Como a música gerada por inteligência artificial ameaça transformar o mundo sonoro em ruído infinito — e por que a imperfeição humana talvez seja nossa última linha de resistência


A história da música popular poderia ser contada como uma sucessão de rupturas tecnológicas: da prensa de vinil à fita cassete, do CD ao MP3, do Napster ao Spotify. Cada inovação prometia libertar algo — o ouvinte, o artista, o mercado — mas invariavelmente aprisionava outra coisa. A cada salto, algo se ganhava em conveniência e se perdia em densidade, como se a evolução cultural fosse um jogo de soma zero. Mesmo assim, nada preparou a indústria — e talvez a cultura — para a irrupção recente da música gerada por inteligência artificial.

Nos últimos meses, uma história ganhou as manchetes especializadas: a plataforma Suno, criada em 2022 por um grupo de engenheiros fascinados por síntese algorítmica, estaria permitindo que usuários criassem, a cada quinze dias, o equivalente ao catálogo inteiro do Spotify.* A comparação é quase alegórica demais para ser levada ao pé da letra. Mas como toda boa metáfora tecnológica, ela não importa pelo rigor, mas pela atmosfera que revela: estamos diante de um dilúvio.

Para o leigo, a notícia parece apenas mais uma façanha da inteligência artificial — mais uma entre tantas que se acumulam como poeira cósmica nas redes sociais. Para o artista, ela é devastadora: se qualquer pessoa pode gerar uma música minimamente convincente em minutos, o que resta do ofício? E para as plataformas — essas corporações erguidas sobre bibliotecas infinitas — o problema é imediato. Como separar o trigo do spam quando o spam agora pode rimar, modular e fazer fade-out?

A Suno, nos seus comunicados públicos, celebra a “democratização da criação musical”. Os defensores falam em “acesso”, “inovação” e “empoderamento”, como se a produção artística fosse antes uma casta sacerdotal guardando segredos de Estado. Mas o que a tecnologia promete abrir, muitas vezes termina por diluir. Nunca tivemos tanta música. Tampouco tivemos tão pouco silêncio. O excesso se impõe como forma de empobrecimento.

O Spotify, que por duas décadas monopolizou o imaginário do futuro da música, se vê — ironia das ironias — antiquado. Sua ambição original era conter o mundo inteiro de sons em um único app. Agora enfrenta um adversário que não apenas contém o mundo, mas o produz — incessantemente, por encomenda, numa escala que torna ridículas as noções clássicas de catálogo, curadoria e memória.

Pela primeira vez, uma plataforma não disputa a música existente, mas sim a música possível. E isso ameaça os alicerces simbólicos da própria ideia de arte. O que significa um “catálogo” quando sua extensão se renova infinitamente? Como funciona um mercado onde a abundância, e não a escassez, é o maior problema? E como se remunera alguém num sistema em que o alguém já não é mais humano?

É nesse ponto que começa o conflito — mais tecnológico do que estético, mais econômico do que filosófico, mas inevitavelmente tudo isso ao mesmo tempo. A música, que era ao mesmo tempo mercadoria e expressão, torna-se agora um subproduto algorítmico. E, diante desse cenário, até o silêncio parece mais precioso do que nunca.

A autoria sempre foi uma ficção útil. Não no sentido de ser falsa, mas no sentido de funcionar como uma peça de engenharia cultural: ela organiza responsabilidades, atribui mérito, cria narrativas. Quem compôs? Quem tocou? Quem influenciou quem? Tais perguntas moldam a história da música — e a história, como sabemos, é o principal instrumento político da cultura.

Com a chegada massiva das IAs de geração musical, essa ficção enfrenta sua mais profunda crise desde o advento da gravação fonográfica. A Suno, o Udio e dezenas de plataformas emergentes produzem faixas em segundos, com resultados que os evangelistas da tecnologia tratam como equivalentes — ou superiores — aos trabalhos de músicos humanos. A música, nesse novo regime, deixa de ser tradução de uma experiência vivida e passa a ser uma síntese estatística de milhões de experiências alheias. Uma colagem invisível de tudo que já foi ouvido.

Para muitos entusiastas, isso não é um problema; é a democratização final. Se a criatividade é recombinação, por que impedir que máquinas combinem o que quiserem? A resposta é simples: porque, ao contrário das máquinas, seres humanos precisam comer.

Um artista independente — aquele que grava em casa, toca em bares, vende camisetas no Spotify for Artists — já vivia no limite da precariedade. O streaming, ao mesmo tempo em que lhe deu vitrine global, destruiu seu poder de negociação. Recebia centavos, às vezes milésimos de centavos, por reprodução. Agora, com a enxurrada de músicas artificiais, o valor de cada stream real tende a cair ainda mais. Plataformas já relatam crescimento descontrolado de uploads de “faixas de baixa qualidade”, “interferência algorítmica” e até “catálogos inteiros gerados para burlar sistemas de monetização”.

O que era uma competição entre artistas virou uma competição entre artistas e máquinas. E, na economia da abundância infinita, o artista perde sempre.

Mas o conflito não é apenas econômico. É estético. É ontológico. A música algorítmica esvazia a noção de autoria — não porque a destrói, mas porque a torna irrelevante. Quando há dez versões indistinguíveis de uma mesma “vibe” — todas criadas por prompts como “faça um pagode triste, com letra sobre abandono, estilo Belo, mas sem plagiar” — a singularidade se dissolve como sal na água.

O público, por sua vez, tende a não perceber. Não por ignorância, mas por cansaço. A lógica das plataformas transformou a música em trilha sonora para atividades periféricas: malhar, trabalhar, dormir, chorar discretamente. A música deixou de ser centro e virou utilidade. E utilidades não requerem autoria. Requerem eficiência.

Esse é o ponto onde a crise do artista encontra a crise do ouvinte: ambos se tornam intercambiáveis, ambos perdem profundidade. O artista vira usuário de ferramentas. O ouvinte vira alvo de perfis comportamentais. A distância entre os dois, que outrora definia a relação estética, colapsa em ruído.

Se o progresso tecnológico tivesse algum compromisso com o humano, esse seria o momento de desaceleração e reflexão. Mas não vivemos numa época de compromissos; vivemos numa época de métricas. E as métricas — volume, engajamento, retenção — favorecem o algoritmo.

Assim, a autoria segue sitiada. Os artistas resistem como podem. As plataformas tentam, sem convicção, filtrar o dilúvio. E, no meio desse impasse, uma pergunta crucial permanece sem resposta: será que ainda precisamos saber quem fez uma música para que ela seja música?

Quando uma tecnologia emerge com a força de uma inundação, tende-se a imaginar dois possíveis desfechos: ou ela destrói tudo no caminho, ou molda o terreno até encontrar um curso previsível. A história humana raramente confirma um desses extremos. O que acontece, quase sempre, é a convivência conflituosa entre ruínas e adaptações. A música gerada por inteligência artificial não será diferente.

A seguir, três cenários futuros — não excludentes, não definitivos, mas igualmente plausíveis — que ajudam a imaginar o que pode vir após a tempestade.

1. O Futuro do Descontrole — A Era do Ruído Infinito

Nesse cenário, o mais provável em termos de inércia tecnológica, as plataformas falham em criar mecanismos eficazes para distinguir música humana de música gerada por IA. Os sistemas de identificação, inundados por uploads massivos, tornam-se inoperantes. O catálogo do Spotify — já estimado em mais de 100 milhões de faixas — dobra, triplica, quadruplica. A proporção entre “música humana” e “música sintética” torna-se irrelevante: a maior parte do catálogo agora é composta por faixas criadas automaticamente, seja por curiosidade de usuários, seja por sistemas terceirizados treinados para inflar números de monetização.

Os artistas independentes desaparecem das recomendações. Não porque suas músicas sejam ruins, mas porque a lógica algorítmica privilegia abundância: múltiplas versões de algo “quase igual” têm mais chance de encaixar em playlists genéricas do que um artista raro e singular. A descoberta musical — o coração da cultura pop nas últimas décadas — se transforma em uma tarefa arqueológica. Ser artista deixa de ser um ofício e vira uma excentricidade, quase um ritual anacrônico, como pintar com pigmentos naturais ou escrever cartas à mão.

Nesse futuro, o ouvinte resigna-se ao ruído. Playlists deixam de ser curadas e passam a ser automatizadas. Cada atividade — estudar, correr, cozinhar, sofrer — possui dezenas de milhares de trilhas “otimizadas”, indistinguíveis entre si. A música deixa de ser arte e passa a ser ambientação.

Um tipo de muzak global, infinito, sempre disponível, sempre morno.

2. O Futuro da Moderação — A Convergência Forçada

Este cenário parte da premissa de que a crise é grande demais para que as plataformas ignorem. Pressionadas por artistas, selos e governos, empresas como Spotify, Apple Music e YouTube Music implementam políticas agressivas: identificação obrigatória de IA, limites de upload, verificação de autoria, remuneração diferenciada para obras humanas, filtros de spam, auditorias, e até “zonas de isolamento” para músicas sintéticas.

A engenharia não resolve tudo — nunca resolve — mas cria zonas respiráveis. A música gerada por IA continua existindo, mas é segregada em playlists temáticas, bibliotecas próprias, selos identificáveis. Algo como “conteúdo adulto”, mas para algoritmos.

Artistas continuam reclamando, ouvintes continuam confusos, e as plataformas continuam ganhando dinheiro — mas a crise estabiliza. Um equilíbrio imperfeito se estabelece: músicas humanas convivem com músicas robóticas, cada qual com seu ecossistema. Uma espécie de apartheid musical, mas funcional.

Nesse futuro, a autoria não é restaurada integralmente, mas retomada como valor cultural. Ter sido “feito por uma pessoa” torna-se um selo de distinção, como vinil hoje é para colecionadores: uma prova de autenticidade num mundo saturado de sintéticos.

3. O Futuro da Radicalização — A Renascença Analógica

Uma minoria de artistas, cansada da competição desigual com máquinas, abandona as plataformas de streaming. Não por purismo, mas por desespero racional. Criam microcomunidades: bandas que só se apresentam ao vivo, selos que só lançam CDs, músicos que fazem turnês em circuitos alternativos. A música retorna ao corpo, ao ensaio, ao suor. Ou se torna exclusiva, vendida por assinatura direta, como se cada artista fosse uma pequena rádio pirata no subterrâneo digital.

Curiosamente, esse cenário não surge contra a tecnologia, mas graças a ela. Quanto mais saturado o universo das IAs, mais raro e valioso se torna o gesto humano. A imperfeição — antes vista como falha — vira marca de autenticidade. Um vibrato torto, uma respiração captada no microfone, o timbre irregular de uma guitarra vintage: tudo isso será, para um nicho de ouvintes, mais poderoso do que milhares de faixas perfeitas e vazias.

Nesse futuro, a música humana volta a ser uma arte de resistência. Pequena, mas viva. Silenciosa, mas pulsante.

Esses três cenários não se anulam: podem coexistir, sobrepor-se, agravar-se. O mundo real raramente escolhe um único caminho. E talvez o resultado final não esteja nas mãos das plataformas, nem dos artistas, mas dos ouvintes — esse grupo amorfo, volátil, que passou a ouvir mais música do que nunca, mas talvez nunca tenha escutado tão pouco.

Quando uma tecnologia se impõe com a força de um destino, costuma-se dizer que resistir é inútil. A história da música, no entanto, mostra que a resistência nunca desaparece — ela apenas muda de lugar. O rádio não matou o disco; o CD não matou o vinil; o streaming não matou os shows. Cada nova camada adiciona, mas não substitui. O problema da música gerada por IA, contudo, não é ser “mais uma camada”: é ser um solvente universal.

O que está em jogo agora não é o meio, mas o sentido.

Nas últimas décadas, acostumamo-nos a acreditar que a tecnologia era uma força civilizatória — às vezes destrutiva, às vezes ambígua, mas sempre carregada de futuro. Quando falávamos de “avanços”, queríamos dizer alguma forma de expansão humana: mais acesso, mais comunicação, mais possibilidades. Essa crença, quase religiosa, sustentou o imaginário digital desde a virada do século.

Mas a música algorítmica coloca a dúvida: e se o progresso não tiver nada a ver com o humano? E se o futuro continuar avançando mesmo que não sejamos mais necessários?

A Suno — e suas congêneres — não são, por si só, o problema. Elas são sintoma. Sintoma de um mundo que trocou criação por produção, experiência por eficiência, sentido por volume. A música, nesse ambiente, não desaparece: ela prolifera. Mas prolifera como organismos oportunistas proliferam quando um ecossistema colapsa. É abundante, mas não é diversa. É infinita, mas não é profunda. É sonora, mas não é musical.

O ouvinte comum talvez não se dê conta. Nem precisa. Seu papel, nesse modelo, é apenas consumir — ou melhor, permitir que algoritmos consumam por ele. Ele clica, arrasta, pula faixas, segue playlists, mas raramente escuta. A escuta — aquela antiga prática humana de intimidade com o som — se torna um luxo raríssimo, quase um ato estético de resistência.

O artista, por sua vez, enfrenta um dilema que nenhuma geração anterior experimentou: competir com uma entidade que não dorme, não erra, não cansa e não tem vaidade. A IA não quer ser famosa. Não quer ser aplaudida. Não quer esgotar ingressos. Ela quer apenas gerar — incessantemente, exponencialmente, idiotamente. É a torção final do capitalismo cultural: conteúdo sem intenção.

E, no entanto, é possível que a música humana sobreviva. Não porque seja superior — essa é uma crença romântica demais — mas porque tem limites. E limites, na cultura, são fontes de beleza. Um cantor desafinado mas sincero pode emocionar mais do que cinquenta mil baladas perfeitas. Uma gravação mal mixada pode carregar mais verdade do que qualquer simulação cristalina de um algoritmo. A humanidade não vence por excelência — vence por falha.

Num mundo saturado de tudo, o raro volta a ser o imperfeito.

Se esse renascimento virá de pequenos clubes, de comunidades fechadas, de plataformas alternativas ou de gestos isolados de teimosia artística, ninguém sabe. Mas é certo que, após a tormenta do ruído infinito, algo permanecerá. Talvez um fio de autenticidade, talvez uma recusa silenciosa, talvez um culto subterrâneo à presença real — aquele instante em que alguém toca uma nota que nunca existiu e nunca existirá de novo.

O futuro da música não será épico. Não será grandioso. Será fragmentado, disputado, remendado. E, como tudo que pertence ao humano, será imperfeito. Mas, justamente por isso, poderá ser belo.

Assim termina o dilúvio. Não com silêncio absoluto, mas com uma nota pequena, falha, tocada por mãos humanas. Uma nota que nenhuma máquina, por mais eficiente que seja, conseguirá entender totalmente.

E talvez seja essa a nossa última vitória.

*Agradecimentos a Lázaro por ter me enviado o link da matéria que inspirou esse texto.

Como a lógica mimética e a obsessão pelo inimigo fazem com que esquerda e direita repitam os mesmos vícios na guerra cultural contemporânea.



A política contemporânea costuma ser descrita como uma colisão entre projetos incompatíveis, mas a imagem é enganosa. O que vemos não são forças opostas movidas por convicções distintas, mas reflexos que se perseguem mutuamente, cada qual convencido de sua própria singularidade. A rivalidade moderna – como qualquer rivalidade suficientemente intensa – dissolve diferenças reais e produz versões cada vez mais similares dos antagonistas. Nada é mais eficaz para uniformizar os humanos do que o desejo de provar que não se é igual ao inimigo.

O fenômeno não é novo. Sempre que grupos se dedicam mais a cultivar hostilidades do que a sustentar ideais, seus princípios tornam-se instrumentos de competição moral. A política deixa de ser um campo de deliberação e se converte num teatro de pureza, no qual cada lado tenta reivindicar para si a posição de vítima virtuosa. As crenças proclamadas são menos importantes do que a necessidade de demonstrar superioridade – não diante do mundo, mas diante do rival. Assim, posições que deveriam expressar visões de sociedade tornam-se apenas marcadores identitários, trocados e descartados conforme a conveniência psicológica do momento.

A ironia é que, ao insistirem nessa lógica mimética, os adversários se transformam naquilo que dizem combater. Os defensores da liberdade recorrem ao controle; os partidários da justiça adotam expedientes que corroem o próprio conceito de justiça; movimentos que surgiram como crítica à opressão reproduzem os mecanismos que denunciavam. A única constante é a convicção de que a própria violência, quando praticada, é exceção justificável – e que a cometida pelo outro revela sua essência diabólica.

Quando sociedades inteiras passam a interpretar seus conflitos em termos de bem contra mal, a vida pública deixa de ser plural. Não há espaço para lidar com divergências, apenas para eliminar o portador do erro. As instituições tornam-se ferramentas a serem capturadas, não arenas neutras; e a linguagem política se reduz a uma lista interminável de acusações morais. Em tal ambiente, a busca por coerência é substituída pela necessidade de reafirmar pertencimento: a verdade importa menos do que a confirmação de que se está do lado certo.

O mais revelador é a facilidade com que cada um identifica o autoengano do outro, mas permanece cego ao próprio. É simples perceber quando o adversário veste princípios para disfarçar ressentimentos; é infinitamente mais difícil admitir a trave no próprio olho. E, no entanto, a simetria entre os rivais não depende de suas doutrinas, mas das emoções que os movem. O que se proclama como luta por valores é, com frequência, apenas pânico moral travestido de virtude.

Se há alguma lição nesse espetáculo, é que a ilusão de superioridade é sempre corrosiva. Ela destrói não apenas a convivência, mas também a capacidade de autoconhecimento. Nenhum lado se reconhece no outro, embora ambos procedam segundo a mesma lógica de exclusão e ressentimento. A obsessão pela diferença produz unicamente semelhança.

A saída, se existe, não reside em reivindicar uma posição acima da contenda. Essa pretensão é apenas mais uma forma de rivalidade. O máximo que se pode fazer é reconhecer a tentação constante de transformar convicções em armas e perceber que grande parte do que chamamos de idealismo é apenas desejo de dominação sob outro nome. O fracasso em admitir isso não nos torna piores do que os nossos adversários — apenas indistinguíveis deles.



Há algo de profundamente moderno na ansiedade por escrever rápido. Não apenas porque vivemos cercados de tecnologias que prometem abreviar o caminho entre o desejo e o resultado, mas porque nos tornamos incapazes de notar o que se perde nesse encurtamento. A pressa — tão celebrada na vida contemporânea, tão confundida com vitalidade — não produz apenas textos fracos. Ela produz, sobretudo, escritores frágeis: criaturas que imaginam ser a literatura um meio de ascensão pessoal, quando, na verdade, ela frequentemente funciona como antídoto contra qualquer fantasia de autopromoção.

O impulso de publicar cedo, de mostrar-se antes de formar-se, parece natural a quem cresceu acreditando que a vida é uma sequência de vitórias individuais exibidas diante de plateias invisíveis. Mas isso não passa de mais uma expressão do narcisismo moderno, a crença deslocada de que somos donos de nossas próprias criações, como se a imaginação fosse um território soberano. Esquecemos que muito do que desejamos escrever não emerge de nossa vontade, e sim de processos obscuros, lentos, que não obedecem ao calendário das ambições juvenis.

O jovem escritor — e aqui “jovem” não é idade, mas condição espiritual — acredita que a obra deve acompanhar seu ritmo, sua fome, sua ânsia por reconhecimento. Mas a literatura, como outras forças que moldam nossa vida, é indiferente às urgências humanas. Ela se move com a cadência própria dos fenômenos naturais: não responde ao entusiasmo, não acelera diante da impaciência, não se curva à vaidade. É por isso que a pressa é tão devastadora. Ela tenta impor ao texto a lógica da carreira, quando o texto pertence à lógica da contingência.

A disciplina literária, tão frequentemente confundida com produtividade, não é uma técnica de eficiência, mas uma forma de humildade. Ela consiste em reconhecer que a imaginação não opera segundo o comando da vontade. Exige que o escritor retorne ao que escreveu não para confirmar seu brilho, mas para descobrir os equívocos mais óbvios — equívocos que apenas o tempo revela. Quem escreve diariamente não o faz para cumprir uma meta, mas para aceitar, de modo reiterado, que a obra está sempre aquém do impulso que a iniciou.

O trabalho paciente — esse que se esconde nos silenciosos rituais de reler, cortar, reescrever — nada tem de heroico. Pelo contrário: ele reduz nossas pretensões, mostra-nos o quanto depende do acaso aquilo que chamamos de “estilo”. Talvez seja essa a lição mais difícil de aprender: por mais que nos esforcemos para dominar a escrita, há um elemento irredutível de imprevisibilidade no ato de compor. O escritor disciplinado não tenta eliminá-lo; apenas se dispõe a conviver com ele.

Vivemos numa época em que todos são incentivados a expor seus rascunhos — como se a visibilidade fosse condição da existência. Nesse ambiente, guardar um texto é quase um gesto de rebeldia. Mas é no segredo, e somente nele, que as frases começam a perder o brilho enganoso da primeira euforia. Longe do olhar alheio, o escritor é forçado a enfrentar o que realmente escreveu, não o que imaginava ter escrito. O tempo age como um dissolvente das ilusões.

Aqueles que Flaubert, Mann ou Tchekhov parecem exemplificar não são modelos de perfeccionismo, mas de paciência. Eles sabiam que a maturação da obra não responde ao desejo de urgência — e que a disciplina não é garantia de grandeza, apenas um modo de não atrapalhar demasiado o trabalho que a imaginação tenta realizar em silêncio. Em última análise, escrever é suportar a lentidão, suportar a própria insuficiência, suportar a frustração de não corresponder às ideias que nos inspiraram.

O paradoxo é evidente: a modernidade nos prometeu libertação, autonomia, autoexpressão. Mas, no domínio da escrita, quanto mais perseguimos esses ideais, mais nos aprisionamos na vaidade. Desejamos provar talento antes de tê-lo; buscamos reconhecimento antes de termos algo a reconhecer. A pressa é apenas a forma literária dessa ilusão de controle — e, como todas as ilusões modernas, ela nos abandona assim que encontramos a primeira resistência real.

A lentidão, ao contrário, não seduz. Ela não garante nada: não assegura um grande livro, não protege ninguém do fracasso. Contudo, ela tem uma virtude que poucos admitem: devolve-nos à realidade do processo criativo, onde a vontade é apenas uma entre várias forças em jogo. O escritor que abraça essa lentidão aprende que a disciplina não é um caminho para o sucesso, mas uma maneira de habitar a própria ignorância com menos desesperação.

Se há um convite sensato a fazer ao escritor ansioso — e “sensato”, aqui, no sentido tão frequentemente melancólico que costumo escrever — é este: abandone a crença de que a literatura recompensa quem se apressa. Ela não recompensa ninguém. E é justamente por isso que vale a pena dedicar-se a ela. Não como instrumento de afirmação pessoal, mas como exercício de lucidez diante de nossa própria insignificância.

Ao desacelerar, você talvez descubra algo que vinha tentando evitar: que a escrita é menos um meio de apresentar-se ao mundo do que uma oportunidade de desaparecer por algumas horas. Não há triunfo nisso — apenas um reconcilhamento possível com o ritmo que a obra exige. E, nesse pequeno pacto com a lentidão, nasce a chance de que alguma verdade — sua, do texto, do mundo — possa enfim emergir.


Por Samio Cássio*

Na esquina da Rua Pensilvânia com a manhã, lá onde o sol demora a tocar o chão porque a sombra das mangueiras ainda é espessa, vive um homem que há 57 anos observa a cidade sem pressa. A casa — baixa, paredes gastas, cor indefinida — parece ter surgido antes mesmo da rua. E talvez tenha: é a primeira dali, construída quando o bairro Euclides Neto ainda ensaiava existir, e onde Valdomiro Amâncio da Silva instalou sua vida como quem finca uma bandeira silenciosa.

Valdomiro, a quem todos em Ipiaú chamam de Valdomiro Coveiro, tem 81 anos e nasceu quando o Brasil ainda aprendia a pronunciar a própria modernidade. Diz a data com precisão — 24 de maio de 1942 — e, ao fazê-lo, leva a mão ao queixo, como quem revisita a fotografia desbotada de uma época. Cresceu em Itagibá, ouvindo o pai cantar cocos ao pé de fogueiras improvisadas, enquanto a noite engolia os sons da roça. O pai, Timóteo, era daqueles homens que carregavam a música como uma segunda pele, e Valdomiro herdou essa marca como herança inevitável.

Mas foi somente aos 20 anos, quando se mudou para Ipiaú, que a vida começou a assumir contornos de destino. O prefeito era José Motta Fernandes — nome ainda dito com respeito por quem viveu aqueles anos — e a cidade, embora pequena, anunciava alguma promessa de futuro. Valdomiro chegou, conseguiu trabalho como ajudante de pedreiro e começou a levantar paredes de escolas que, décadas depois, alfabetizariam seus netos.

Nessa época, morava em quarto alugado, e lembra-se de caminhar pelas ruas de terra com os sapatos pendurados no ombro, economizando sola para o serviço. Mas foi esse mesmo rapaz magro, de fala baixa, que conheceu em Ibirataia a jovem Carmelita, de apenas 17 anos, e decidiu que era com ela que construiria uma família — não por impulso, mas por uma convicção serena, dessas que nascem do olhar. Casaram-se cedo: ele tinha 19; ela, 17. E desde então não se desgrudaram.

Seis filhos vieram — Antônio, Gildevan, Gilvando, Girleli, Ginival e Rita — como capítulos sucessivos de uma história que nunca teve luxo, mas teve sempre firmeza.

O Repórter Visita a Casa do Coveiro


Quando se bate à porta da casa de Valdomiro, ele abre devagar, como se antes escutasse se quem está do lado de fora vem em guerra ou em conversa. A voz é suave, mas os gestos são firmes. No canto da sala, há instrumentos que já não tocam tanto quanto antes. Na parede, fotografias antigas onde ele surge mais alto, mais forte, como se o tempo o tivesse diminuído fisicamente, mas ampliado moralmente.

Ele fala da morte com a naturalidade de quem já a viu de perto mais vezes do que gostaria. Trabalhou por muitos anos como coveiro, sempre ao lado de José Candola, figura lendária do ofício. “A gente enterrava com respeito”, diz. “Não era só jogar terra. Tinha uma palavra pra cada família.”

A palavra dele, dizem, acalmava. Talvez porque Valdomiro sempre soube que a morte tem um peso que precisa ser dividido.

Mas se ele enterrava os mortos, também fazia outra coisa: desenterrava tradições. Foi assim que encontrou seu verdadeiro lugar.

O Encontro com Zaqueu

Há homens que entram na vida da gente como trovões; outros, como brisas. Zaqueu, para Valdomiro, foi ambas as coisas.

Zaqueu era cantador respeitado, desses que lideram rodas de samba como quem comanda navio em mar revolto. Quando Valdomiro o conheceu, ainda recém-chegado à cidade, o mestre o puxou pela mão e o apresentou a um mundo que misturava poesia, suor e ancestralidade. Os dois formaram parceria de décadas, atravessando micaretas, festas de São Roque, exposições agropecuárias, e noites longas onde o samba parecia ser a única língua possível.

Ali, Valdomiro descobriu que a música poderia ser também uma forma de cuidado — tão profunda quanto as despedidas que presenciava no cemitério.

Com o tempo, outros nomes se somaram ao seu convívio: Senhorinha e o filho Cosme, Etelvina do cordão tupinambá, Lindolfo, Dona Eulina, Militão, Nicodemos, Miguel, Cafuringa, Euclides, Bico de Agulha, Adenorzinho, João, Noemi e o jovem Bijoga, cuja morte precoce ainda entristece a quem o menciona.

Hoje, muitos desses nomes vivem apenas na memória — mas é justamente essa memória que Valdomiro insiste em salvar.

O Bumba Meu Boi, Entre a Morte e o Riso




Talvez nenhuma manifestação cultural represente melhor o espírito de Valdomiro do que o Bumba meu Boi.

A lenda — que ele conta como se tivesse testemunhado — fala de Pai Francisco e Mãe Catirina, escravizados que transformaram um desejo gestante em tragédia, culpa e festa. É a história do boi morto e ressuscitado, do perdão e da celebração.

Aos olhos de um coveiro, pode-se imaginar o que significa reviver simbolicamente um animal. Talvez, no íntimo, Valdomiro sempre tenha buscado isso: ressurreições.

O Terno de Reis e a Fé Que Anda Pelas Casas

Entre dezembro e janeiro, quando a cidade se prepara para renovar o ano, Valdomiro muito caminhou, com violas e vozes acompanhando-o. O Terno de Reis, de origem portuguesa, é uma tradição que exige devoção, paciência e um espírito que não se cansa facilmente.

De casa em casa, ele e seus companheiros entoavam cantos sobre os Reis Magos, recebendo café, bolo, moedas ou apenas olhares emocionados. Era menos espetáculo do que ritual; menos performance do que peregrinação.

E para Valdomiro, cada porta aberta era também um reconhecimento.

A Cidade Que Esquece Seus Guardiões

O homem que tanto deu à cultura de Ipiaú lamenta, com a serenidade de quem já viu muita coisa desaparecer, a falta de apoio público e privado às manifestações populares. Fala da dança do coco como quem fala de algo vivo — um ser que respira, muda, adapta-se a cada região. Por isso insiste em chamá-la no plural: cocos, pois cada lugar inventa o seu.

E aqui, Ipiaú — terra de indígenas, africanos e portugueses misturados na mesma panela — ainda carece de estímulo. “A gente não quer dinheiro”, diz ele, “quer atenção”.

O repórter percebe que ele não reclama por si, mas pelos que vieram antes, pelos que já não podem reclamar.

O Guardião Invisível

Há algo singular em Valdomiro: sua vida não cabe num só título. Ele foi pedreiro, servidor público, coveiro, sambador, mestre de Terno de Reis, brincante de Bumba meu Boi, pai, marido, carregador de tradições.

Mais do que isso: ele é um arquivo vivo, uma biblioteca que respira e que, a cada ano, perde páginas para o tempo. E, ainda assim, permanece.

Talvez por isso seja urgente dizer seu nome. Urgente reconhecê-lo, enquanto ainda abre a porta com calma, enquanto ainda mostra os instrumentos, enquanto ainda consegue citar — um por um — os mortos e vivos que construíram, junto dele, a história cultural da região.

O Homem Que Permanece

No fim da visita, Valdomiro se senta na cadeira de madeira, ajeita o chapéu e mira a rua onde já viu crianças crescerem, casais se separarem, vizinhos partirem. A rua mudou, mas ele permaneceu.

Disse certa vez que “há público para todas as manifestações”. A frase, simples, carrega uma defesa poderosa: a de que o Brasil profundo não precisa escolher entre a cultura de massa, a cultura sacra e a cultura popular. Podem coexistir — desde que alguém esteja disposto a carregá-las.

Em Ipiaú, esse alguém tem nome.
Tem história.
Tem voz.
Tem fé.
E tem, sobretudo, a insistência de quem sabe que tradições só morrem quando ninguém as guarda.
Valdomiro as guarda.
E enquanto ele existir, nada estará completamente perdido.

*Samio Cássio (o autor desse texto) é graduado em História pela UNEB (2017–2022), com TCC sobre a representatividade e a trajetória de Adenor dos Reis Soares em Ipiaú-BA. Especialista em Gênero, Raça, Etnia e Sexualidade pela UNEB (2023–2024), com pesquisa sobre a vida e as lutas de Léa Simões dos Santos no município. Ele cedeu gentilmente sua produção para que pudéssemos publicar aqui.

A trajetória de Nêgo Freeza, o MC da zona cacaueira que atravessou a diáspora, o skate, o punk, o rap e a falta de reconhecimento em sua própria cidade

Por Samio Cássio*

Nego Freeza. Foto autorizada pelo artista, 2025

No total, cinco pessoas foram entrevistadas para reconstruir a trajetória de Ivanilton Souza dos Santos, o MC Nêgo Freeza (o perfilado): sua mãe Ivonize, um amigo de infância que prefere não ter o nome publicado, o músico Neto Cobra, o ex-parceiro de banda Meco Premiere e o integrante de OQuadro, Jeff. Além das entrevistas, o perfil se apoia em três pilares teóricos: a resistência feminina negra discutida por Angela Davis (2017), a noção de diáspora e identidade híbrida desenvolvida por Paul Gilroy (1993) e a contextualização histórica de opressões que atravessam a população negra no Brasil. A partir dessa combinação — teoria, memória e oralidade —, desenha-se não apenas o músico, mas o corpo social e histórico que o produz.

Ivanilton Souza dos Santos nasceu em Serra Dourada, no interior da Bahia, num 17 de janeiro de 1978 que ninguém da família registrou com festa, mas que seria lembrado depois como o dia em que chegou ao mundo o menino que fugiria para Itabuna atrás de música. Ele cresceu entre a poeira avermelhada da zona cacaueira e a divisão nada sutil entre centro e periferia — dois territórios que moldariam sua identidade antes mesmo que ele aprendesse a rimar.

O centro oferecia cultura: livros, filmes, sons que, como ele descobriria anos mais tarde, costumavam ser negados ao povo periférico. A periferia oferecia outra coisa: caráter. Não no sentido moralizante usado pela classe média, mas no sentido duro, cotidiano, de sobreviver aos conflitos e contradições do bairro. Era lá que as vozes das mães, vizinhas, pastores, pais-de-santo e amigos mais velhos ensinavam a filosofia que ele só conheceria pelo nome muito depois: Ubuntu. Eu sou porque nós somos — aquela frase que parecia abstrata até se tornar memória concreta.

Antes de ser rapper, Freeza foi tudo o que meninos pretos costumam ser no Brasil: suspeito, promessa, risco, estatística, sobrevivente. Também foi filho único homem de Ivonize Souza dos Santos, trabalhadora doméstica que — sozinha, depois da morte de Isaac, seu marido — mantinha a casa em pé e o menino longe “dos perigos do bairro”, expressão que ela repetia como mantra.

Quando Ivanilton tinha oito anos, o pai morreu. A mãe recorda:


— Quando Isaac se foi, meu menino ainda era pequeno, uns oito anos. E ali eu precisei ser forte. Segui trabalhando como do lar, com dignidade e muito sacrifício, para manter a casa e proteger meu filho dos perigos do bairro.
Não foi a única a criar o menino: a irmã mais velha, Ivonete, assumia a função sempre que preciso — preparar para a escola, vigiar, garantir que ele comesse, enquanto o menino insistia em ficar brincando na casa de Socorro, “com o Ju”.

A infância aconteceu num território que então se chamava Invasão, mais tarde Bairro São José Operário, fruto de um movimento de trabalhadores que ocupou a área do antigo Colégio Estadual de Ipiaú. Para Ivonize, esse episódio é fundante:

— Lutando pra garantir um lugar nosso.
No meio do mato aberto, barracos improvisados e reuniões feitas à luz de lamparina, cresceu o menino que algum dia seria chamado de Freeza. O amigo de infância, que até hoje o chama de Tinho, lembra dele como um garoto “pacato, inteligente, quieto” — qualidades que raramente protegem meninos pretos de nada, mas que, no caso dele, funcionaram como uma espécie de superfície de resistência.
— Tinho não machucava ninguém. Brincava de carrinho comigo no quintal. E já gostava de música desde pequeno.

Nos domingos, quando o amigo não tinha onde almoçar, era recebido por Ivonize como filho. Ela o tratava com “cuidado e carinho”, lembra. A comunidade fazia o resto: cuidar, proteger, repreender, acolher. Essa teia de solidariedade — que não é baseada em pedidos, mas garantida — atravessa o relato de todos os entrevistados.

Foi dessa combinação de afetos, violências e faltas que nasceu o MC que mais tarde dividiria palco com artistas que admirava. Mas esse reconhecimento ainda estava distante quando, adolescente, Ivanilton descobriu que seu corpo negro era ele mesmo um arquivo vivo: um recorte temporal onde se inscrevem desigualdades, resistências e memórias.

Sua trajetória, porém, não ficaria restrita a Ipiaú. O menino que fugiu para Itabuna atrás de música cresceria para cantar em outros estados, outros palcos, outras línguas — levando com ele, sempre, o bairro, a poeira, a mãe e a filosofia que aprendia antes mesmo de saber seu nome.

A adolescência de Ivanilton foi vivida em uma fronteira que nem sempre era visível, mas sempre estava ali: a fronteira entre a classe média e a periferia. Ele mesmo descreve essa sensação como um deslocamento permanente, como se pertencesse a dois mundos sem caber completamente em nenhum deles.

O adolescente ia à escola com colegas cujos pais tinham carro, casa própria e tempo livre; à tarde, voltava para um bairro que havia nascido de uma ocupação — e onde o perigo, como dizia a mãe, era tão real quanto o sol de meio-dia.

Nessa época, ele se dividia entre quadrinhos, skate, videogame, cinema e MTV. Assistia a Faça a Coisa Certa e Boys n the Hood sem ainda saber que ambos fariam mais por sua formação política do que qualquer conteúdo escolar. As trilhas o atravessavam: Public Enemy, Cypress Hill, Beastie Boys.

A música, como a mãe previra, tinha um chamado — e puxava forte. Um dia, puxou tanto que ele fugiu para Itabuna, atrás de não se sabe bem o quê: talvez um palco, talvez uma banda, talvez só um tipo de pertença que ainda não tinha nome. Trouxeram-no de volta. Não serviu de advertência: serviu de confirmação.

O Rap chega


O amigo Neto Cobra lembra com precisão da época em que o rap entrou de vez na vida de ambos:

— Começamos a ouvir rap juntos no CEI [Colégio Estadual de Ipiaú], no começo dos anos 1990. Um amigo trouxe umas fitas de São Paulo. Ali a gente entendeu que o rap era quase uma escola. Falava de tudo que a gente vivia.
Esse “a gente” inclui um grupo de jovens que vivia o avanço dos movimentos populares no interior da Bahia. No rastro das mobilizações da época, o rap apareceu como discurso e como prática política.

O jovem Ivanilton, que logo ganharia outros nomes — Tinho, Freeza, Nêgo Freeza —, começou a perceber que aquele som falava de coisas que aconteciam dentro e fora dele. A música fazia as perguntas certas. Ele só precisava responder.

Declínio

O primeiro laboratório de criação mais estruturado foi a banda O Declínio. Misturava punk rock com hip-hop — uma combinação que não parecia lógica para quem via de fora, mas que fazia pleno sentido para meninos periféricos que transitavam entre guitarras distorcidas e batidas de boom bap.

O ex-companheiro de banda, Meco Premiere, lembra do início:

— A gente jogava basquete no [colégio] Celestina [Bitencourt], e foi aí que começamos a nos encontrar. Ele já rimava e já vinha com experiência — vinha da banda Cachorro Louco, o primeiro trampo musical dele.

A formação era simples e direta: Ivanilton, Meco, Rodrigo na guitarra, Edmilson no baixo, Brunão na bateria. Cinco jovens tentando transformar em som aquilo que viviam: a violência policial, a precariedade do bairro, o desejo de se afirmar, a estética do rock, a potência do rap.

O Declínio não durou muitos anos, mas foi o bastante para que Freeza percebesse que seu caminho musical não teria volta. Como observa Meco:

— A Declínio acabou sendo mais uma etapa importante. Ele continuou estudando, buscando referência, compondo.
Era uma fase de experimentação: o mundo estava aberto e, ao mesmo tempo, estreito demais.

A voz que já estava lá

O amigo de infância não se surpreendeu quando Freeza começou a cantar. Ele diz que a voz do menino — ainda Tinho — já trazia algo singular:

— A voz de Nêgo Freeza sempre teve uma qualidade marcante, firme e acolhedora, capaz de transmitir segurança e emoção.
Esse “acolhimento” vocal, raro num país onde meninos negros costumam ser ensinados a silenciar, apareceu cedo e o acompanharia por toda a carreira. Era a presença ancestral que depois Gilroy ajudaria a nomear: a música como forma de inscrição da memória negra no mundo.

OQuadro: o salto

A entrada em OQuadro, coletivo e banda de Ilhéus, foi o que colocou Freeza de vez no mapa da música independente brasileira. Para Jeff, integrante da banda, nada no processo foi planejado:

— O que nos uniu foi o amor pela música. A entrada do Freeza em OQuadro aconteceu naturalmente. Todo mundo botou a mão na massa. Ele foi fundamental para o crescimento da banda, mas sempre em conjunto com os outros.
Jeff destaca uma tríade que a crítica musical muitas vezes tenta medir, mas raramente compreende: energia, criatividade e empenho.

— A gente fez história do nosso jeito, com a nossa mandinga, com a nossa vida preta.
OQuadro misturava jazz, rap, hip-hop underground e referências da diáspora africana. Freeza se encontrava ali. Ou melhor: reencontrava-se.

A perspectiva de Paul Gilroy ajuda a entender essa fusão: a música como resistência, memória e reafirmação identitária. Para Gilroy, a diáspora produz sons que são, ao mesmo tempo, cicatriz e celebração. O que Freeza fazia com OQuadro era exatamente isso: transformar o peso da história em vibração.

Quando Freeza fala de sua própria música, ele não fala só de batida, métrica ou rima. Fala de manter o pé no chão — expressão que usa menos como metáfora e mais como método de sobrevivência. Para ele, o rap nunca foi apenas gênero musical: sempre foi modo de existir no mundo.

Em entrevista concedida em 2025, ele faz um resumo que poderia servir de credo:


— Meu rap é conceitual, dialoga com ritmos da África e da diáspora, misturando hip-hop underground e jazz. Ser homem preto do interior da Bahia trouxe desafios, mas a persistência me permitiu conquistar espaço, dividir palco com artistas que admirava e impactar a vida das pessoas com minha música. Hoje busco continuidade, maturidade e saúde física, mental e espiritual, traduzindo isso em um som cada vez mais alinhado comigo.
A frase “ser homem preto do interior da Bahia não é fácil” faz tanta sombra que quase cobre o restante da resposta. Mas é nela que está o núcleo da carreira: poucas coisas são simples quando se nasce onde ele nasceu, quando se vive o que ele viveu, quando se sonha o que ele sonhou.

A trajetória de Freeza não é, portanto, linear. É cheia de desvios, retornos, pausas e recomeços. E cada interrupção ensina um aprendizado, como um batuque insistente que continua mesmo quando a música para.

A Rádio Livre e a política do microfone

No fim dos anos 1990 e início dos 2000, antes de o país discutir “ocupação de espaços” nas redes sociais, Freeza já fazia isso — não no Instagram, mas numa pequena rádio comunitária: a Rádio Livre de Ipiaú. Ao lado de jovens igualmente inquietos, ele levava programas de rap, MPB e música popular a uma cidade cuja hegemonia sonora era o Axé.

Neto Cobra lembra a importância desse movimento:
— Freeza foi um dos pioneiros do hip-hop na cidade. De longe, o maior expoente. E também ajudou na criação da Rádio Livre, que transmitia rap e MPB quando todo mundo só queria ouvir Axé.
O microfone, ali, era mais que instrumento técnico: era arma política. Era, como diria Gilroy, um ponto de produção de identidade na diáspora.

Ao mesmo tempo, Freeza se engajava em movimentos sociais e na Casa de Cultura de Ipiaú, onde debates, encontros musicais e articulações comunitárias formavam uma espécie de universidade preta improvisada. Não havia diploma, mas havia formação.

O mundo fora de Ipiaú

Com o OQuadro, Freeza passou a viajar mais. Chegou a palcos de outras cidades do Brasil, e até fora do país. Isso não o deslumbrava — ao contrário: parecia reforçar nele a noção de que carregar a Bahia no corpo é condição permanente, mesmo a quilômetros de distância.

No arquivo memorial que sua voz carrega — aquele corpo negro que é “recorte temporal” — há memórias do bairro São José Operário, mas também fragmentos de Ilhéus, Salvador, São Paulo e os lugares onde sua música ecoou. A diáspora, afinal, não é só um conceito: é o movimento constante de afetos, ritmos e sobrevivências.

A arte como insistência

A mãe, Ivonize, diz que tinha medo “de perder o menino pro mundo”. Mas Freeza sempre se desviou do pior destino reservado aos jovens negros. Sua mãe atribui isso ao amor e ao trabalho; ele, à música e aos encontros certos. Talvez ambos tenham razão.

Há sempre um tipo de persistência nos relatos sobre ele. Persistência para estudar, para compor, para não desistir diante de cada porta fechada, de cada riso que tentava diminuir seus sonhos. Persistência que aparece quando ele diz:
— A persistência me levou a crescer, dividir palco com quem admirava e impactar vidas. Isso é o que realmente importa.
A noção de “impactar a vida das pessoas” não é abstrata, para ele. Freeza sabe exatamente o que significa ver alguém encontrar na arte um caminho possível — porque foi isso que a música fez com ele.

O reconhecimento que falta

Apesar do alcance de sua carreira, Freeza não tem, na própria cidade, o reconhecimento proporcional ao impacto que gerou. É preciso que esse extraordinário músico tenha o devido reconhecimento em Ipiaú, cidade.

É o paradoxo dos artistas negros do interior: o mundo os recebe antes da própria terra.

OQuadro o colocou no mapa; a militância cultural lhe deu voz; o bairro lhe deu caráter; a mãe lhe deu sobrevivência. E Ipiaú, ainda assim, parece dever-lhe algo.

Se existe uma palavra que ronda toda a trajetória de Ivanilton, mesmo quando ninguém a pronuncia, essa palavra é ancestralidade. Não no sentido abstrato usado em palestras motivacionais, mas naquela acepção concreta que aparece quando mães como Ivonize sustentam casas inteiras com as próprias mãos.

É aqui que Angela Davis entra em cena — não como referência acadêmica distante, mas como espelho conceitual das mulheres que, como Ivonize, encarnam a resistência diária das trabalhadoras negras: cozinham, limpam, educam, sustentam e, ainda assim, não permitem que o mundo engula seus filhos. Davis descreve essa força como política, mesmo quando não se nomeia como tal. Ivonize, com sua roupa de trabalho e suas caminhadas cansadas, é essa política encarnada.

No bairro São José Operário — a antiga Invasão —, a memória dessas mulheres se mistura à dos trabalhadores que ocuparam terrenos e ergueram casas à força, organizando-se com pessoas como Adenor dos Reis, Didi Bigodão, Léa Simões, Dona Antônia Babalorixá e tantas figuras que ninguém fora dali conhece, mas que sustentaram mundos inteiros.

É também ali, naquele chão de cimento poroso, que as lições de convivência, solidariedade e responsabilidade coletiva ensinaram ao menino Ivanilton uma versão de si que nenhuma escola formal ensinaria. A comunidade — essa entidade dispersa, composta por dezenas de gestos pequenos — foi a primeira banda da qual participou.

A música como registro vivo

Quando Freeza sobe ao palco, o que se escuta não é só sua voz: é o acúmulo de todas as vozes que vieram antes dele. Seu corpo negro é também seu recorte temporal: nele se inscrevem memórias, desigualdades, resistências e caminhos que atravessam sua história.

A frase poderia estar em um ensaio de antropologia, mas está na biografia de um rapper que cresceu fugindo do destino estatístico reservado a meninos periféricos.

E aqui entra Paul Gilroy, teórico do Atlântico Negro, para lembrar que a música produzida nas diásporas afro-atlânticas não é só som: é deslocamento, trauma, invenção, memória compartilhada. Freeza, cantando na Bahia, no Brasil ou fora do país, participa dessa constelação transatlântica — uma comunidade que se forma não por geografia, mas por ritmo.

OQuadro, com sua mistura de jazz, hip-hop underground e mandinga baiana, não é apenas uma banda — é a materialização desse trânsito. Jeff, integrante do grupo, define bem:
— A gente fez história do nosso jeito, com a nossa mandinga, com a nossa vida preta.
Gilroy diria que o Atlântico Negro se manifesta exatamente assim: por meio de coletivos improváveis, formados por pessoas que produzem cultura como quem produz modo de existir. OQuadro é esse barco.

A constelação de vozes

O perfil de Freeza só é possível porque várias vozes atravessam sua história — e todas aparecem nas suas ações. A mãe, firme. O amigo de infância, afetuoso. Meco Premiere, lembrando basquetes e guitarras. Jeff, falando da mandinga. Neto Cobra, recordando o início do rap no CEI.

Essas vozes constroem uma espécie de coral — e é curioso que, mesmo quando falam de tempos difíceis, falam com uma ternura que ironicamente não existe nos documentos oficiais.

Do amigo de infância vem a frase mais suave de todas:
— A mãe dele me tratava com muito cuidado e carinho.
No meio de tantas narrativas de resistência, persistência, luta e violência, essa lembrança de almoço de domingo parece um respiro. Mas é justamente essa ternura que forma a espinha dorsal de tudo: de Freeza, da música, da comunidade.

O artista que a cidade ainda não reconheceu

É preciso que esse extraordinário músico tenha o devido reconhecimento em Ipiaú — cidade na qual ele viveu desde bebê — e que já levou o nome para vários lugares da Bahia, do Brasil e até de outros países do mundo.”

É um lamento, mas também uma constatação: o interior da Bahia costuma exportar seus talentos antes de reconhecê-los. Ipiaú convive diariamente com o artista que o resto do país celebra, mas ainda hesita em chamá-lo de patrimônio.

Freeza, por sua vez, não se queixa disso. Sua resposta é outra:
 continuar fazendo música, mantendo o pé no chão, buscando saúde física, mental e espiritual. Como ele diz:
— Isso é o que realmente importa.
Mas para quem lê sua trajetória inteira, é difícil não sentir que a cidade está deixando passar algo precioso.

No fim das contas, a biografia de Freeza poderia ser confundida com ficção se não fosse tão marcada pelo real: a perda precoce do pai, o trabalho exaustivo da mãe, a fuga adolescente em busca de música, os amigos que viraram irmãos, a banda que virou comunidade, a comunidade que virou banda, o bairro que virou mundo.

Tudo isso está inscrito em seu corpo e ecoa em sua música.

Quando ele canta, canta consigo, com sua mãe, com Ipiaú, com Ilhéus, com a Bahia, com o Atlântico Negro inteiro. Canta com seus ancestrais africanos e indígenas.

E o mundo, quando o escuta, talvez não saiba disso. Mas a comunidade sabe.

E basta que ela saiba.

*Samio Cássio (o autor desse texto) é graduado em História pela UNEB (2017–2022), com TCC sobre a representatividade e a trajetória de Adenor dos Reis Soares em Ipiaú-BA. Especialista em Gênero, Raça, Etnia e Sexualidade pela UNEB (2023–2024), com pesquisa sobre a vida e as lutas de Léa Simões dos Santos no município. Ele cedeu gentilmente sua produção para que pudéssemos publicar aqui.



A história política do Ocidente moderno é atravessada por uma tensão persistente entre expectativas de redenção coletiva e o impulso humano de transformar radicalmente a realidade social. Essa tensão, longe de ser um fenômeno exclusivamente contemporâneo, possui raízes profundas em tradições milenaristas e gnósticas que remontam à Antiguidade tardia e ao cristianismo primitivo. O que impressiona, ao examinar a modernidade política, é a surpreendente sobrevivência — e metamorfose — dessas imaginações religiosas em projetos seculares que, embora proclamem racionalidade e progresso, preservam intactas estruturas míticas de salvação.

1. Heranças Milenaristas na Política Moderna

O milenarismo medieval nutria a crença de que uma intervenção sobrenatural instauraria uma nova era de perfeição terrena. Deus, e não os homens, seria o agente da transformação final da história. Nos movimentos revolucionários modernos, porém, essa agência foi transferida para a humanidade. A crença no advento de um “novo mundo”, antes dependente de intervenção divina, tornou-se um programa político deliberado.

A substituição da transcendência por uma razão humanizada não dissolveu a lógica milenarista: a transformação seria coletiva, total, terrena e iminente. Revoluções modernas — da França jacobina ao comunismo soviético — preservaram esse imaginário de renovação absoluta, embora o revestissem de filosofia política, economia ou ciência. A modernidade, ao prometer emancipação histórica, converteu-se no palco de uma teologia secularizada.

2. O Gnosticismo como Matriz de Revoluções Seculares

O gnosticismo clássico concebia o mundo como uma prisão governada por poderes malévolos. A salvação correspondia à fuga: um retorno da alma ao reino luminoso além do cosmos. Não havia, entre os gnósticos antigos, qualquer esperança de reconfiguração positiva da ordem terrena; o mundo era irremediavelmente corrupto. Essa visão de ruptura radical com a realidade sensível criou um modelo psicológico que reapareceria em ideologias políticas posteriores.

Quando certos pensadores modernos reinterpretaram o gnosticismo, enxergaram nele não apenas desprezo pela ordem existente, mas a convicção de que o conhecimento (gnose) poderia tornar possível a reconstrução do mundo. Essa releitura, própria dos séculos recentes, deslocou a expectativa de salvação do pós-morte para a história. Assim, o gnosticismo moderno trocou a fuga do mundo pela tentativa prometeica de recriá-lo.

É nesse ponto que o mito moderno do progresso assume traços religiosos: a transformação total depende da posse de um conhecimento salvador, supostamente detido por uma vanguarda — partido revolucionário, profeta iluminado, cientistas redentores. A verdade oculta do mundo, revelada à minoria esclarecida, justificaria a destruição da velha ordem.

3. Münster: O Laboratório de uma Utopia Apocalíptica

A experiência anabatista em Münster, no século XVI, tornou concreta a fusão entre sonho milenarista e zelo profético. Sob Jan Bockelson, a cidade transformou-se em um protótipo de Estado teocrático radical. A propriedade comum, a poligamia compulsória, o apagamento da vida privada e o terror disciplinador revelam que o impulso de “refazer o mundo” pode rapidamente se converter em violência institucionalizada. A sociedade antiga é varrida como se fosse um obstáculo moral.

Münster mostra que movimentos revolucionários não nascem do cálculo frio, mas de experiências de fé aplicadas à política — experiências que demandam sacrifícios humanos em nome de uma revelação coletiva. O século XX apenas aperfeiçoou essa lógica com recursos tecnológicos mais amplos.

4. Jacobinismo: O Modelo da Religião Política Moderna

A Revolução Francesa intensificou exatamente essa dinâmica. O jacobinismo foi o primeiro grande movimento político claramente consciente de sua própria dimensão religiosa. Criou cerimônias, dogmas, um calendário regenerado e um culto à Razão e ao Ser Supremo. À semelhança das seitas milenaristas, pretendia purificar o corpo social para instaurar uma nova humanidade.

A violência jacobina, frequentemente explicada como defesa da revolução, tinha uma dimensão ritual: ela materializava a ruptura com o passado e selava a fundação de uma ordem “redimida”. O terror não era um instrumento provisório, mas parte constitutiva de uma visão religiosa secularizada. Assim como no milenarismo medieval, a utopia política exigia a eliminação dos impuros.

5. Bolchevismo: Gnose, Ciência e Ressurreição Política

O bolchevismo, embora moldado por condições russas específicas, integrou-se plenamente à genealogia das religiões políticas. Na Revolução Russa, a promessa de uma nova era alcançou um patamar científico-tecnológico: não apenas o mundo deveria ser transformado, mas a própria morte deveria ser superada.

A devoção ao corpo de Lenin é símbolo dessa fusão de ciência e mitologia. Os “Construtores de Deus”, influenciados por Fedorov, vislumbravam a ressurreição como projeto técnico — uma gnose futurista que substituiria definitivamente a transcendência religiosa. O mausoléu tornou-se um templo; Lenin, uma figura messiânica congelada no limiar entre vida e eternidade. A política tornou-se uma liturgia.

Ao mesmo tempo, a prática sistemática do terror — que precedeu Stalin e foi arquitetada por Lenin — ecoou o velho padrão milenarista: destruir o antigo povo para forjar um novo. Os “inimigos da humanidade futura” eram sacrificados em nome da regeneração universal.

6. A Persistência do Imaginário Redentor

A partir desses episódios, percebe-se que a modernidade política não aboliu a religião; apenas a reformulou. O impulso gnóstico de repudiar o mundo e o impulso milenarista de transformá-lo convergiram na criação de ideologias que, embora seculares, operam com categorias sagradas: redenção, pureza, destino, conhecimento salvador, sacrifício.

A crença moderna de que a humanidade pode libertar-se de todos os males por meio da técnica, da política ou da história repete, em nova linguagem, a convicção arcaica de que o mundo pode — e deve — ser recriado. Nesse sentido, as religiões políticas modernas são menos desvios da modernidade do que expressões de um núcleo imaginário antigo e duradouro.



Vivemos um tempo em que a arte, essa velha companheira dos nossos delírios e misérias, foi convocada a servir como funcionária subalterna de um tribunal moral permanente. A cinefilia, que outrora — ao menos em nossa mitologia retrospectiva — se pretendia busca apaixonada e errante, tornou-se mais uma província do interminável esforço moderno de policiamento das almas. Não há obra que escape incólume: antes mesmo de existir enquanto experiência, ela deve atestar sua conformidade com um catecismo ideológico de turno.

Chocamo-nos com esse comportamento como se fosse uma aberração nova, mas ele não passa de uma reencenação particularmente caricatural de uma velha esperança moderna: a de que, se apenas conseguíssemos purificar o mundo de seus desvios — morais, políticos, estéticos — finalmente repousaríamos na certeza. A arte seria então a confirmação permanente de nossas crenças; o mundo, por sua vez, uma sala de espelhos.

A inquietação que Sérgio Alpendre (V. 'O Agente Secreto' é bom, mas peca em excesso de ideias e final frustrante) registra — esse amor e ódio instantâneos, pré-obra, pré-experiência — é apenas o sintoma mais recente de uma patologia duradoura: a crença de que nossas identidades políticas podem nos proteger da dissonância, da dúvida, da estranheza. O “lado certo da história”, que agora serve de bússola universal, promete uma orientação segura, mas apenas porque reduz a complexidade da vida humana a uma batalha pueril entre torcidas. Em nome da política, abrimos mão do que é mais valioso: não a neutralidade impossível, mas a autonomia sempre frágil do pensamento.

A modernidade, com seu império de promessas, fez-nos crer que o debate público é o lugar onde a razão triunfa, onde o melhor argumento vence. Mas eu — cético das certezas emancipatórias — penso que as ideologias são apenas religiões com pior literatura, e que sua tarefa essencial é oferecer abrigo aos que temem a contingência do mundo. A polarização estética nada mais faz do que seguir esse impulso: entregar nossas percepções à vigilância de uma ortodoxia que decide, antecipadamente, o que pode ser admirado e o que deve ser banido.

O problema não é novo. A literatura sempre resistiu a esse uso instrumental, não por virtude — virtudes são outra forma de superstição —, mas por natureza. Ela é multívoca, escorregadia, demasiado humana. Reúne ambiguidades como quem coleciona feridas. E é justamente por isso que, como dizia Lionel Trilling, os autores dignos de serem lidos são aqueles que ferem nossos valores mais íntimos com a mesma facilidade com que nos iluminam. A arte desobedece; e é por isso que tantos tentam domesticá-la.

Mas o que assusta não é o gesto higienizador — esse é tão antigo quanto Platão. O que assusta é a voluntariedade com que nos submetemos a ele: nossa ânsia de que interpretam por nós aquilo que nos inquieta. Não suportamos mais a solidão diante de uma obra. Queremos segurança, não experiência. Queremos sentido, não risco.

E no entanto, os grandes escritores — os tão canceláveis quanto indispensáveis — sempre souberam que a moralidade humana não cabe em nossos esquemas. Riobaldo, ao lamentar as “ideias arranjadas”, já intuía aquilo que as democracias liberais, as utopias revolucionárias e a cultura digital insistem em ignorar: que, por trás de nossas doutrinas, existe apenas o “mundo-humano”, refratário, imprevisível, cheio de contradições que não se deixam pacificar.

Talvez por isso seja tão difícil admitir algo tão simples: é possível admirar profundamente uma obra que contradiz tudo aquilo que defendemos. É possível ser transformado por um autor cuja cosmovisão rejeitamos. É possível — e talvez necessário — reconhecer que a arte que mais importa é aquela que nos estraga as certezas, que nos priva da pureza moral à qual secretamente aspiramos.

As obras que sobrevivem — Borges, Guimarães Rosa, Nabokov, Eliot, Mencken, Kraus — não são manuais de conduta, mas laboratórios de conflitos. Elas não nos tornam melhores; tornam-nos mais conscientes da vastidão de nossas falhas. E não há nada mais politicamente subversivo do que isso.

Pois se tudo isso soa sombrio, é porque ainda acreditamos que o papel da arte seria nos reconciliar com o mundo. Eu vos digo o contrário: não há reconciliação possível; o mundo é menos um enigma a ser decifrado do que uma sucessão de forças indiferentes a nossos projetos. A verdadeira libertação está em desistir de dobrá-lo ao nosso desejo.

E, paradoxalmente, é exatamente isso que nos devolve algo que as polarizações contemporâneas nos roubaram: o prazer de não saber previamente o valor de uma obra.

A arte não deve ser o prolongamento das nossas convicções — deve ser o intervalo em que elas são suspensas. Quando abrimos mão do sonho de pureza, recuperamos aquilo que as torcidas digitais não podem oferecer: a possibilidade do encontro inesperado, do estranhamento, da nuance que escapa ao nosso vocabulário político.

No fim, política pode estar em tudo, mas política não é tudo. A vida interior — esse espaço frágil, sempre em risco — cresce justamente onde nossas certezas falham. Nas lacunas, nas ambiguidades, nas dissonâncias.

E é por isso que, diante do filme que ainda não vimos, do livro que contradiz nossas crenças, do autor que seria repudiado por qualquer tribunal contemporâneo, ainda podemos dizer, com Borges — e contra todos os que desejam reduzir o mundo a slogans:

There are more things.

Como em tantas encruzilhadas históricas, a pretensão de neutralidade revela menos prudência do que medo — e prepara o terreno para formas renovadas de servidão


Há momentos na vida política em que a busca pelo equilíbrio deixa de ser uma virtude e se converte em superstição. A democracia liberal, tão orgulhosa de seus rituais de moderação, descobre tarde demais que sociedades não se sustentam apenas por normas, mas por hábitos de imaginação — e, sobretudo, por uma disposição para encarar o perigo sem rodeios. O Brasil de 2018 não foi uma exceção à regra; foi apenas uma versão tropical de um fenômeno recorrente na história moderna: quando instituições se aferram a um ideal abstrato de imparcialidade, a barbárie encontra um caminho fácil para se apresentar como alternativa legítima.

Desde então, parte considerável da imprensa brasileira se aferrou a uma narrativa confortável: a ascensão da extrema direita teria sido um acidente fomentado pelos excessos de seus adversários. Trata-se de um conto de inocência conveniente. Ao transformar a catástrofe em simetria, a imprensa adota um modo de interpretação que, na superfície, parece equilibrado, mas que na essência dissolve responsabilidades. É assim que a brutalidade se naturaliza: não como ruptura, mas como mais um ingrediente na receita de uma polarização inevitável.

Esse movimento não é novo. Ao longo do século XX, democracias maduras cultivaram formas sutis de autoengano justamente para evitar encarar o fato de que a liberdade não é o estado natural das sociedades, mas uma exceção frágil sustentada por vigilância constante. O jornalismo brasileiro, em sua adesão ao “outro lado” como mantra profissional, repete o erro clássico das democracias fatigadas: insiste em submeter a verdade ao protocolo. A fórmula, repetida à exaustão, acaba por legitimar um dilema falso — como se a violência política fosse uma opinião e não um método.

Os relatos recentes de repórteres perseguidos, ameaçados e expostos à crueldade das milícias digitais revelam a assimetria que o discurso da neutralidade tenta soterrar. É revelador que tais obras, apesar de valiosas, ainda hesitem em examinar a cumplicidade estrutural da imprensa na fabricação do monstro que agora tentam descrever. É o velho paradoxo liberal: denunciar os abusos do poder enquanto se resiste a admitir que, por ação ou omissão, ajudou-se a criar as condições que os tornaram possíveis.

John Stuart Mill acreditava que a liberdade florescia quando todas as posições eram expostas e confrontadas à luz da razão. Mas Mill viveu antes de a política se tornar um ramo especializado da indústria do ressentimento. Uma imprensa que insiste em enquadrar a violência como opinião não está exercitando o pluralismo; está, involuntariamente, celebrando uma forma de irracionalismo que reduz a vida democrática a espetáculo.

O doisladismo, essa versão moderna da velha prudência burocrática, opera como uma tecnologia do desgaste moral. Ele transforma agressões em “controvérsias”, falsificações em “alegações”, ameaças explícitas em “declarações polêmicas”. A adversativa é seu instrumento preferido: tudo é dito para que nada seja afirmado. É uma retórica que devolve ao leitor um mundo neutro — e portanto irreal — no qual todas as forças merecem idêntica consideração. A história, porém, é pródiga em demonstrar que a neutralidade diante da selvageria não é moderação; é capitulação.

Jana Viscardi, ao chamar atenção para os detalhes aparentemente banais da linguagem jornalística, aponta para aquilo que sociedades frequentemente se recusam a ver: a política começa na gramática. Cada “suposto”, cada “denunciado por”, cada construção que evita o sujeito responsável pelo dano, opera como um mecanismo de anestesia coletiva. A linguagem que pretende apenas descrever o mundo acaba por moldá-lo — e geralmente em benefício daqueles que já detêm poder.

O episódio da republicação de um texto de Jair Bolsonaro numa antologia dedicada à celebração da democracia revela a que ponto chegamos. Não se trata de um gesto de pluralismo, mas da consagração tardia de um instinto autodestrutivo: o de acreditar que a democracia, para ser fiel a si mesma, deve acolher até aqueles que desejam destruí-la. A história mostra que essa magnanimidade raramente termina bem. Ao tentar ser generosas com seus inimigos, democracias acabam trocando a autocrítica pela indulgência — e a prudência pela autoparódia.

O jornalismo, ao adotar o doisladismo como marca de responsabilidade, sacrifica justamente aquilo que lhe daria utilidade pública: a capacidade de discriminar. Sociedades não desmoronam porque seus inimigos são fortes, mas porque aqueles que poderiam resistir preferem ser vistos como razoáveis. A imprensa brasileira, ao suavizar o intolerável, pratica um tipo de melancolia política típica de épocas de esgotamento: a crença de que a estabilidade pode ser preservada mesmo quando a verdade é deformada.

A catástrofe, como sempre, não chega de súbito. Ela se insinua através de escolhas prudentes, editorias equilibradas, manchetes ponderadas. É na busca ansiosa pelo centro que democracias se perdem; e é na recusa em aceitar a assimetria moral do conflito que o liberalismo revela sua vocação trágica. O Brasil recente apenas confirma esse padrão: quando a imprensa decide que a realidade é inconveniente, quem triunfa não é a verdade, mas o poder.

No fim, o que os últimos anos revelam é algo que tenho reiterado a propósito das democracias contemporâneas: não somos vítimas de forças extraordinárias, mas de nossas próprias ilusões. A neutralidade, tão celebrada como garantia de civilidade, transformou-se em álibi para evitar confrontar o óbvio. E, como sempre, o preço da recusa em olhar para o abismo é acabar vivendo dentro dele.



Há uma crença persistente na imaginação moderna: a de que toda diferença notável é, no fundo, uma forma de promessa — um prenúncio de excelência, uma semente de grandeza, um recurso que o indivíduo, como uma pequena empresa de si mesmo, deveria saber explorar. Essa crença é tão arraigada que raramente percebemos seu aspecto mais brutal: ela recusa à vulnerabilidade qualquer reconhecimento que não seja lido como falha pessoal.

As chamadas “altas habilidades” habitam exatamente essa zona de crueldade conceitual. São celebradas como se fossem uma vantagem moral, quando na verdade muitas vezes são apenas uma forma mais intricada de desamparo. A sensibilidade extrema — à luz, ao ruído, às texturas e ao tumulto emocional do convívio humano — é descrita como refinamento, mas vivida como fragilidade.
No imaginário progressista, talento é um triunfo; na experiência concreta, é frequentemente uma armadilha sensorial.

Não surpreende que, para muitos, a infância e a adolescência tenham sido períodos de suplício. O mundo social das crianças é uma pequena hierarquia de sobrevivência: tudo o que não se conforma ao padrão é punido, não por maldade, mas por instinto. Quando essa diferença ocorre no contexto da pobreza, ela ganha tons mais severos. O pobre não tem o privilégio de ser excêntrico. A miséria exige uniformidade. Ela tolera pouco e perdoa menos.
Em bairros carentes, uma criança sensível não é vista como promissora — é vista como defeituosa.

A modernidade tenta nos convencer de que todos somos livres para nos reinventar, mas essa liberdade nunca existiu fora dos slogans. A maior parte do que determina nossas vidas — temperamento, intensidade sensorial, capacidade de adaptação — nos antecede. Acreditar no contrário é apenas mais uma ilusão humanista. As culturas variam, mas o desconforto diante do diferente é constante. E assim o “dotado”, deslocado por natureza, vê sua diferença transformada não em reconhecimento, mas em suspeita.
Na cidade pequena, ele se torna arrogante por existir; na cidade grande, irrelevante por não performar.

Quando a sociedade discute minorias, costuma pensar naquelas que se encaixam na narrativa progressista: grupos que podem ser transformados em símbolos edificantes. Pessoas com altas habilidades não servem a esse propósito. São desconfortáveis demais, intensas demais, difíceis demais de domesticar. A cultura prefere seus desajustados carismáticos — não aqueles que paralisam diante do excesso de realidade.
Assim, permanece o equívoco: vê-se privilégio onde há apenas outro tipo de sofrimento.

O aspecto mais sombrio disso tudo é que não existe resolução redentora dentro do próprio mito humanista. Não há um ideal de autonomia que possa corrigir a sensação de inadequação constante; não há política pública que elimine o descompasso entre o indivíduo e o mundo; não há narrativa que transforme vulnerabilidade estrutural em triunfo pessoal sem falsificá-la. A sociedade moderna idolatra o talento, mas apenas quando ele entretém, produz ou inspira. Quando ele apenas dói, ela o descarta.

E no entanto — é exatamente nesse ponto que algo como catarse pode emergir — a lucidez que acompanha essa condição é uma forma de libertação que o mundo não sabe nomear. Ao perceber que suas “altas habilidades” não são uma promessa, mas um limite; não uma dádiva, mas uma forma específica de fragilidade; não um privilégio, mas um modo particular de exposição ao sofrimento, algo improvável acontece: a ilusão meritocrática finalmente desmorona.

E com ela cai também o peso da expectativa alheia.

O que resta, depois que o mito se dissolve, não é desespero, mas uma liberdade rara:
a liberdade de não precisar justificar a própria existência em termos de utilidade, brilho ou excepcionalidade.
A liberdade de abandonar o papel que nunca pediu para representar.

Aquela mesma sensibilidade que um dia foi vivida como fraqueza — e que o mundo tratou como extravagância — finalmente pode ser enxergada como aquilo que sempre foi:
não um dom, não um fardo, mas simplesmente a forma específica de estar no mundo que lhe coube.

E aceitar essa realidade, tal como ela é — sem redenção, sem promessa, sem narrativa — pode ser, paradoxalmente, o gesto mais profundo de liberdade que um ser humano pode realizar.

Um olhar cético sobre envelhecer, fracassar e prosseguir — mesmo quando a vida insiste em não oferecer sentido algum



A leitura do ensaio Eu, um velho, de Roger Angell, caiu sobre mim como caem certas verdades incômodas: tarde demais para serem evitadas, cedo demais para serem recebidas com serenidade. Angell descrevia a velhice com a naturalidade brutal de quem já não precisa se justificar. Eu, ainda prestes a completar 35 anos, percebi que aquele texto não era sobre ele — era sobre mim. A lombar doendo, o desejo rarefeito, as noites partidas ao meio por despertares abruptos — tudo ali era uma espécie de prelúdio fisiológico daquilo que viria a ser, mais cedo ou mais tarde, a derrocada silenciosa do corpo.

Nietzsche dizia que “a maturidade do homem consiste em reencontrar a seriedade que tinha quando criança ao brincar”. Nada me parecia mais distante. Eu acordava pensando que havia fracassado nos pontos decisivos da vida, imaginando que mais de noventa por cento dos meus sonhos — tão vibrantes na juventude — jamais se realizariam. Não por tragédia, mas por estatística. A idade já tinha passado, a chance já tinha passado; eu estivera enclausurado no interior da Bahia, afastado daquilo que se costuma chamar de “o mundo”. Reconhecer isso não me trouxe iluminação alguma; apenas a fria compreensão de que ajustar expectativas não é sabedoria, mas sobrevivência.

Relembro tudo isso hoje porque a mãe de um grande amigo morreu. Um desses poucos que a vida nos permite chamar de irmão. E, como sempre, chega-se à notícia com a incompetência emocional que nos caracteriza: nunca estamos prontos. Não sei se visito ou recuo, se escrevo algo ou me calo. O sofrimento alheio é, como lembrou Kafka, “uma porta diante da qual só se pode bater do lado de fora”. E não há protocolo que resolva essa assimetria.

Mas a morte dela, como tantas mortes, acendeu outra percepção: estamos avançando na fila. Sucedemos nossos pais quase sem notar. Tornamo-nos, sem aviso, a geração mais velha. Não tenho filhos, mas já estou próximo da terceira idade. Os jovens agora são os filhos dos meus amigos — essa é a nova régua da passagem do tempo. A vida não só passou; passou por mim como um trem expresso enquanto eu ainda procurava a plataforma.

Alguns acham impressionante o pouco que alcancei. O comentário é sincero, mas errado. Eu queria muito mais. O saldo é essa sensação difusa de transitoriedade, de impotência, de ausência de significado — o mesmo vazio que Camus reconhecia quando dizia que “não há destino que não se vença pelo desprezo”. O problema é que não cheguei ao desprezo; cheguei apenas ao cansaço.

E talvez seja somente isso. Como escreveu Philip Larkin, poeta que entendia o envelhecer com desconfortável clareza, “o que restará de nós é o amor”. Mas a cética experiência humana — aquela que John Gray jamais nos deixaria romantizar — sugere algo ainda mais árido: o que resta de nós é o intervalo entre um desaparecimento e outro.

E é aqui que a catarse se insinua, não como consolo, mas como lucidez: a vida não tem sentido, nunca teve. É justamente por isso que ela nos obriga a caminhar. Somos criaturas que envelhecem, perdem, falham, e ainda assim continuam — não por esperança, mas porque parar seria apenas antecipar o fim.

Talvez a vida seja isso: um breve lampejo entre duas noites. E, ao aceitarmos isso sem medo, tudo aquilo que parecia perda absoluta se revela, enfim, como liberdade.



Poucos lugares revelam mais sobre nós do que os armários que tentamos manter fechados — não por medo do passado, como gostam de supor os psicólogos amateurs, mas por indiferença prática. O esquecimento, ao contrário do que pregam as religiões seculares do progresso interior, não é um fracasso da alma. É uma estratégia de sobrevivência. A memória, quando desperta, é um animal solto numa casa pequena demais.

Dizem que a vida moderna é saturada de objetos; mas isso é apenas uma forma educada de constatar que as pessoas colecionam simulacros do que não viveram. Tudo aquilo que está encostado no fundo do armário — óculos de armação redonda, um caderno da escola, uma camiseta com o cheiro de um ano que já não existe — não são relíquias de um eu essencial. São resíduos de identidades que nunca chegaram a se completar. A cultura ocidental insiste em falar do “verdadeiro eu” como se fosse uma estátua enterrada num sótão e que só precisa ser desempoeirada. Mas quando abrimos o closet, não encontramos o mármore de uma estátua: encontramos plástico, metal, tecido — matérias que envelhecem sem adquirir sabedoria.

A memória involuntária, esta entidade literária que Proust imortalizou, é frequentemente romantizada como um sopro da transcendência. É mais prudente vê-la como um curto-circuito. Enquanto buscamos o documento burocrático que permitirá ao nosso dia continuar, somos surpreendidos por um objeto sem utilidade aparente, que acende por engano um feixe de conexões nervosas apagadas. A experiência é perturbadora não porque revela algum segredo profundo, mas porque recorda algo que preferimos ignorar: não comandamos o que nos constitui. O passado não retorna para oferecer sentido — retorna para demonstrar que o sentido nunca esteve sob nosso controle.

Cada lembrança que emerge do fundo das gavetas possui a crueldade silenciosa de um animal selvagem. Não anuncia intenções; simplesmente aparece. A psicologia moderna tenta capturá-la com diagnósticos: déficit de atenção, tendências ruminantes, traços de nostalgia. A moral civil das sociedades avançadas, sempre ansiosa por vigiar os desvios, propõe comprimidos para domar esses movimentos inesperados do espírito. A aventura interior, dizem, é sintoma. Mas se existe alguma forma de aventura possível para nós — criaturas que já não acreditam em deuses, nem confiam muito na razão — ela se encontra precisamente nessa falha, nesse tropeço da consciência que abre, por um instante, uma passagem para algo que escapa a qualquer manual.

O objeto encontrado, entretanto, não pede que o veneremos. Ele pode ser descartado sem cerimônia, como fazemos com quase tudo. A maioria das pessoas, como Bento Santiago, fecha o armário com o mesmo zelo com que fecha a narrativa da própria vida. O passado é convocado apenas para legitimar uma acusação, para sustentar um ressentimento, para provar que nunca nos enganamos. A memória involuntária ameaça esse projeto porque não obedece ao princípio de utilidade. Ela oferece vislumbres de alegria sem propósito, lampejos de beleza que não servem para nada — e o ego, que vive de funções e finalidades, sente-se insultado.

É por isso que a maioria sai do closet segurando, não o objeto que brilhou na sombra, mas o documento que permite continuar riscando Xs na agenda. A continuidade — essa ficção de que somos a mesma pessoa que fomos ontem — exige uma devoção diária. Lembrar demais é perigoso: pode dissolver o frágil pacto entre o corpo dolorido e a história que ele repete mecanicamente.

Há quem veja nisso uma tristeza. Mas a visão é ingênua. O ser humano não é feito para uma grande revelação. Somos, na melhor das hipóteses, coletores de fragmentos. Às vezes, um pedaço de metal frio na mão — o aro de um óculos antigo — irradia uma sensação quase gloriosa, e imediatamente desaparece. Nada é recuperado por completo. Nenhuma vida é restaurada como uma restauração de museu. A memória devolve coisas que não pedimos, e recusa as que suplicamos. Não nos recompensa por esforço algum.

Talvez seja esse seu único gesto de liberdade.

O passado, afinal, não é um relicário nem um tribunal; é um depósito indiferente. Não guarda lições nem confissões. Se algo nele parece sagrado, é apenas a persistência inexplicável de um odor, de uma textura, de uma tarde que reaparece sem necessidade. E nisso a vida revela seu caráter mais profundo: não há progresso, não há direção, não há redenção — apenas ciclos de esquecimento interrompidos por acidentes de lembrança.

Se existe sabedoria, ela não está em buscar o tempo perdido, nem em condenar Capitu, nem em tentar reconstruir a própria biografia com a pretensão de dominá-la. Ela talvez resida apenas na capacidade de reconhecer que, ao abrir um armário, entramos num território onde nada nos pertence completamente. Um território onde somos visitantes, não autores.

A memória é uma aventura, sim — mas do tipo que o ser humano suporta apenas em pequenas doses, como quem contempla um animal selvagem através das grades. Aproximar-se demais seria perigoso. Tocá-la de verdade talvez destruisse mais do que ilumina.

E, no entanto, de vez em quando, o animal salta. E nós estremecemos, ainda vivos.
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