser traduzida, apropriada, interiorizada fora de seu contexto original. O universalismo deixa de ser promessa e torna-se método. A fé passa a ser concebida como algo que pode — e deve — ser adotado por qualquer pessoa racionalmente disposta.

Essa disposição racional é crucial. O cristianismo que emerge dessa síntese não exige apenas submissão; exige compreensão. Mesmo quando apela ao mistério, o faz dentro de uma moldura narrativa que convida à adesão intelectual. Crer não é apenas obedecer; é reconhecer a coerência de uma história. Essa exigência distingue o cristianismo de muitas religiões antigas e explica parte de sua durabilidade.

Mas ela também introduz uma tensão insolúvel. Se a verdade é universal e inteligível, por que nem todos a reconhecem? Essa pergunta atravessará toda a história cristã e encontrará respostas cada vez mais inquietantes. No início, a resposta é simples: nem todos ouviram a mensagem. Depois, torna-se mais problemática: alguns ouviram, mas rejeitaram. Mais tarde, a rejeição passa a ser interpretada como erro culpável, cegueira moral ou resistência deliberada ao bem.

Essa progressão não é inevitável, mas é recorrente. O universalismo, quando combinado com a convicção de possuir a verdade, tende a produzir formas de coerção. Não necessariamente físicas — embora estas não estejam ausentes —, mas simbólicas, culturais, psicológicas. O outro não é apenas diferente; é incompleto. Não está apenas fora; está aquém.

Essa lógica não se limita à religião. Ela reaparece, quase sem modificações estruturais, nas ideologias seculares da modernidade. O Iluminismo, por exemplo, substitui a salvação pela emancipação, Deus pela razão, a providência pelo progresso. Mas conserva a ideia central: a humanidade caminha em uma única direção, e aqueles que resistem estão presos a estágios anteriores de desenvolvimento.

Essa continuidade raramente é reconhecida. A modernidade gosta de se apresentar como ruptura radical com o passado religioso. No entanto, muitas de suas categorias fundamentais — história universal, sentido do tempo, redenção futura — são heranças diretas do cristianismo. A diferença não está na forma, mas no conteúdo. Onde antes havia o Reino de Deus, há agora a sociedade racional. Onde antes havia o pecado, há a ignorância. Onde antes havia a graça, há a educação.

Lucas, evidentemente, não poderia prever esse desdobramento. Mas sua contribuição torna-o possível. Ao ensinar o Ocidente a pensar a história como narrativa orientada, ele fornece a matriz para projetos que pretendem reorganizar o mundo de acordo com um plano racional. A ideia de que a história tem um sentido não desaparece com a secularização; ela se desloca.

Esse deslocamento tem consequências ambíguas. Por um lado, permite avanços reais: a crítica de práticas cruéis, a ampliação de direitos, a valorização da dignidade humana. Por outro, legitima intervenções violentas em nome de um futuro melhor. Se a história tem um sentido, então acelerar esse sentido pode parecer uma obrigação moral. E aqueles que resistem podem ser tratados como obstáculos, não como interlocutores.

A figura de Lucas, nesse contexto, adquire uma dimensão simbólica. Ele representa o momento em que a fé se torna transmissível sem depender da pertença étnica ou da experiência direta. Isso é uma conquista intelectual notável. Mas também é o momento em que a verdade se separa da prática concreta e se torna princípio abstrato. A partir daí, torna-se possível impor a verdade sem partilhar a vida que a originou.

Essa separação entre verdade e forma de vida é uma das marcas da história ocidental. As ideias passam a circular independentemente das comunidades que lhes deram origem. Podem ser aplicadas, reinterpretadas, instrumentalizadas. O cristianismo, ao se universalizar, perde o controle sobre seus próprios efeitos. O mesmo ocorrerá, séculos depois, com o humanismo, o liberalismo, o socialismo.

Nada disso invalida o impulso original. Mas convida à cautela. A crença em uma história universal orientada para um fim pode fornecer sentido, mas também pode obscurecer a contingência. Pode consolar, mas também pode justificar o injustificável. Ao prometer redenção futura, pode relativizar o sofrimento presente.

Lucas escreve em um momento em que essas tensões ainda não se manifestaram plenamente. Seu objetivo é mais modesto: preservar uma memória, ordenar relatos, oferecer um caminho de compreensão. Mas as formas que ele adota carregam consigo potenciais que ultrapassam suas intenções. A história que ele escreve não pertence apenas ao passado; ela projeta sombras longas sobre o futuro.



Na próxima parte, será necessário examinar como esse legado — a história como narrativa de salvação — moldou a própria ideia de progresso e como, ao perder seu fundamento teológico, essa ideia se tornou ainda mais problemática. Veremos como o cristianismo, ao ensinar o Ocidente a esperar por um fim redentor, também o ensinou a justificar fracassos em nome de promessas.

Quando a teologia cristã começou a perder sua autoridade explícita no pensamento europeu, muitos imaginaram que a estrutura mental que ela sustentava desapareceria junto com ela. Ocorreu o contrário. As crenças seculares que emergiram da crise religiosa da modernidade conservaram quase intacta a forma cristã do tempo histórico, substituindo apenas seus conteúdos. Onde antes havia pecado e salvação, passaram a existir atraso e progresso. Onde antes havia providência divina, passou a haver necessidade histórica. O vocabulário mudou; a gramática permaneceu.

Essa persistência não é acidental. A ideia de progresso — tão central para a autocompreensão moderna — não é um produto espontâneo da razão científica. Ela é uma herança teológica. A ciência descreve regularidades; não promete destinos. A noção de que a humanidade caminha inevitavelmente rumo a um estado melhor não deriva da observação dos fatos, mas de uma expectativa herdada: a de que a história tem um sentido moral.

Essa expectativa só se torna plausível em um mundo já moldado pela narrativa cristã. Antes disso, as sociedades humanas conheciam avanços técnicos, mas não os interpretavam como etapas de um aperfeiçoamento global da condição humana. O cristianismo introduziu a ideia de que o tempo não apenas passa, mas avança. A modernidade apenas secularizou essa intuição, removendo Deus do cenário e colocando em seu lugar a razão, a ciência ou a economia.

Esse deslocamento teve consequências paradoxais. Ao perder sua âncora transcendente, a ideia de redenção tornou-se mais frágil e mais imperiosa. No cristianismo, o fracasso histórico podia ser absorvido pela promessa escatológica: o Reino não é deste mundo. Na modernidade secular, não há esse recurso. Se a história falha, falhamos nós. O futuro deixa de ser mistério e torna-se projeto.

Essa transformação intensifica a pressão moral sobre o presente. Se o progresso é possível e necessário, então o sofrimento atual pode ser justificado como preço a pagar por um bem maior. Essa lógica, que já estava latente em certas interpretações cristãs da história, torna-se explícita nas ideologias modernas. Revoluções fracassadas, políticas desastrosas, sacrifícios humanos em larga escala — tudo pode ser racionalizado em nome de um futuro que nunca chega, mas que continua a ser prometido.

O cristianismo, ao menos em sua forma clássica, mantinha uma tensão entre o já e o ainda não. A salvação era anunciada, mas não plenamente realizada. Essa tensão funcionava como limite. A modernidade, ao tentar realizar a redenção na história, elimina o limite. O resultado é uma forma de messianismo sem misericórdia.

Essa diferença ajuda a explicar por que as ideologias seculares do século XX produziram violências em escala que o mundo medieval raramente conheceu. Não se trata de nostalgia por uma era mais piedosa, mas de reconhecer uma mudança estrutural. Quando a redenção é prometida dentro da história, os obstáculos tornam-se intoleráveis. Pessoas reais passam a ser tratadas como meios descartáveis para fins abstratos.

O universalismo cristão, ao ser secularizado, perde também seus mecanismos de autocontenção. A ideia de que todos pertencem à mesma história continua a operar, mas sem o reconhecimento da queda, do pecado, da limitação humana. A humanidade é vista como perfectível, não como trágica. O mal deixa de ser uma condição permanente e passa a ser um resíduo temporário. Essa mudança altera profundamente a ética.

Lucas, evidentemente, não é responsável por essas derivações tardias. Mas ele participa da construção da forma histórica que as torna possíveis. Ao escrever uma história universal da salvação, ele contribui para a ideia de que os eventos humanos podem — e devem — ser organizados em uma narrativa coerente. Essa confiança na narratividade da história é herdada pelas filosofias do progresso, que acreditam poder decifrar o sentido do tempo e orientar a ação política de acordo com ele.

No entanto, a história real resiste a essas tentativas de domesticação. Ela é descontínua, imprevisível, frequentemente indiferente às aspirações morais humanas. O século XX foi um testemunho brutal dessa resistência. As promessas de emancipação universal produziram campos de extermínio. As utopias racionalistas geraram sistemas de vigilância e repressão. O progresso técnico avançou lado a lado com a capacidade de destruição.

Esses fatos não refutam a ideia de progresso em sentido limitado. É inegável que houve avanços na medicina, na redução de certas formas de violência, na ampliação de direitos. Mas eles minam a crença em um progresso moral cumulativo e irreversível. A história não se move em linha reta. Ela não aprende de maneira confiável com seus próprios erros. Cada geração redescobre, à sua maneira, as possibilidades do bem e do mal.

Essa constatação aproxima mais a modernidade desencantada de certas intuições antigas do que ela costuma admitir. Os gregos sabiam que a hybris — a desmedida — é punida, não por um Deus moral, mas pela própria estrutura do mundo. O cristianismo reinterpretou essa intuição à luz de uma promessa redentora. A modernidade tentou eliminar tanto a punição quanto a promessa, mantendo apenas a confiança no avanço.

O resultado é uma tensão permanente entre expectativas infladas e resultados ambíguos. Vivemos em um mundo que herdou do cristianismo a esperança de sentido e da ciência a capacidade de intervenção, mas perdeu a capacidade de aceitar limites. Essa combinação é instável. Ela produz tanto conquistas admiráveis quanto catástrofes recorrentes.

Lucas, ao escrever sua história, não poderia prever esse desfecho. Mas sua obra marca um ponto de inflexão. É o momento em que a experiência religiosa se torna narrativa histórica e, portanto, transmissível, reinterpretável, secularizável. A partir daí, a história deixa de ser apenas o palco da ação divina e passa a ser o objeto da ação humana consciente.

Essa mudança é irreversível. Não podemos retornar a um mundo pré-histórico no sentido conceitual. Mas podemos reconhecer as ambivalências da herança que recebemos. Podemos questionar a crença de que a história tem um sentido único. Podemos resistir à tentação de justificar o sofrimento presente em nome de futuros imaginários. Podemos recuperar uma forma de ceticismo trágico que não elimina a ação moral, mas a torna mais prudente.

Lucas permanece, para nós, uma figura quase sem rosto. Não sabemos como viveu seus últimos anos, não sabemos se morreu em paz ou em conflito, não sabemos até que ponto compreendia o alcance do que estava fazendo. Essa ausência de detalhes biográficos, longe de ser um obstáculo, torna-o ainda mais representativo. Ele encarna uma condição que se tornaria recorrente na história ocidental: a do indivíduo situado entre tradições, incapaz de retornar plenamente a uma delas e igualmente incapaz de fundar algo inteiramente novo.

Ele não era judeu, mas estava profundamente marcado pelo judaísmo. Não era pagão no sentido clássico, mas herdara a formação intelectual grega. Não foi testemunha direta dos eventos que narra, mas assume a tarefa de organizá-los. Sua autoridade não deriva da experiência imediata, mas da competência cultural. Ele escreve porque pode escrever; porque domina a língua, a forma, o método. Essa condição, que hoje nos parece banal, era então uma novidade histórica.

Lucas representa o momento em que a religião passa a depender do intelectual. Antes disso, a autoridade religiosa estava ligada ao ritual, à linhagem, à presença. Com ele, começa a se ligar ao texto, à interpretação, à mediação. O cristianismo deixa de ser apenas vivido; passa a ser explicado. Essa explicação, por sua vez, torna-se condição de sua expansão.

Mas toda mediação implica distanciamento. Ao tornar a experiência narrável, Lucas a afasta de sua origem imediata. O que era escândalo torna-se episódio. O que era ruptura torna-se etapa. Esse processo não é um erro; é o preço da transmissão. Sem ele, o cristianismo teria provavelmente permanecido uma seita marginal. Com ele, tornou-se uma civilização.

O problema surge quando se confunde transmissão com verdade. A história bem contada tende a ser tomada como história verdadeira no sentido forte. A coerência narrativa substitui a fidelidade ao caos original. Esse deslocamento não é exclusivo da religião; ele ocorre em todas as formas de memória coletiva. As nações, por exemplo, constroem narrativas fundadoras que organizam o passado de modo seletivo. Essas narrativas são necessárias para a coesão, mas perigosas quando sacralizadas.

O cristianismo, ao longo dos séculos, oscilou entre a consciência dessa contingência e a tentação de absolutizá-la. Em seus melhores momentos, reconheceu a distância entre a Cidade de Deus e a cidade dos homens. Em seus piores, tentou confundi-las. A modernidade herdou essa oscilação, mas perdeu a linguagem que permitia nomeá-la.

Hoje, vivemos em um mundo que ainda pensa historicamente, mas já não sabe por quê. A ideia de progresso continua a operar, mas sem convicção metafísica. Espera-se que o futuro seja melhor, mas não se sabe em que sentido. A narrativa perdeu seu fim. O resultado é uma sensação difusa de esgotamento: continuamos a agir como se a história tivesse um sentido, mas já não acreditamos plenamente nisso.

Nesse contexto, a figura de Lucas pode ser relida não como fundador, mas como advertência. Ele nos lembra que as narrativas que nos sustentam são construções humanas, situadas, provisórias. Elas podem orientar a ação, mas não devem ser confundidas com a estrutura do mundo. Quando isso ocorre, a narrativa se transforma em dogma, e o dogma em instrumento de coerção.

Uma ética pós-redentora — se tal coisa é possível — teria de abandonar a esperança de um desfecho final que justificasse tudo o que veio antes. Teria de aceitar que o sofrimento não é compensado por um sentido último. Teria de reconhecer que a história não é um tribunal moral, mas um campo de forças contingentes. Essa ética não promete salvação; promete lucidez.

Essa lucidez não conduz necessariamente ao niilismo. Ao contrário, pode fundamentar uma forma mais modesta de responsabilidade. Se não há redenção garantida, cada gesto conta por si mesmo. Se não há progresso inevitável, cada melhoria é frágil e reversível. Se não há história universal orientada para o bem, então o cuidado com o presente torna-se ainda mais urgente.

O cristianismo, em sua forma original, continha elementos dessa lucidez. A consciência da queda, a desconfiança em relação ao poder, a valorização do fracasso aparente — tudo isso apontava para uma visão trágica da condição humana. Mas esses elementos foram frequentemente eclipsados pela tentação universalista e redentora. A modernidade, ao secularizar o cristianismo, preservou a tentação e descartou a cautela.

Lucas, o médico grego que ouviu a Torá em tradução e escreveu a história de uma salvação que ainda não se realizara, encontra-se no início dessa trajetória ambígua. Ele não é culpado por seus desdobramentos, mas tampouco é neutro. Sua obra inaugura uma maneira de pensar que tornou o Ocidente capaz de grandes criações e grandes destruições.

Talvez o que nos caiba hoje não seja rejeitar essa herança, mas torná-la consciente. Reconhecer que nossas narrativas de sentido são instrumentos, não revelações. Que a história pode ser contada de muitas maneiras, nenhuma delas definitiva. Que o universalismo, embora sedutor, tende a obscurecer as diferenças reais e as tragédias locais.

Em um mundo que já não acredita plenamente nem em Deus nem no progresso, a lição mais durável de Lucas pode ser involuntária: a de que a necessidade de sentido é humana, mas suas formas são históricas. Podemos viver sem redenção final, mas não sem histórias. A questão não é eliminá-las, mas habitá-las com ceticismo.

Esse ceticismo não nos salva. Mas talvez nos torne menos propensos a sacrificar o presente em nome de futuros imaginários. E, em um mundo saturado de promessas não cumpridas, isso já não é pouco.

Entre a disciplina silenciosa do aprendizado profundo e a ansiedade de parecer intelectual, cresce uma geração refém do conhecimento fragmentado.



Uma das marcas mais evidentes da decadência intelectual contemporânea não é a ignorância pura e simples, mas algo muito mais grave: a simulação do saber. O ignorante honesto, que reconhece seus limites, ainda está a um passo da verdade. Já o simulador, esse está perdido — porque substituiu o amor à verdade pelo culto à própria imagem.

Vivemos a era do conhecimento ornamental. As pessoas não estudam para compreender, mas para ostentar. Não buscam a transformação interior que o verdadeiro aprendizado impõe; buscam apenas os sinais externos de pertencimento a uma casta imaginária de “iluminados”. Acumulam leituras como quem coleciona selos, idiomas como quem coleciona souvenires, conceitos como quem empilha móveis inúteis numa casa sem alicerces.

O resultado é um intelecto inflado e uma consciência oca.

O verdadeiro conhecimento é hierárquico. Ele exige ordem, continuidade e submissão a algo maior que o próprio ego. Não se aprende tudo de uma vez porque o espírito humano não foi feito para a dispersão infinita. A inteligência cresce como uma árvore: raiz, tronco, galhos. Quem tenta cultivar apenas folhas acaba com um monte de lixo seco nas mãos.

Mas a mentalidade moderna odeia hierarquias. Ela prefere a simultaneidade caótica, o “um pouco de tudo”, o eterno recomeço que nunca chega a lugar algum. Esse comportamento não é sinal de curiosidade intelectual — é medo. Medo de se comprometer com um caminho, medo de descobrir que talvez não se seja tão brilhante quanto se imaginava, medo do julgamento silencioso da realidade.

Porque a realidade julga. Sempre.

Aprender uma disciplina seriamente significa aceitar anos de anonimato, de esforço invisível, de frustração. Significa reconhecer que alguém sabe mais do que você — e isso é intolerável para uma geração educada na idolatria da própria opinião. É por isso que tantos preferem a dispersão: ela oferece a ilusão de progresso sem o risco da obediência.

O sujeito que hoje estuda japonês, amanhã toca violão e depois se aventura no piano não está em busca de conhecimento — está fugindo de si mesmo. Cada novo interesse funciona como um anestésico temporário contra a angústia de não ser nada em particular. Ele não quer aprender; quer adiar indefinidamente o momento do confronto com sua própria mediocridade.

E aqui reside o ponto central: o verdadeiro fracasso não está em saber pouco, mas em jamais ter levado nada até o fim.

Não existe pensamento sem continuidade, não existe caráter sem disciplina, não existe cultura sem sacrifício. A erudição autêntica nasce do silêncio, da solidão e da paciência — três coisas que o homem moderno detesta. Ele prefere o barulho, a exibição e o entusiasmo passageiro.

Por isso florescem as seitas do pensamento mágico, do “universo conspirador”, da positividade vazia. São sistemas de crença desenhados sob medida para absolver o indivíduo de qualquer responsabilidade real. Se nada dá certo, a culpa é das energias, dos bloqueios invisíveis, do mundo hostil — nunca da própria indisciplina.

Mas a verdade permanece indiferente às fantasias humanas. Ela exige preparo. E quem não aceita pagar o preço do conhecimento acaba pagando algo muito mais caro: uma vida inteira de projetos inacabados, talentos desperdiçados e ressentimento silencioso.

O homem sério escolhe um caminho e o percorre até onde for capaz. O farsante intelectual escolhe muitos caminhos para nunca ter que responder por nenhum deles.

No fim, a distinção é simples — e cruel: uns vivem para saber; outros vivem para parecer que sabem. E a realidade, como sempre, não confunde um com o outro.




Chega-se a um ponto, após remover uma a uma as camadas de sentido herdadas, em que não resta mais nada a interpretar. Apenas o fato bruto de estar vivo. Como condição. Tudo o que antes parecia mistério revela-se hábito; tudo o que parecia revelação, técnica; tudo o que parecia transcendência, sobrevivência narrativizada. O efeito não é libertador. É exaustivo.

A expectativa de que a crítica conduza a uma forma superior de existência é, ela mesma, uma superstição tardia. O pensamento não redime. O esclarecimento não cura. A lucidez não melhora o mundo nem torna o indivíduo moralmente superior. No máximo, retira dele a desculpa de não saber. E mesmo essa retirada tem pouco efeito prático, pois os seres humanos raramente agem com base no que sabem.

O desencantamento não inaugura uma nova era; apenas encerra uma ilusão. O vazio que se abre depois não é um espaço a ser preenchido, mas um dado a ser suportado. Aqueles que tentam preenchê-lo com novos absolutos — humanidade, razão, justiça histórica, identidade — apenas repetem o gesto religioso sob outro disfarce. Mudam os nomes, preservam a fome.

A história do pensamento ocidental pode ser lida como uma sucessão de tentativas de negar essa condição. Primeiro, por meio de deuses; depois, por meio de sistemas; agora, por meio de subjetividades hipertrofiadas. Em todos os casos, a promessa é a mesma: existe um lugar, um estado, um alinhamento correto a partir do qual a vida fará sentido. E em todos os casos, a promessa falha do mesmo modo.

Nada vem depois da queda das grandes narrativas, exceto a insistência em erguer narrativas menores. Mais frágeis, mais provisórias, mais cientes de sua artificialidade — mas narrativas, ainda assim. O ser humano não suporta viver sem histórias. O máximo que o ceticismo pode oferecer é a recusa de confundir essas histórias com verdades últimas.

A catarse, se existe, não está na revelação de um sentido oculto, mas na aceitação de sua ausência. Não como gesto heroico, nem como vitória intelectual, mas como rendição silenciosa. O mundo não precisa ser justificado. A vida não precisa ser explicada. O sofrimento não exige legitimação metafísica. Ele acontece. Sempre aconteceu.

Quando se abandona a esperança de reconciliação, algo paradoxal ocorre: o peso diminui. Não porque as coisas melhorem, mas porque deixam de carregar expectativas indevidas. Não se exige mais do mundo aquilo que ele nunca prometeu oferecer. Não se cobra da história aquilo que ela nunca entregou. Não se espera da existência aquilo que nenhuma narrativa conseguiu garantir.

O ceticismo pleno não conduz à paralisia, mas à modéstia. Ele não proclama verdades, não convoca cruzadas, não promete futuros. Limita-se a observar que a maior parte do sofrimento humano foi produzida por certezas excessivas — religiosas, morais, políticas. E que talvez o único progresso possível seja aprender a viver com menos convicção.

Nada disso torna a vida mais significativa. Torna-a apenas mais honesta. E essa honestidade não consola, não eleva, não salva. Ela apenas remove o ruído. O silêncio que resta não é profundo, nem sagrado. É simplesmente o mundo, sem intérpretes privilegiados, sem testemunhas finais, sem “nós” que garantam pertencimento.

É nesse ponto — e apenas nele — que a investigação termina. Não porque tenha encontrado respostas, mas porque esgotou as perguntas que prometiam demais. O que permanece não é fé nem negação, mas uma forma de atenção despojada, incapaz de acreditar plenamente, incapaz também de fingir que isso seja uma perda trágica.

Nada foi revelado. Nada foi resolvido. E, ainda assim, é possível seguir vivendo. Não apesar disso, mas exatamente por isso.



Toda religião que perdura o faz porque responde a uma necessidade que não desaparece quando seus deuses se tornam inverossímeis. O erro recorrente dos críticos modernos é tratar a fé como um erro cognitivo, quando ela é, antes de tudo, uma estratégia adaptativa. Não nasce da ignorância, mas da exposição prolongada à instabilidade. Onde a vida é frágil, o sentido precisa ser robusto. E quanto mais arbitrário o mundo, mais rígidas tendem a ser as narrativas que o explicam.

A atração exercida pelas religiões antigas sobre sociedades já saturadas de mitos não se explica por seu exotismo, mas por sua austeridade. Elas prometiam menos prazer e mais disciplina. Menos consolo imediato e mais coerência a longo prazo. Num mundo em que os deuses haviam se tornado entretenimento ritual, surgia um tipo de divindade que exigia algo incômodo: constância. Essa exigência foi confundida, retrospectivamente, com profundidade moral.

A ideia de um deus que se interessa obsessivamente pelo comportamento humano não é uma elevação espiritual; é uma intensificação do controle. A vigilância divina antecipa, em forma mitológica, aquilo que os Estados modernos realizariam com meios burocráticos. Nada escapa ao olhar que tudo vê, nada é moralmente neutro, nada é apenas contingente. A vida inteira converte-se em matéria de julgamento.

Esse tipo de divindade não compete com outras porque seja mais verdadeira, mas porque é mais invasiva. Enquanto os deuses antigos exigiam rituais pontuais, o deus único exige o sujeito inteiro. Pensamentos, desejos, hesitações — tudo passa a ser relevante. A interioridade torna-se campo de batalha. Não surpreende que essa forma religiosa tenha sobrevivido à queda de impérios. Ela coloniza aquilo que os impérios não alcançam diretamente.

O interesse moderno por essas tradições costuma romantizar sua suposta superioridade ética. Mas o que se interpreta como elevação moral é, em grande parte, uma pedagogia do sofrimento. O valor não está na felicidade, mas na resistência. Não na harmonia com o mundo, mas na recusa dele. A vida boa não é a vida bem vivida, mas a vida corretamente suportada.

Quando essas narrativas são reinterpretadas filosoficamente, como ocorreu repetidas vezes ao longo da história, o que se faz não é purificá-las, mas torná-las socialmente reutilizáveis. O mito bruto, tomado ao pé da letra, torna-se inconveniente. Ele precisa ser traduzido em alegoria, psicologia ou metafísica. Não porque seja falso, mas porque se tornou impraticável. A alegoria é o modo civilizado de preservar aquilo que já não pode ser acreditado.

O problema é que, ao espiritualizar o mito, preserva-se sua estrutura normativa. A linguagem muda, mas a exigência permanece. O conflito entre o homem e uma instância superior reaparece como conflito entre razão e desejo, consciência e impulso, autenticidade e alienação. O vocabulário é novo; a tensão é a mesma. O indivíduo continua sendo convidado a travar uma guerra contra si mesmo em nome de um ideal abstrato.

A filosofia moral moderna herdou essa guerra interna e a proclamou universal. A ideia de que existe uma forma correta de vida, acessível a todos, independentemente das circunstâncias, é uma secularização direta do monoteísmo. Apenas substitui a obediência a Deus pela fidelidade a princípios. Mas princípios, como deuses, exigem sacrifícios — e raramente perguntam quem os pagará.

A promessa implícita dessas visões é sempre a mesma: se o indivíduo se alinhar corretamente com a ordem do mundo — seja ela divina, racional ou histórica —, o sofrimento encontrará justificativa. O que nunca se questiona é por que o sofrimento precisaria de justificativa. Talvez ele seja apenas um dado, não um problema a ser resolvido por narrativas redentoras.

O ceticismo radical começa quando se abandona a expectativa de reconciliação. Não entre homem e deus, nem entre sujeito e mundo, nem entre desejo e razão. O mundo não está em desordem; ele simplesmente não foi feito para acomodar nossas expectativas morais. A tentativa incessante de forçar essa acomodação produziu mais violência do que resignação.

Nesse sentido, as religiões não fracassaram. Elas cumpriram sua função com eficiência admirável. Produziram comunidades coesas, justificaram sofrimentos extremos e ofereceram um vocabulário para suportar o intolerável. O equívoco está em esperar delas — ou de seus sucedâneos seculares — algo que nunca prometeram: libertação.

O máximo que essas narrativas oferecem é anestesia simbólica. Elas não eliminam o caos; apenas o tornam narrável. E talvez isso seja tudo o que a maioria dos seres humanos jamais quis. Não a verdade, não a liberdade, mas uma história suficientemente convincente para atravessar a vida sem olhar diretamente para sua indiferença.



Sempre que um texto antigo abandona a narração impessoal e introduz um “nós”, não estamos diante de uma confissão espontânea, mas de uma técnica. Não é o sujeito que emerge; é o dispositivo retórico que entra em funcionamento. O pronome coletivo não acrescenta informação relevante, tampouco esclarece os fatos. Ele serve para outra coisa: criar a ilusão de proximidade e, com ela, uma obrigação tácita de confiança. O leitor não é convencido; é cooptado.

O testemunho, tão valorizado pela sensibilidade moderna, nunca foi garantia de verdade. É, no máximo, garantia de presença — e presença, por si só, nada prova. Pessoas estão presentes em todos os acontecimentos decisivos da história humana e quase sempre entendem mal o que presenciam. A convicção íntima de ter visto algo não protege ninguém do autoengano. Pelo contrário, costuma reforçá-lo.

A introdução súbita de uma voz que afirma “estávamos lá” cumpre uma função precisa: bloquear a dúvida antes que ela se formule. O leitor é convidado a aceitar o relato não porque ele seja coerente, mas porque questioná-lo pareceria indelicado. A dúvida passa a ser interpretada como desconfiança pessoal, não como exigência intelectual. Trata-se de um deslocamento sutil, porém eficaz, da crítica para o campo moral.

As religiões históricas não se estruturaram sobre provas, mas sobre relações de lealdade. Não exigem que se acredite em fatos, mas que se confie em narradores. A fé não é assentimento a proposições; é adesão a uma cadeia de vozes. O erro do racionalismo ingênuo foi imaginar que bastaria desmontar os enunciados para dissolver a crença. Mas crenças não sobrevivem porque são verdadeiras; sobrevivem porque organizam vínculos humanos.

A figura do acompanhante discreto — aquele que não protagoniza, mas legitima — é recorrente em toda construção de autoridade simbólica. Quem escreve não precisa dominar; basta enquadrar. Ao permanecer parcialmente invisível, o narrador preserva a aparência de neutralidade enquanto exerce controle decisivo sobre o sentido. A história, como sempre, é menos moldada por quem age do que por quem escolhe o que será lembrado.

A modernidade, que se imagina vacinada contra tais artifícios, apenas substituiu os personagens. Onde antes havia apóstolos, há especialistas. Onde havia testemunhas inspiradas, há sobreviventes, pacientes, usuários, identidades narrativas. O mecanismo é o mesmo: o relato pessoal converte-se em autoridade inquestionável, não porque seja mais verdadeiro, mas porque parece mais vulnerável. Questioná-lo soa cruel. E a crueldade tornou-se o pecado capital de uma cultura sem transcendência.

O apego contemporâneo à experiência vivida como critério último de verdade revela menos maturidade epistemológica do que desespero simbólico. Quando nenhuma visão de mundo consegue se impor de forma estável, o indivíduo recorre à própria biografia como âncora. Mas biografias são materiais instáveis. Elas mudam conforme a memória muda, conforme o vocabulário muda, conforme o clima moral do tempo muda.

Os textos antigos que continuam a nos inquietar não o fazem porque contenham verdades profundas, mas porque exploram com eficiência essa fragilidade humana. Eles oferecem enquadramentos duráveis. Não explicam o mundo; ensinam como suportá-lo. Essa utilidade prática explica sua longevidade muito melhor do que qualquer inspiração divina.

A investigação histórica que busca recuperar a “intenção original” desses textos parte de uma ilusão semelhante à religiosa. Supõe que, por trás das camadas de interpretação, exista um núcleo estável, acessível, capaz de resolver ambiguidades posteriores. O que se encontra, no entanto, é apenas outra camada. Não há origem pura, apenas versões mais antigas do mesmo problema.

O efeito desmoralizante da leitura crítica não reside na perda da fé, mas na constatação de que nunca houve um ponto de apoio externo à narrativa. A autoridade sempre foi interna ao texto, reforçada pela repetição, pelo hábito e pelo medo da exclusão. O “nós” não indica comunidade real; indica apenas a fronteira entre quem pertence e quem não pertence.

No fim, a pergunta decisiva não é quem esteve lá, mas por que ainda estamos aqui, lendo isso, procurando nesses vestígios um sentido que eles nunca prometeram fornecer. Talvez porque, mesmo cientes do artifício, continuemos dependentes dele. O ceticismo não nos liberta das narrativas; apenas nos impede de acreditar plenamente em qualquer uma delas.



Tornar-se cético não é um gesto heroico, nem um triunfo do espírito sobre a superstição. É, quase sempre, um acidente. Algo que ocorre quando a engrenagem simbólica que sustentava o mundo deixa de girar sem que outra esteja pronta para substituí-la. O cético não escolhe a dúvida; ele acorda nela, como alguém que percebe, tarde demais, que a casa em que vivia não tinha fundações. O erro mais comum é supor que essa condição produza liberdade. Na verdade, ela produz apenas lucidez suficiente para perceber o grau de servidão em que se viveu — e a impossibilidade de escapar completamente dela.

A crença religiosa, ao contrário do que imaginam seus críticos mais entusiasmados, raramente se baseia na ingenuidade intelectual. Ela se ancora, sobretudo, na necessidade humana de continuidade narrativa. Os deuses oferecem aquilo que a experiência comum se recusa a garantir: sentido retrospectivo e promessa prospectiva. Abandoná-los não elimina essa necessidade; apenas a desloca. Por isso, o mundo moderno está repleto de ex-crentes que continuam esperando salvação — agora sob a forma de progresso, ciência, emancipação ou terapia.

O ateísmo contemporâneo, quando militante, é apenas uma teologia negativa mal resolvida. Mantém intacta a estrutura mental da fé: a crença num fim último da história, a expectativa de redenção coletiva e a convicção de que a verdade, uma vez conhecida, produzirá efeitos morais desejáveis. A diferença é que, no lugar de Deus, instala-se a Humanidade — entidade ainda mais abstrata e certamente mais cruel, pois não pode ser responsabilizada por nada.

A desconfiança genuína não se dirige apenas às crenças herdadas, mas também às crenças adquiridas como antídoto contra elas. O cético que se contenta em negar o sobrenatural costuma fazê-lo para preservar intacta alguma outra ficção reconfortante. A mais persistente delas é a ideia de que os seres humanos aprendem com a experiência histórica. Nada na sucessão de catástrofes políticas, guerras religiosas e entusiasmos ideológicos autoriza essa esperança. O passado não ensina; ele apenas se repete sob novas justificativas morais.

A figura de Jesus, como tantas outras figuras fundadoras, sobrevive menos pelo que disse ou fez do que pelo que foi feito com ela. As tradições não se perpetuam porque são verdadeiras, mas porque são úteis. Elas oferecem esquemas interpretativos que reduzem a complexidade da experiência e tornam o sofrimento suportável. A utilidade, contudo, cobra um preço: exige adesão incondicional e pune a ambiguidade. É por isso que as figuras centrais das religiões, quando observadas de perto, produzem mais cegueira do que iluminação. Não porque escondam algo, mas porque concentram excesso de significado.

O erro recorrente do pensamento religioso — e de suas versões seculares — é confundir intensidade emocional com verdade ontológica. Experiências transformadoras são tratadas como revelações universais. A conversão individual converte-se em prova metafísica. No entanto, estados mentais não são janelas para a estrutura do mundo; são apenas eventos neurológicos interpretados à luz de narrativas disponíveis. Se essas narrativas fossem outras, a experiência seria a mesma, mas o significado atribuído a ela mudaria radicalmente.

É por isso que toda investigação honesta sobre a origem das crenças precisa começar não no ápice simbólico, mas nas margens. Não nos milagres, mas nos documentos. Não na revelação, mas na transmissão. O que sobrevive não é o acontecimento, mas o relato. E todo relato carrega a marca de quem o produziu, das circunstâncias em que foi produzido e das finalidades — conscientes ou não — que ele serviu.

A obsessão moderna pela autenticidade é, nesse sentido, profundamente anacrônica. Esperar dos textos antigos a transparência factual que exigimos de um relatório contemporâneo é desconhecer sua função original. Eles não foram escritos para registrar o que aconteceu, mas para organizar o que devia ser lembrado. A memória coletiva é sempre seletiva, e sua seleção obedece menos à verdade do que à sobrevivência.

Há uma ingenuidade persistente na tentativa de distinguir, de modo definitivo, entre fé e manipulação. As duas caminham juntas desde o início. Toda crença compartilhada exerce poder, e todo poder simbólico tende a se autopreservar. Isso não implica uma conspiração consciente, mas um processo evolutivo: as narrativas que mobilizam adesão emocional profunda são aquelas que permanecem. As outras desaparecem sem deixar vestígios.

Assim, quando se retorna aos textos fundadores não em busca de conforto, mas de compreensão, a decepção é inevitável. Não se encontra ali uma origem pura, mas um emaranhado de vozes, interesses e interpretações concorrentes. O que chamamos de tradição é apenas o resultado contingente de disputas esquecidas. E talvez seja essa constatação — mais do que qualquer dúvida metafísica — que torna o ceticismo irreversível.


Quando o fim não acontece, algo se quebra de forma mais silenciosa. Não é o mundo que entra em colapso, mas a confiança na própria espera. O cristianismo precisou aprender isso cedo. A geração que acreditava que veria o retorno iminente de Cristo morreu sem testemunhar nada além da continuidade banal do sofrimento. A escatologia não foi refutada; foi adiada. O adiamento tornou-se permanente, e a exceção converteu-se em norma. A partir daí, viver passou a significar habitar uma promessa em ruínas.

Esse estado — viver depois de um fim que não veio — é a condição psicológica da modernidade tardia. Herdamos expectativas grandiosas e instrumentos poderosos, mas não herdamos uma razão convincente para usá-los. O progresso, outrora inevitável, tornou-se incerto. A redenção histórica, antes garantida, transformou-se em slogan. O futuro continua a ser invocado, mas já não convence inteiramente nem mesmo os que o proclamam.

Paulo jamais concebeu essa situação. Sua fé exigia urgência. Um cristianismo sem fim iminente seria, para ele, uma contradição. No entanto, foi exatamente esse cristianismo diluído que triunfou: um sistema capaz de sobreviver à frustração de sua própria profecia central. Ao fazê-lo, ensinou ao Ocidente uma lição decisiva: uma crença não precisa cumprir suas promessas para dominar uma civilização. Basta estruturar seus desejos.

As ideologias modernas aprenderam bem essa lição. Cada fracasso é interpretado como etapa. Cada desastre, como confirmação. A promessa se afasta à medida que o caminho se alonga. O fim permanece sempre à frente, como miragem. E, como toda miragem, é mais poderosa à distância do que de perto.

O resultado não é esperança, mas exaustão. Uma humanidade cansada de esperar, mas incapaz de desistir da espera. A lucidez, quando surge, é breve e desconfortável. Ela sugere que talvez não haja conclusão, nem síntese, nem redenção — apenas continuidade. Essa ideia não inspira movimentos, nem revoluções, nem fé. Por isso é rapidamente descartada.

Gray não propõe substitutos. Seu ceticismo não é um novo sistema, mas uma recusa. Recusa-se a acreditar que a história tenha aprendido algo. Recusa-se a ver na tecnologia um antídoto para a natureza humana. Recusa-se, sobretudo, a transformar o sofrimento em etapa de um plano maior. Para ele, a condição humana não é um problema a ser resolvido, mas um fato a ser suportado.

O paulinismo, nesse sentido, foi uma recusa ainda mais radical — mas em direção oposta. Recusou-se a aceitar o mundo tal como é e apostou tudo em sua superação iminente. Essa aposta falhou, mas deixou rastros profundos. Vivemos entre eles. Cada vez que alguém fala em “momento decisivo da humanidade”, ecoa uma voz antiga. Cada vez que se promete que esta será a última crise antes da solução final, repete-se um gesto aprendido há dois mil anos.

Talvez o desencanto contemporâneo não seja sinal de decadência, mas de saturação. Saturação de promessas não cumpridas. Saturação de futuros que nunca chegam. Saturação de narrativas que exigem sacrifícios constantes sem oferecer descanso. Se há alguma sabedoria possível nesse cansaço, ela não aponta para um novo fim, mas para a aceitação da ausência dele.

Isso não nos salvará. Não nos tornará melhores. Não impedirá desastres. Apenas nos livrará de uma superstição persistente: a de que a história nos deve alguma coisa. Paulo acreditou que o mundo estava prestes a ser julgado. O mundo continuou. Nós acreditamos que ele precisa ser corrigido. Ele continuará também. A diferença é que já não podemos alegar surpresa.

Nada indica que aprenderemos a viver sem fins últimos. Mas talvez possamos, ao menos, reconhecer o custo de insistir neles. O erro que venceu moldou tudo à sua imagem. Sobreviveu às religiões, às ideologias e às críticas. Continua operando sempre que confundimos desejo com destino. O fim do mundo não veio. O que veio foi algo mais difícil de suportar: a necessidade de viver sem ele.



Há um tipo particular de conforto na ideia de colapso. Não o conforto da salvação, mas o da absolvição. Se tudo está condenado, ninguém é responsável. A escatologia cristã oferecia exatamente isso: um mundo tão corrompido que apenas sua destruição poderia fazer justiça. Paulo não precisava explicar por que a vida humana era tão marcada pela dor; bastava afirmar que ela estava prestes a terminar. O sofrimento não exigia solução, apenas resistência.

John Gray identifica nesse gesto um traço recorrente do pensamento ocidental: a tendência a transformar o desespero em narrativa. Quando a realidade se mostra opaca e hostil, inventa-se um enredo no qual essa hostilidade tem função. O colapso deixa de ser um fracasso e passa a ser um clímax. A catástrofe, nesse sentido, não é temida; é aguardada. Ela promete encerrar a confusão, simplificar o mundo, pôr fim à ambiguidade.

Paulo falava a homens e mulheres esmagados por impérios, doenças e hierarquias rígidas. A promessa do fim não lhes oferecia poder, mas dignidade. Não prometia que venceriam, apenas que o jogo seria interrompido. Essa é uma promessa sedutora, sobretudo para os que nunca foram convidados a ganhar. O apocalipse iguala todos no desastre, e essa igualdade negativa pode parecer justiça.

As versões modernas dessa lógica são menos explícitas, mas não menos eficazes. Quando se anuncia o colapso ambiental inevitável, a falência moral irreversível ou a extinção iminente da espécie, muitas vezes o tom não é apenas de alerta, mas de alívio. O futuro aterrador funciona como álibi. Se nada pode ser salvo, nada precisa ser cuidado. Se tudo está perdido, o fracasso deixa de ser pessoal.

Gray observa que o pessimismo contemporâneo raramente é genuíno. Ele não aceita a ausência de sentido; ele a dramatiza. Em vez de reconhecer que a vida humana sempre foi precária, prefere imaginar que estamos vivendo um momento excepcional, o último ato de uma peça cósmica. Essa excepcionalidade devolve importância a uma espécie que, no fundo, teme sua irrelevância.

O cristianismo paulino também era uma doutrina de exceção. O presente não era apenas ruim; era terminal. Essa percepção intensificava tudo: a fé, o ódio, a solidariedade, a exclusão. Quando o tempo é curto, não há espaço para nuances. A urgência elimina a tolerância. Essa dinâmica se repete sempre que uma crise é tratada como definitiva, e não como mais uma entre tantas.

Há uma ironia cruel nisso. As sociedades que mais falam sobre o fim são aquelas que mais investiram na ideia de controle. Planejamento, previsão, gestão de riscos — tudo isso pressupõe um futuro administrável. Quando esse futuro escapa, a reação não é humildade, mas pânico moral. O apocalipse surge como compensação simbólica para a perda da ilusão de domínio.

Paulo não oferecia controle algum. Oferecia submissão. Dizia: nada do que fizeres mudará o curso dos acontecimentos, exceto tua adesão a eles. O mundo acabará; resta escolher de que lado estarás quando isso acontecer. Essa estrutura permanece intacta nas escatologias seculares. Não importa o quão inevitável seja o desastre anunciado; sempre há uma ortodoxia a ser seguida, uma linguagem correta, um conjunto de gestos que sinalizam pertencimento aos “justos”.

O resultado é uma moralidade de trincheira. O mundo é dividido não entre os que compreendem e os que ignoram, mas entre os que aceitaram a narrativa e os que a resistem. Como no tempo de Paulo, a incredulidade não é vista como erro intelectual, mas como falha ética. Não acreditar torna-se uma forma de culpa.

Nada disso impede que o mundo continue. Ele continua, apesar das profecias, apesar das promessas, apesar das advertências. Continua de modo irregular, injusto e imprevisível. O que não continua é a paciência humana com essa continuidade sem sentido. Incapazes de aceitar a persistência do mundo, os homens insistem em anunciar seu fim.

Talvez o verdadeiro legado de Paulo não seja a fé cristã, mas a incapacidade ocidental de conviver com a duração. Com o fato de que a vida não se resolve, não se explica e não se encerra de maneira satisfatória. A escatologia foi uma resposta desesperada a essa constatação. Seu fracasso não a desacreditou; apenas a multiplicou.



A ideia de futuro, tal como herdada pela modernidade, não é uma descoberta racional, mas um resíduo teológico. Antes de Paulo, o tempo não precisava justificar-se. Ele passava, repetia-se, corroía tudo igualmente. A escatologia cristã introduziu uma exigência inédita: o tempo deveria responder por si mesmo. Deveria conduzir a algum lugar. Deveria culminar. A partir daí, viver passou a significar esperar — não no sentido trivial, mas metafísico. Esperar que o mundo se explicasse.

John Gray insiste que essa expectativa não é apenas ilusória, mas perigosa. Quando o futuro é investido de sentido moral, o presente torna-se descartável. Sacrifícios deixam de ser tragédias e passam a ser meios. Mortes tornam-se estatísticas provisórias. Catástrofes são toleradas como etapas necessárias. A crueldade, quando exercida em nome de um fim último, adquire um ar de virtude.

Paulo acreditava que o mundo estava condenado. Não havia como salvá-lo, apenas atravessá-lo. A destruição iminente relativizava todas as perdas. Esse desprezo pelo mundo não impediu a violência; apenas a tornou irrelevante. Se tudo estava prestes a desaparecer, nada precisava ser preservado. O mesmo raciocínio reaparece, secularizado, sempre que se declara que certas formas de vida são incompatíveis com o futuro da humanidade.

O problema não é prever desastres. Catástrofes existem e continuarão existindo. O problema é transformá-las em narrativa redentora. Quando o colapso deixa de ser um risco e passa a ser um capítulo necessário da história, ele se torna desejável. Há uma estranha excitação moral em anunciar o fim. Um alívio perverso em acreditar que a complexidade do mundo será reduzida a um julgamento final, ainda que simbólico.

O cristianismo primitivo viveu dessa excitação. Cada terremoto, cada fome, cada perseguição parecia confirmar que o fim estava próximo. Quando o fim não veio, a excitação precisou ser domesticada. O apocalipse foi empurrado para um horizonte indefinido. A espera tornou-se longa, mas não menos intensa. A história passou a ser lida como uma série de sinais, nunca como um processo sem direção.

A modernidade herdou essa leitura paranoica do tempo. Mesmo quando se declara pós-religiosa, continua à procura de sinais. Crises econômicas, colapsos ambientais, convulsões políticas — tudo é interpretado como prenúncio de um ponto de inflexão decisivo. O vocabulário muda, mas a estrutura permanece. Ainda se fala em “antes” e “depois”, em “ponto sem retorno”, em “momento decisivo da humanidade”. O apocalipse foi traduzido em linguagem técnica.

Gray observa que essa obsessão com o futuro não melhora nossa relação com o presente. Pelo contrário, ela a deteriora. Incapazes de aceitar a contingência, os homens projetam sobre o amanhã expectativas que o amanhã não pode cumprir. Quando essas expectativas falham, como sempre falham, a frustração se converte em raiva. O futuro, que deveria redimir, passa a acusar.

A escatologia cristã oferecia ao menos uma saída: o fracasso do mundo era compensado por uma promessa fora dele. As escatologias seculares não têm essa válvula de escape. Quando o progresso decepciona, não há para onde olhar. A esperança frustrada não se dissolve; ela se radicaliza. Exige mais sacrifícios, mais vigilância, mais pureza ideológica. O fim, sempre adiado, torna-se mais tirânico.

Paulo acreditava que a morte perdera seu poder porque seria abolida em breve. Essa crença permitia desprezá-la. Mártires podiam ser celebrados. O sofrimento adquiria valor. Hoje, sem a promessa da ressurreição, a morte voltou a ser absoluta. Ainda assim, continuamos a tratá-la como se fosse provisória, desde que ocorra em nome da causa certa. O paradoxo é cruel: rejeitamos a transcendência, mas mantemos sua lógica sacrificial.

Talvez o traço mais persistente do paulinismo seja a recusa em aceitar que nada nos espera. Que não há síntese final, nem reconciliação, nem ajuste de contas universal. Para Gray, essa recusa é compreensível, mas infantil. O desejo de sentido não cria sentido. O anseio por redenção não torna o mundo redimível. Persistir nessa expectativa é prolongar o sofrimento que ela promete curar.

Aceitar a ausência de finalidade não nos torna melhores, nem mais felizes. Apenas mais lúcidos. A história não caminha para lugar algum. Ela apenas acontece, de maneira desigual, violenta e indiferente. O futuro não é uma promessa; é uma repetição com variações. O erro de Paulo não foi acreditar no fim do mundo, mas acreditar que o mundo precisava de um fim para fazer sentido.


A conversão, no sentido paulino é uma fratura. Um colapso interior que torna a vida anterior irreconhecível, quase obscena. Paulo não propõe um aperfeiçoamento da existência humana; ele a declara inviável. Tudo o que veio antes é lixo, carne morta, erro. O homem convertido não é alguém que aprendeu algo novo, mas alguém que foi arrancado de si mesmo. Essa violência inicial nunca foi superada pelo cristianismo; apenas foi administrada.

John Gray insiste que as grandes crenças redentoras exigem esse gesto inaugural de aniquilação. Para que o futuro absoluto possa nascer, o presente precisa ser desqualificado. Nada do que existe basta. Nada do que somos merece continuar. A conversão não liberta; ela substitui uma prisão por outra, geralmente mais estreita, porém dotada de sentido. A liberdade prometida é sempre adiada, situada além da morte, além da história, além do mundo tal como é.

O fascínio de Paulo não está na coerência de seus argumentos, mas na intensidade de sua experiência. Ele não persuade; ele contagia. Não demonstra; afirma. Seu discurso não apela à razão, mas à exaustão. Dirige-se aos que já não suportam o peso de viver sem uma explicação última. Aos que experimentaram o fracasso, a doença, a culpa ou o vazio como algo intolerável. A esses, ele oferece uma narrativa total, capaz de reorganizar o caos interior ao preço da submissão completa.

Essa dinâmica não desapareceu. Apenas mudou de vocabulário. As ideologias modernas também exigem conversões. Não no sentido religioso, mas psicológico. Pedem que o indivíduo reconheça que viveu até então numa falsa consciência, numa alienação estrutural, numa ignorância moral. A partir daí, tudo se reordena. O passado torna-se erro, o presente torna-se luta, o futuro torna-se promessa. A semelhança com o esquema paulino não é acidental; é hereditária.

A conversão tem ainda outra função: ela protege o convertido da ambiguidade. O mundo, antes confuso e opaco, torna-se subitamente legível. O bem e o mal se separam com clareza brutal. Os salvos e os perdidos ocupam campos distintos. A dúvida, que antes corroía, agora é sinal de fraqueza ou tentação. Essa clareza é intoxicante. Em troca dela, o convertido aceita a perda de complexidade, de ironia, de hesitação — tudo aquilo que torna a vida humana suportável, mas intelectualmente instável.

Paulo não tolerava a indiferença. Os que não acreditavam eram inimigos, mesmo quando silenciosos. A neutralidade era impossível porque o tempo era curto. A urgência escatológica transforma qualquer desacordo em ameaça existencial. Essa lógica reaparece sempre que uma visão de mundo se apresenta como a última oportunidade antes do desastre final. Quem não adere não é apenas ignorante; é cúmplice do mal que se aproxima.

Gray observa que o humanismo secular herdou esse traço sem perceber. Ao declarar certas crenças ou atitudes como inaceitáveis para o futuro da humanidade, ele recria a divisão paulina entre os que estão do lado certo da história e os que serão varridos por ela. A história, novamente personificada, assume o papel que antes cabia a Deus. Ela julga, pune e absolve. Não há apelação possível.

A diferença é que, ao contrário do cristianismo primitivo, as escatologias modernas não admitem seu caráter mítico. Apresentam-se como científicas, racionais, inevitáveis. O fracasso, quando ocorre, é atribuído a desvios contingentes, nunca à estrutura da crença. O fim prometido é sempre adiado, mas jamais abandonado. Assim como os primeiros cristãos aprenderam a conviver com a ausência do retorno de Cristo, os modernos aprenderam a conviver com a ausência do progresso definitivo.

O custo psicológico dessa espera é elevado. Viver orientado para um futuro que não chega produz ressentimento, ansiedade e uma agressividade latente. A promessa não cumprida precisa ser defendida com mais fervor do que a promessa recente. Quanto mais o tempo passa, mais intolerável se torna a dúvida. A crença, para sobreviver, precisa se endurecer.

Paulo acreditava que o sofrimento era transitório. Que a dor, a doença e a injustiça eram sinais de um mundo prestes a ser substituído. Essa crença não eliminava o sofrimento; apenas o reinterpretava. Dava-lhe um lugar numa narrativa maior. Quando essa narrativa se rompe, o sofrimento retorna em estado bruto, sem explicação nem recompensa. O homem moderno herdou a dor, mas perdeu o enredo que a tornava suportável.

Talvez por isso as escatologias seculares sejam tão agressivas. Elas precisam compensar a ausência de transcendência com intensidade moral. Onde não há salvação garantida, há cruzadas intermináveis. Onde não há juízo final, há julgamentos constantes. O espírito de Paulo sobrevive menos na fé religiosa do que na recusa moderna de aceitar a finitude sem promessas.
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