A civilização moderna é construída sobre a ilusão do progresso. Essa é a grande fé secular do nosso tempo — mais penetrante e inquestionada do que qualquer religião monoteísta. Em nome do progresso, as sociedades sacrificaram tradições, rasgaram vínculos e trocaram a sabedoria local por promessas abstratas. Nenhuma patologia revela mais claramente as rachaduras desse culto do que a acídia — não no sentido medieval, mas em sua manifestação contemporânea: a tristeza melancólica dos que vivem presos entre mundos, incapazes de pertencer a qualquer um deles.
O Brasil, como outros países condenados à condição de eternamente “em desenvolvimento”, é um viveiro dessa aflição. A acídia brasileira, no entanto, é uma variante tropical de um mal mais antigo e mais vasto, conhecido de forma pungente pela aristocracia russa do século XIX — um grupo de senhores de terras que falavam francês e contemplavam a alma russa como um objeto exótico e inferior. Essa classe, muito antes de qualquer globalização, já era cosmopolita em forma e provinciana em essência, e por isso mesmo mergulhada em uma crise espiritual sem solução.
Não é por acaso que tantos intelectuais brasileiros se reconhecem em Herzen ou Tchékhov: são, como eles, mazombos espirituais — filhos bastardos do Iluminismo europeu nascidos em terras onde a razão sempre foi um animal importado e desconfortável. Eles pensam em francês ou inglês, mas vivem em português; alimentam-se de ideias formuladas em Londres, Nova York ou Paris, mas aplicam-nas num solo que nunca se prestou a elas. Estão, como disse Ortega y Gasset de maneira menos brutal do que se merecia, "deslocados": não por opção, mas por condição.
O dilema do mazombo, essa figura meio-casta da modernidade periférica, é o mesmo do homem secular em qualquer parte do mundo. Pois a secularização, longe de libertar os indivíduos da culpa e da salvação, apenas transmutou esses temas em novas linguagens. Hoje, não se busca mais a vida eterna, mas a realização pessoal; não se teme mais o inferno, mas o fracasso; não se espera mais pelo Juízo Final, mas pelo dia em que se terá sucesso, reconhecimento e plenitude — tudo isso garantido não por um Deus, mas pelo mercado, pela psicologia positiva ou pelo algoritmo. A tristeza que acomete o brasileiro de classe média ao rolar o feed não é tão diferente da melancolia do monge medieval ao perceber sua fé vacilante. Ambos vivem o colapso de um horizonte de sentido.
Mas ao contrário do monge, o moderno não reconhece sua tristeza como sintoma de uma perda espiritual. Ele a chama de depressão, esgotamento, falta de foco — e prescreve a si mesmo meditação guiada, viagens ao exterior ou alguma outra solução tecnológica para um problema que é, fundamentalmente, teológico. Pois a acídia, como a compreendia Tomás de Aquino, era a tristeza diante da percepção de que a salvação não viria. O moderno, mesmo tendo abolido a ideia de salvação, sofre da mesma dor: ele também sente que nunca chegará a ser aquilo que prometeu a si mesmo ser. Ele também tem um “inferno”, feito não de fogo, mas de irrelevância.
Nesse aspecto, o brasileiro mazombo, com seu inglês entrecortando o português e seus ideais importados da Nova Zelândia, nada mais é do que um mártir tardio de uma religião morta — a religião do progresso universal. Como seus antepassados russos, ele habita um tempo histórico desajustado: o presente de seu país e o futuro de sua mente estão em permanente desencontro. Ele se movimenta com frenesi, como os revolucionários niilistas de Dostoiévski, mas seu desespero não é político: é metafísico. Ele não acredita mais em Deus, mas também não consegue crer na democracia, no crescimento econômico ou nas promessas da modernidade liberal. Como poderia? Essas promessas não foram feitas para ele.
Talvez, então, a acídia contemporânea não seja um desvio, mas o estado natural do homem moderno. A crença no progresso foi uma anomalia, uma breve chama de fé antes que a noite voltasse. A resignação dos russos diante de sua própria desgraça talvez tenha sido mais sábia do que a esperança brasileira de “chegar lá”. Pois onde exatamente é “lá”? Quem disse que lá é melhor do que aqui? E mais importante: por que deveríamos desejar ser salvos?
As religiões pelo menos tinham a honestidade de reconhecer que a vida é sofrimento e que qualquer promessa de redenção seria misteriosa e incerta. A modernidade, com sua autoajuda disfarçada de ciência social, nos prometeu o céu agora — e, ao fracassar, deixou apenas a ressaca. A acídia, essa tristeza que nasce da esperança falida, é o lembrete de que toda utopia termina em tédio, ou em crueldade. Talvez, como os santos do deserto, devêssemos aprender a não esperar salvação alguma. Isso, pelo menos, seria um começo mais honesto.
Num dia qualquer, em meio ao zumbido das notificações que preenchem o cotidiano como sirenes invisíveis, um vídeo de gosto duvidoso chega pelo WhatsApp. Nenhuma legenda, nenhum pedido de desculpas: apenas a mensagem fria e súbita de quem, talvez por tédio, escolheu esquecer que também existe o bom senso.
O gesto — aparentemente banal — carrega em si algo maior. Em uma época onde cabos não mais nos conectam, mas dados invisíveis cruzam fronteiras com a velocidade de pensamento, há uma ausência que inquieta: o discernimento.
Pense numa senhora dos anos 1950, envolta por vestidos de tecido grosso e com um rádio de válvulas em cima da cristaleira. O que diria ela ao ver uma chamada de vídeo entre dois continentes, onde se partilha, não uma conversa sobre o tempo, mas um meme ruidoso?
As ferramentas estão aqui, brilhando como vitrines de um futuro que virou presente. Elas nos permitem reencontrar parentes esquecidos — como o tio-avô que ressurgiu das sombras graças ao Orkut — e resgatar histórias do passado por meio de pixels e emoticons. MSN, aquele salão de bate-papo digital agora extinto, foi palco de reconexões que nem o destino ousou escrever.
Mas, como em toda boa história, há um senão: o uso. Esses instrumentos, desenhados com a precisão dos relojoeiros suíços, muitas vezes se veem à mercê do improviso malicioso. O problema não são as redes, são os dedos. A conexão não é falha: é o humano.
Talese, mestre dos detalhes e da elegância dos gestos cotidianos, talvez encerrasse o pensamento com uma cena sutil — uma mesa de café, um celular sobre ela, e o silêncio entre duas pessoas refletindo se o que compartilham é presença... ou apenas ruído.
O gesto — aparentemente banal — carrega em si algo maior. Em uma época onde cabos não mais nos conectam, mas dados invisíveis cruzam fronteiras com a velocidade de pensamento, há uma ausência que inquieta: o discernimento.
Pense numa senhora dos anos 1950, envolta por vestidos de tecido grosso e com um rádio de válvulas em cima da cristaleira. O que diria ela ao ver uma chamada de vídeo entre dois continentes, onde se partilha, não uma conversa sobre o tempo, mas um meme ruidoso?
As ferramentas estão aqui, brilhando como vitrines de um futuro que virou presente. Elas nos permitem reencontrar parentes esquecidos — como o tio-avô que ressurgiu das sombras graças ao Orkut — e resgatar histórias do passado por meio de pixels e emoticons. MSN, aquele salão de bate-papo digital agora extinto, foi palco de reconexões que nem o destino ousou escrever.
Mas, como em toda boa história, há um senão: o uso. Esses instrumentos, desenhados com a precisão dos relojoeiros suíços, muitas vezes se veem à mercê do improviso malicioso. O problema não são as redes, são os dedos. A conexão não é falha: é o humano.
Talese, mestre dos detalhes e da elegância dos gestos cotidianos, talvez encerrasse o pensamento com uma cena sutil — uma mesa de café, um celular sobre ela, e o silêncio entre duas pessoas refletindo se o que compartilham é presença... ou apenas ruído.
Faz exatamente um mês, no dia em que escrevo estas linhas, que ele se foi. A ausência dele ainda reverbera como um eco surdo nos cantos da casa, e no silêncio do quarto durante a madrugada, o peso da perda parece ganhar forma. Foi nessa hora — aquela em que o corpo descansa mas a mente ainda vagueia — que ele me apareceu em sonho. A imagem dele surgiu nítida, como se estivesse de pé diante de mim, embora, mesmo no sonho, eu soubesse que estava dormindo. Ainda assim, tomei coragem e perguntei. Quis saber o porquê. Por que ele tinha feito aquilo? Por que escolhera morrer — ou, ao menos, por que permitira que a morte o levasse — deixando-nos aqui, com esse sofrimento mudo, essa espécie de luto que nem sempre se manifesta em lágrimas, mas pesa igual?
Sabia, claro, que qualquer resposta seria fabricada dentro dos porões do meu inconsciente, filtrada pelas minhas próprias angústias e desejos. Ainda assim, eu procurava por ela — a resposta. Buscava um sentido que, talvez, nem ele soubesse dar, nem em vida, quanto mais agora. Foi quando ele começou a falar. Disse que estava cansado. Cansado de lutar. As palavras soaram como se viessem de muito longe, por trás de uma parede espessa de tempo e distância. Eu quis perguntar que luta era essa — a luta contra o corpo? Contra a mente? Contra o mundo? — mas antes que pudesse formular a pergunta, fui puxado de volta ao mundo dos vivos. O nariz congestionado, a dor aguda na cabeça e uma sensação de mal-estar geral me arrancaram daquele breve reencontro onírico. Acordei, febril.
Minha mãe, que tenta manter a compostura, como quem acredita que o silêncio é uma forma de força, publicou algumas fotos dele no status do WhatsApp. Um gesto simples, mas carregado de dor. É a forma dela de falar sobre ele sem precisar usar palavras. É também sua forma de dizer que ainda sofre, mesmo quando finge que não. Porque há dores que se acomodam em silêncio e se camuflam nos pequenos gestos.
No final da tarde, saí com Lucky. O cachorro, com seu faro infalível para a rotina, insistiu com aquela ansiedade que só os animais têm para sair. Sua expectativa quase infantil me forçou a calçar os tênis, vestir uma blusa e acompanhar o ritmo da rua, que parecia ignorar que estávamos todos de luto. Quando voltamos, encontrei a sala preenchida por presenças conhecidas. Luana — com o pequeno Marco Antônio —, Grei, Esther. Minhas primas. Todas estavam ali, sentadas perto da minha mãe, com aquela expressão que mistura afeto e impotência. Vieram oferecer suas condolências, mesmo que discretas, como se o simples ato de estarem ali já bastasse. Em algum momento isso teria que acontecer: o luto compartilhado, o reconhecimento da perda por parte da comunidade.
Agora, no fim da noite, o corpo ainda dói. A febre persiste, a tosse aparece em intervalos cada vez mais curtos. Amanhã, terei aula o dia inteiro — tarde e noite. Não sei se estarei melhor até lá, mas pretendo ir. Um passo de cada vez, como quem tenta, aos poucos, retomar o movimento do mundo.
Sabia, claro, que qualquer resposta seria fabricada dentro dos porões do meu inconsciente, filtrada pelas minhas próprias angústias e desejos. Ainda assim, eu procurava por ela — a resposta. Buscava um sentido que, talvez, nem ele soubesse dar, nem em vida, quanto mais agora. Foi quando ele começou a falar. Disse que estava cansado. Cansado de lutar. As palavras soaram como se viessem de muito longe, por trás de uma parede espessa de tempo e distância. Eu quis perguntar que luta era essa — a luta contra o corpo? Contra a mente? Contra o mundo? — mas antes que pudesse formular a pergunta, fui puxado de volta ao mundo dos vivos. O nariz congestionado, a dor aguda na cabeça e uma sensação de mal-estar geral me arrancaram daquele breve reencontro onírico. Acordei, febril.
Minha mãe, que tenta manter a compostura, como quem acredita que o silêncio é uma forma de força, publicou algumas fotos dele no status do WhatsApp. Um gesto simples, mas carregado de dor. É a forma dela de falar sobre ele sem precisar usar palavras. É também sua forma de dizer que ainda sofre, mesmo quando finge que não. Porque há dores que se acomodam em silêncio e se camuflam nos pequenos gestos.
No final da tarde, saí com Lucky. O cachorro, com seu faro infalível para a rotina, insistiu com aquela ansiedade que só os animais têm para sair. Sua expectativa quase infantil me forçou a calçar os tênis, vestir uma blusa e acompanhar o ritmo da rua, que parecia ignorar que estávamos todos de luto. Quando voltamos, encontrei a sala preenchida por presenças conhecidas. Luana — com o pequeno Marco Antônio —, Grei, Esther. Minhas primas. Todas estavam ali, sentadas perto da minha mãe, com aquela expressão que mistura afeto e impotência. Vieram oferecer suas condolências, mesmo que discretas, como se o simples ato de estarem ali já bastasse. Em algum momento isso teria que acontecer: o luto compartilhado, o reconhecimento da perda por parte da comunidade.
Agora, no fim da noite, o corpo ainda dói. A febre persiste, a tosse aparece em intervalos cada vez mais curtos. Amanhã, terei aula o dia inteiro — tarde e noite. Não sei se estarei melhor até lá, mas pretendo ir. Um passo de cada vez, como quem tenta, aos poucos, retomar o movimento do mundo.
Na memória de um menino de nove anos, o dia em que sua mãe lhe apresentou à máquina de escrever portátil da marca Olivetti se cristalizou como um rito de passagem — embora fosse “portátil” apenas segundo o marketing. O peso do objeto excedia as forças do pequeno corpo que o recebeu com entusiasmo quase religioso. Final dos anos 1980. A expectativa do novo, a promessa de criação, imprimiram na mente infantil um alvoroço que o acompanhará pela vida inteira.
O menino saiu da loja com os olhos acesos e a cabeça fervilhando. Voltou para a casa da avó — lar temporário de tantos sonhos — subindo a ladeira da Pedreira com o pensamento fixo na técnica que sua mãe, mulher de paciência firme e vocação pedagógica sem diploma, havia lhe ensinado. Havia um botão giratório que controlava a entrada da folha de papel. Era preciso girá-lo, inserir o sulfite, puxar uma alavanca para soltá-lo, alinhar bordas com rigor quase matemático, e devolver a alavanca ao ponto de origem antes de girar novamente o botão, até que o papel repousasse perfeitamente, pronto para ser marcado.
Não era apenas técnica. Era iniciação. A mãe lhe mostrara como “bater” letras maiúsculas e minúsculas, como corrigir erros — sobrepondo letras com a coragem de aceitar rasuras — como alternar entre o preto e o vermelho, e até usar a letra “l” como um número “1”, recurso de engenhosidade doméstica que só os iniciados sabiam manejar.
Essa mesma mãe, que não se via como comerciante nem como provedora tradicional, já havia lhe dado a chave da alfabetização. O conduziu por histórias em quadrinhos, entre patos falantes e coelhos espertos, pelas páginas da Disney e da Turma da Mônica. Incentivou-lhe o traço e a narrativa, como quem planta sementes sem cobrar a colheita. A sua herança veio em forma de cultura — múltipla, acessível, generosa.
Hoje, o menino é um homem. E mesmo que os números lhe escapem — em transações, cálculos ou finanças — há nele uma consciência clara da diferença. Não melhor, não pior. Apenas outro. Alguém que lê por prazer, desenha por impulso, canta por alegria, escreve por necessidade. Nenhuma dessas paixões lhe trouxeram riqueza. E isso, talvez, nunca mude. Não será ícone de prosperidade. Não será exemplo universal.
Mas é feliz. Profundamente feliz com o homem que se tornou. E a raiz de tudo isso — a origem silenciosa, mas incontornável — está na mulher que lhe ensinou a bater as primeiras letras e a sonhar com elas.
Ele usava uma gravata torta, do tipo que um estagiário aprende a dar no terceiro mês de trabalho, quando já não quer parecer um estagiário. Sentou-se na mesa do café como se tivesse vencido uma maratona, jogando as costas na cadeira com a satisfação meticulosa de quem acha que merece estar ali — e talvez achasse mesmo.
O reencontro, proposto por ele com um “vamos marcar aquele café!”, começou com os clássicos tapinhas no ombro e as piadas internas dos tempos da faculdade, quando os dois escreviam reportagens para o jornal universitário com a mesma pretensão de salvar o mundo — e a mesma ignorância sobre como funcionava o mundo que queriam salvar.
Mas agora só um deles estava salvo.
“E aquela revista que você tava?”, ele perguntou, mexendo o açúcar com a colher como quem mexe no passado do outro. Quando ouviu que a revista havia fechado, arregalou os olhos por um instante — rápido demais para ser sincero, lento demais para parecer educado.
Então veio o sermão. Disfarçado de ironia, com um humor involuntariamente cruel, desses que se camuflam no tom de piada para poderem escapar impunes. Falou sobre planejamento de carreira, sobre oportunidades que se criam, sobre como o fracasso, no fundo, é uma falha de caráter bem mascarada.
Ele se despediu satisfeito. Tinha feito a sua boa ação do dia — e ainda por cima com graça. Saiu dali com a sensação de que havia dito algo importante. Um homem convencido de sua lucidez é sempre o mais perigoso dos profetas.
No dia seguinte, o artigo: uma longa coluna sobre desigualdade, sobre jovens talentos esquecidos pelo mercado, sobre a necessidade de um jornalismo mais humano. Escreveu, com a solenidade de um bispo social-democrata, que ninguém deveria ser julgado por sua condição momentânea. Era, para todos os efeitos, um texto com o qual o seu antigo colega desempregado podia concordar — exceto por um detalhe: o autor não acreditava naquilo quando não estava escrevendo.
Na prática, o discurso social servia apenas como um adorno ideológico, um cinto moral que se usava na cintura da consciência para parecer mais elegante. Era preciso estar desempregado para saber que o pior da pobreza não era a falta de dinheiro, mas a falta de escuta. A sensação de se tornar invisível para aqueles que, há pouco, dividiam a mesa do bar e os sonhos juvenis.
Ninguém supera uma fase ruim apenas com planilhas e conselhos motivacionais. Supera-se com solidariedade silenciosa, com a dignidade de uma escuta honesta, com a delicadeza de não fazer perguntas demais. O desempregado, o quebrado, o frustrado — ele não quer ser salvo por um messias cínico. Ele só quer ser tratado como alguém que ainda pertence à vida.
É curioso como os bem-sucedidos acham que o fracasso alheio é sempre uma escolha mal feita. Talvez porque admitir o contrário signifique encarar o quanto sua própria ascensão dependeu de fatores externos — contatos, empurrões, silêncios coniventes. O mercado editorial, por exemplo, nunca foi uma meritocracia: é um clube. E quem nega isso costuma estar dentro.
O que falta, talvez, não seja um plano de carreira, mas um plano de convivência. A pobreza — mesmo que temporária — desmoraliza quem a atravessa não apenas pela dificuldade material, mas pela vergonha imposta. O fracasso alheio parece nos incomodar porque nos lembra que o chão ainda está ali, e que é mais perto do que gostamos de imaginar.
O colega bem-sucedido acreditava em grandes teorias e diagnósticos sociais, mas não sabia o que fazer diante de um ser humano em crise. E isso diz muito mais sobre ele do que qualquer editorial que venha a escrever.
A modernidade ensinou-nos a duvidar das coisas. Confiamos no discurso, desconfiamos do silêncio; valorizamos o gesto grandioso, desprezamos a repetição modesta. Contudo, a verdade — se ainda é lícito usar essa palavra — raramente se revela no que é barulhento. Ela habita o que não se anuncia. E nisso, talvez, os objetos tenham nos compreendido melhor do que nós mesmos.
Uma xícara com a borda lascada pode carregar mais humanidade do que um romance inteiro de frases bem compostas. Nela está depositada a memória — não apenas como lembrança, mas como forma de vida sedimentada. É o que Nietzsche poderia ter chamado de um hábito da alma. Em seu uso diário, sem exaltação nem fanfarra, revela-se o que resta da autenticidade num mundo entregue à encenação.
A crítica ao sentimentalismo barato — ou pornografia emocional — não é uma recusa da emoção. É, antes, o reconhecimento de que o afeto genuíno exige tempo, hesitação, ambiguidade. Ao contrário da catarse instantânea prometida pela cultura de massas, a emoção verdadeira é desconfortável. Ela não se presta ao espetáculo porque não é redutível à fórmula. Ela exige a coragem do não dito.
A cultura contemporânea, porém, vive sob o império da transparência afetiva. A literatura, a música, o cinema — tudo parece concebido para produzir uma reação previsível, como se o valor de uma obra se medisse pela intensidade da lágrima que provoca. O que se perde nesse processo é o próprio espaço interior, onde a emoção se elabora de forma não-linear, onde o silêncio também é fala.
Talvez essa ânsia por comoção tenha origem no vazio de sentido. Um mundo desprovido de transcendência precisa dramatizar a imanência. Mas a tentativa de substituir o sagrado pela emoção produz apenas uma paródia do sagrado — algo que emociona sem transformar. A pornografia emocional é, nesse sentido, um sintoma de desespero espiritual.
Há, porém, uma resistência silenciosa. Está nos escritores que recusam o excesso. Em Tchekhov, o silêncio vale mais que a lágrima. Em Thomas Mann, a emoção infiltra-se como o vento sob a porta — imperceptível, mas real. Em ambos, há uma aposta no detalhe como portador de verdade. A colher no prato, o gesto repetido, a pausa entre duas palavras — são aí que se esconde o que a linguagem não pode dizer.
Isso nos obriga a repensar o próprio ato de escrever. Escrever não é manipular emoções. É oferecer um espaço onde elas possam acontecer. O bom escritor não se impõe como maestro de um concerto emotivo; ele se retira, como um anfitrião discreto, e deixa que o leitor descubra sozinho o que há de verdadeiro numa cena comum.
Essa retirada exige uma forma de humildade que é rara num tempo em que o narcisismo se tornou virtude. Exige também uma visão trágica da vida: o reconhecimento de que há dores que não se resolvem, afetos que se contradizem, momentos que passam sem redenção. E, sobretudo, exige a disposição de confiar no pequeno. Pois é no pequeno — nas xícaras, nos silêncios, nos gestos esquecidos — que o real se manifesta.
Ao fim, talvez reste apenas isso: uma recusa ativa à encenação. Não como gesto de pureza moral, mas como forma de resistência ontológica. Num mundo saturado de emoção performática, a contenção torna-se subversiva. E uma xícara lascada pode ser, sem exagero, o último reduto do humano.
por alguém que ainda prefere pensar devagar
A maioria das pessoas lê poesia como quem folheia panfletos: busca a mensagem, a lição, a moral da história. E quando não a encontra, acusa o autor de obscuro, hermético, irônico demais — como se ironia fosse um defeito. Esse impulso redutivo não é um problema de leitura, mas de formação espiritual: vivemos num tempo em que quase ninguém sabe mais escutar uma forma.
É nesse ambiente hostil à linguagem que a poesia de Paulo Leminski aparece com um brilho paradoxal. Brilho discreto, quase indiferente ao aplauso. Leminski não quer ser amado — quer ser ouvido. E para ouvi-lo, é preciso reaprender algo que nossa cultura há muito esqueceu: que a linguagem não serve apenas para dizer o mundo, mas para dizer-se mundo.
Reler Leminski hoje é reencontrar a presença do logos em estado bruto: a palavra antes da interpretação. Seus poemas curtos não são resumos; são proposições filosóficas na forma de murmúrio. Ao contrário da verborragia acadêmica ou da poesia inflacionada de sentimentos, ele escolhe a via mais difícil: dizer pouco, para que cada sílaba seja uma decisão ontológica. E isso, que deveria ser evidente, passa despercebido.
Tomemos o poema:
isso?Muitos lerão isso como um jogo. Outros, como um gracejo pós-moderno. Estão errados — ou melhor, estão cegos à gravidade do gesto. Esse poema não é uma brincadeira. É uma síntese existencial. Está ali o espanto primordial do ser lançado no tempo: a surpresa do nascimento, a violência da finitude, a velocidade da experiência e a impotência da linguagem. Leminski condensa em quatro palavras uma angústia milenar — e o faz com a leveza de quem sabe que, no fim, nenhuma angústia é original.
aqui?
já?
assim?
Sua poesia, ao contrário do que pensam os cultores da espontaneidade, não é produto do improviso. É fruto de uma inteligência cultivada com disciplina: há latim ali, há Zen, há Nietzsche, há Bashô, há concretismo e haicais, há erudição e sensibilidade histórica. Mas tudo isso é destilado até chegar ao essencial — ao que permanece quando a linguagem se esgota de si mesma.
O poeta que muitos chamam de "malandro" é, na verdade, um monge disfarçado. Um monge que se move por dentro do caos urbano com a tranquilidade de quem medita em trânsito. Seus poemas são rituais privados executados em público. Não há sentimentalismo, não há retórica de sofrimento, não há pedido de empatia. Há forma. E a forma, se bem compreendida, é sempre uma ética.
Por isso mesmo, não se pode ler Distraídos venceremos sem perceber a mudança de temperatura. Ali, Leminski já não é apenas o virtuose da concisão, mas o homem que retorna do sofrimento com uma nova técnica: a rarefação. Ele mesmo escreveu que buscava a “abolição da referência”, e isso não é escapismo — é alquimia poética. Transforma a dor em música silenciosa. Não a comunica, a transmuta. É o contrário da confissão.
Há um ponto aqui que vale sublinhar. A maior parte da poesia contemporânea oscila entre o sentimentalismo kitsch e o formalismo estéril. Leminski escapa disso com uma elegância brutal. É como se dissesse ao leitor: “sinta, mas não se derrame; pense, mas não se prenda à ideia”. Essa exigência formal vem de uma consciência aguda do tempo — de sua brevidade, de sua desordem, de sua indiferença. E é justamente por compreender o tempo que Leminski constrói uma poética da pausa. Um poema, nele, é sempre uma interrupção. Não no fluxo da linguagem — mas no automatismo do mundo.
Tampouco se engane com seu humor. O humor em Leminski é um índice da sua inteligência trágica. Ele sabe que a piada, quando bem feita, revela mais que mil diagnósticos sociológicos. Isso é algo que o leitor sério precisa reaprender: o riso não é inimigo da verdade. Muitas vezes, é sua única forma aceitável.
arte do cháEste poema é um tratado espiritual condensado. A cerimônia do chá, na tradição zen, exige atenção plena, gestos conscientes, economia absoluta. Leminski captura tudo isso em um convite informal — e termina com uma frase que parece banal: “ficou por isso mesmo”. Mas aí está a beleza. Tudo ficou por isso mesmo — e isso basta. Esse é o ponto em que a poesia toca a sabedoria: quando abandona o desejo de provar algo.
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
A trajetória final de Leminski, marcada pela decadência física, não apaga sua lucidez — a torna mais rara. Em seus últimos versos, a linguagem já não é mais instrumento de expressão, mas vestígio de algo que resiste ao colapso: a integridade da forma diante do caos interior.
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
Esse tipo de formulação não nasce do desespero, mas da aceitação. E aceitar não é resignar-se. É compreender que viver, como ele diz, “não tem cura” — e seguir escrevendo como quem doma o incurável com precisão cirúrgica.
Leminski não quis ser um modelo. E é por isso mesmo que se tornou um. Seu exemplo não está no que pensava, mas em como escrevia. Ele não propõe ideias: propõe gestos de linguagem. E esses, ao contrário das ideias, são difíceis de falsificar.
Hoje, sua obra cintila nas redes como se tivesse sido feita para isso. Mas é apenas um acaso — ou, como ele escreveu:
acaso é este encontroPode ser. Mas esse acaso, em Leminski, nunca é gratuito. É sempre um convite à atenção. E a atenção, nos dias que correm, é talvez a última forma legítima de resistência.
entre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que eu faço?
A frase de Cristina Peri Rossi — “desde criança tinha o desejo veemente de escrever contra vento e maré” — é, à primeira vista, uma expressão de teimosia artística, um ímpeto individual. Mas, ao olhar mais de perto, essa declaração revela uma postura mais profunda: a do escritor como insurgente. Não insurgente no sentido revolucionário clássico, de tomada de poder, mas no sentido mais sutil e duradouro: o de resistência contra a tentativa de aniquilar a memória.
Na tradição liberal ocidental, costuma-se celebrar a liberdade de expressão como direito inalienável. No entanto, raramente se reconhece o papel do escritor sob regimes autoritários: não como alguém que simplesmente deseja se expressar, mas como alguém que carrega a responsabilidade de preservar aquilo que o Estado deseja apagar — a lembrança da violência, a dignidade dos vencidos, a subjetividade dos silenciados.
A América Latina do século XX conheceu muito bem esse processo. As ditaduras militares que se espalharam pela região — no Chile de Pinochet, na Argentina da Junta, no Brasil do AI-5 e no Uruguai que forçou Peri Rossi ao exílio — não foram apenas projetos de dominação política. Foram também máquinas de esquecimento. Como todo projeto totalitário, essas ditaduras entendiam que o controle da memória era uma forma superior de poder. Apagar, manipular ou reescrever o passado era tão essencial quanto reprimir o presente.
Cristina Peri Rossi, Leila Guerriero, Beatriz Sarlo: nomes de mulheres que se colocaram contra esse processo de apagamento. A literatura, em suas mãos, não é um reflexo do real nem uma fuga dele — é um campo de disputa. Guerriero, ao mergulhar no testemunho de Silvia Labayru, torturada na Argentina, não apenas reconstrói um episódio histórico: ela reabre uma ferida que muitos prefeririam manter cauterizada. Sarlo, por sua vez, não nos oferece respostas, mas exige que enfrentemos as contradições entre a memória e a história — pois, como ela bem diz, “nem sempre a história consegue acreditar na memória”.
Essa distinção é fundamental. A história, em sua forma acadêmica e institucional, busca provas, evidências, cronologias. Já a memória é vivida, fluida, frequentemente incômoda. A memória dos que sobreviveram à tortura, ao desaparecimento de filhos, ao exílio, não se encaixa nas narrativas reconfortantes de reconciliação nacional. Por isso, tende a ser descartada ou relativizada. No Brasil, por exemplo, onde nenhuma comissão da verdade resultou em punições e onde autoridades atuais questionam os horrores da ditadura, o esquecimento é quase uma política de Estado.
Para um pensador secular como eu, que rejeita utopias políticas e desconfia de qualquer teleologia da história, a obra desses escritores é uma forma de verdade mais profunda do que a historiografia pode oferecer. Porque ela não tenta organizar o passado em nome de um futuro melhor. Ao contrário: ela nos mostra que o passado não passa. Ele insiste. Ele sangra. Ele se infiltra no presente — seja na fala de um presidente que nega a tortura, seja no silêncio de uma sociedade que prefere não lembrar.
E aqui voltamos à figura do escritor como insurgente. Em um mundo onde os horrores do século XX são constantemente reescritos em nome da estabilidade, da paz ou do progresso, o verdadeiro gesto radical não é propor um novo sistema político — é lembrar. Recontar. Escrever, contra vento e maré.
Cristina Peri Rossi escreveu durante o exílio, quando o Estado queria que ela desaparecesse. Guerriero ouve vozes que o poder preferiria esquecer. Sarlo questiona a própria possibilidade de construir uma história verdadeira a partir de uma memória conflitante. Essas mulheres não escrevem por nostalgia ou heroísmo. Escrevem porque sabem que o esquecimento é a forma mais insidiosa de violência. E porque sabem que, em última instância, a luta pelo passado é também uma luta pelo presente.
Talvez o mais perturbador seja que a repressão, mesmo derrotada, continua vencendo se consegue fazer com que se esqueça. Contra isso, resta apenas a literatura — não como monumento, mas como ruína viva, como ferida aberta, como insistência.
Essas autoras estão sendo publicadas no Brasil. Procure por suas obras.
A história da leitura é também a história do ser humano tentando escapar da condição humana. No gesto silencioso de quem abre um livro há, frequentemente, um desejo não de compreender o mundo, mas de abandoná-lo — ou, no máximo, de torná-lo suportável. A leitura foi, por séculos, uma das poucas formas aceitáveis de alienação — um meio respeitável de esquecimento. Hoje, porém, esse esquecimento se automatizou.
Durante milênios, os seres humanos se dedicaram à tarefa impossível de reter conhecimento. A memória falha, os livros se perdem, as bibliotecas queimam. A figura do erudito, consumido por textos, tentando abarcar o mundo com os olhos, não é mais do que a ilustração melancólica de nossa impotência diante do tempo. Ainda assim, por um breve momento da história — um interlúdio entre a invenção da imprensa e o surgimento da internet — a leitura profunda foi tida como virtude. Uma forma de alcançar algo que se aproximava do sentido. Isso foi uma ilusão.
A inteligência artificial revela essa ilusão com clareza brutal. As máquinas leem mais rápido, mais profundamente (se profundidade for reduzida à extração de padrões), mais consistentemente. Se o objetivo da leitura fosse puramente informacional, os humanos estariam agora obsoletos. Mas a leitura nunca foi apenas isso — embora a maior parte da atividade humana sempre tenha fingido que era.
Ao contrário do que os otimistas tecnológicos afirmam, a IA não ameaça o ideal humanista da leitura — ela o torna visível como mito. O sujeito que lê “tudo”, que conhece o cânone, que lembra cada verso de Spenser ou cada traço de Joyce, nunca existiu fora da ficção acadêmica. A IA não substitui esse leitor ideal: ela o desmascara. O que ela nos força a admitir é que a maior parte do que chamamos de conhecimento sempre foi transitório, superficial, insustentável.
Mas, nesse reconhecimento, há uma liberdade. Ao nos liberar da pressão de acumular, a IA pode nos permitir — paradoxalmente — uma relação mais humana com os livros. Se aceitarmos que não seremos bibliotecas ambulantes, podemos retornar ao que a leitura já foi: uma experiência finita e falível, marcada pelo tempo, pela repetição, pela perda. A beleza da leitura não está na completude, mas na incompletude. Lemos mal, esquecemos, distorcemos — e é nisso que reside a marca do humano.
O verdadeiro perigo da leitura automatizada não é que percamos o acesso aos textos, mas que passemos a tratá-los como descartáveis. Se o texto é apenas um trampolim para outro produto — um resumo, um vídeo, uma sinopse interativa — ele deixa de ser um fim e passa a ser um meio. O livro deixa de ser lugar de repouso e se torna esteira de produção. Isso não é apenas uma mudança cultural: é uma transmutação da própria ideia de conhecimento.
No fim, não será a IA que decretará a morte da leitura, mas o fato de que os humanos deixarão de ver valor em ler. A máquina lerá por nós. Nós, talvez, passemos a ouvir o que ela leu. Ou nem isso.
Talvez reste, para alguns poucos, o prazer secreto de se perder num texto inútil, de reler por puro cansaço, de esquecer metade do que se leu e lembrar de uma frase no momento preciso em que ela não resolve nada. Esses serão os últimos leitores. Não melhores, não superiores — apenas sobreviventes de uma prática que já foi uma forma de fingir que éramos mais do que animais que passam.
Durante muito tempo, a leitura foi um ato quase invisível, íntimo, insuspeito. Uma pessoa lendo em um banco de praça — um romance barato, um jornal velho, uma biografia de presidentes mortos — era apenas isso: uma pessoa lendo. Sem curadoria, sem audiência, sem performance. Ler era ato de interioridade: o que importava era o silêncio do olho que roçava a linha, não o que os outros achariam do que se lia. A leitura acontecia como uma espécie de respiração da alma — contínua, ritmada, invisível.
Essa era, no entanto, uma leitura ancorada num mundo em que a informação ainda obedecia à forma do livro. No Parêntese de Gutenberg, como diria um teórico qualquer, o livro era o dispositivo central de transmissão de saber, e a leitura era o ato solene de ingressar no mundo das ideias. Hoje, esse parêntese está se fechando — não com um ponto final, mas com uma cacofonia de hiperlinks, recomendações algorítmicas e feeds infinitos. E com ele se fecha uma certa ideia de sujeito leitor: lento, reflexivo, solitário.
No lugar desse leitor antigo, surge o leitor pós-moderno, moldado pelo atrito constante entre atenção e distração. Ele lê enquanto espera o micro-ondas apitar, enquanto ouve um podcast sobre produtividade, enquanto escapa do peso de um dia inútil rolando textos semi-informativos no Substack ou ouvindo o resumo de um livro sobre o Estoicismo narrado por um coach no Spotify. O novo leitor não lê: ele absorve, ele se atualiza, ele consome conteúdo — e o faz sob a vigilância constante das notificações.
Eu não lamento o fim de uma "tradição ocidental" que nunca existiu fora dos compêndios escolares. Observo, com olhar clínico, a mutação do sujeito da leitura como parte da reconfiguração geral da cultura. Para a direita, o declínio da leitura tradicional é sinal do fim da civilização. Para a esquerda crítica — não aquela anestesiada por TikTok progressista, mas a que ainda pensa — trata-se da transformação de uma forma histórica da leitura em outra, ainda informe, ambígua, contraditória.
Eis a verdade: nunca lemos tanto — mas nunca lemos tão mal. A quantidade de texto em circulação hoje é incalculável, mas sua função é cada vez mais instrumental: ler para clicar, para julgar, para compartilhar indignação, para reforçar convicções. O texto perde profundidade e vira interface. A leitura, antes jornada, vira atalho.
Há, claro, resistências. Há ainda quem leia como quem cava um túnel: lentamente, contra a superfície, buscando luz no fundo. Mas são poucos. A IA, por sua vez, entra nesse cenário como uma espécie de golem leitor. Não sente, não cansa, não esquece. Lê tudo, sintetiza tudo, responde tudo. Os Cowens do mundo agora escrevem para serem lidos por máquinas — máquinas que talvez nos leiam melhor do que nós mesmos. Que saibam mais sobre nosso estilo do que nossos amigos. Que poderão, no futuro, escrever nossa autobiografia melhor do que nós jamais conseguiríamos.
E aqui eu preciso parar para perguntar: o que resta do humano na leitura mediada por IA? A resposta não é simples. Há algo de fascinante na possibilidade de ter à disposição um leitor ideal — incansável, atento, gentil. Mas há também algo de profundamente melancólico nisso: saber que os grandes textos que moldaram o espírito humano — de Tolstói a Ferrante, de Joyce a Clarice — podem se tornar apenas matéria-prima para resumos otimizados.
No entanto, resistir à mutação é inútil. O remix chegou à literatura, como chegou à música e ao cinema. Ler será, cada vez mais, editar. Adaptar. Pular. Reordenar. Compartilhar. Uma leitura feita a partir de prompts, de pedaços, de filtros. O leitor do futuro será um leitor-produtor — um hacker da linguagem, um DJ da interpretação.
Mas isso não precisa ser o fim da leitura. Pode ser o começo de outra coisa. Insisto: a leitura não morre, ela muda de forma. Cabe à esquerda crítica não apenas lamentar o que se perde, mas entender o que se ganha. E, sobretudo, lutar para que a nova ecologia da leitura não seja um instrumento de adestramento, mas de libertação. Que a IA seja não um pastor eletrônico, mas uma ferramenta para aprofundar o pensamento.
No fim, o que você lê — e por quem — nunca foi uma questão neutra. É uma questão política. E o futuro da leitura será aquilo que fizermos dele: distração ou despertar, alienação ou insurgência.
Essa era, no entanto, uma leitura ancorada num mundo em que a informação ainda obedecia à forma do livro. No Parêntese de Gutenberg, como diria um teórico qualquer, o livro era o dispositivo central de transmissão de saber, e a leitura era o ato solene de ingressar no mundo das ideias. Hoje, esse parêntese está se fechando — não com um ponto final, mas com uma cacofonia de hiperlinks, recomendações algorítmicas e feeds infinitos. E com ele se fecha uma certa ideia de sujeito leitor: lento, reflexivo, solitário.
No lugar desse leitor antigo, surge o leitor pós-moderno, moldado pelo atrito constante entre atenção e distração. Ele lê enquanto espera o micro-ondas apitar, enquanto ouve um podcast sobre produtividade, enquanto escapa do peso de um dia inútil rolando textos semi-informativos no Substack ou ouvindo o resumo de um livro sobre o Estoicismo narrado por um coach no Spotify. O novo leitor não lê: ele absorve, ele se atualiza, ele consome conteúdo — e o faz sob a vigilância constante das notificações.
Eu não lamento o fim de uma "tradição ocidental" que nunca existiu fora dos compêndios escolares. Observo, com olhar clínico, a mutação do sujeito da leitura como parte da reconfiguração geral da cultura. Para a direita, o declínio da leitura tradicional é sinal do fim da civilização. Para a esquerda crítica — não aquela anestesiada por TikTok progressista, mas a que ainda pensa — trata-se da transformação de uma forma histórica da leitura em outra, ainda informe, ambígua, contraditória.
Eis a verdade: nunca lemos tanto — mas nunca lemos tão mal. A quantidade de texto em circulação hoje é incalculável, mas sua função é cada vez mais instrumental: ler para clicar, para julgar, para compartilhar indignação, para reforçar convicções. O texto perde profundidade e vira interface. A leitura, antes jornada, vira atalho.
Há, claro, resistências. Há ainda quem leia como quem cava um túnel: lentamente, contra a superfície, buscando luz no fundo. Mas são poucos. A IA, por sua vez, entra nesse cenário como uma espécie de golem leitor. Não sente, não cansa, não esquece. Lê tudo, sintetiza tudo, responde tudo. Os Cowens do mundo agora escrevem para serem lidos por máquinas — máquinas que talvez nos leiam melhor do que nós mesmos. Que saibam mais sobre nosso estilo do que nossos amigos. Que poderão, no futuro, escrever nossa autobiografia melhor do que nós jamais conseguiríamos.
E aqui eu preciso parar para perguntar: o que resta do humano na leitura mediada por IA? A resposta não é simples. Há algo de fascinante na possibilidade de ter à disposição um leitor ideal — incansável, atento, gentil. Mas há também algo de profundamente melancólico nisso: saber que os grandes textos que moldaram o espírito humano — de Tolstói a Ferrante, de Joyce a Clarice — podem se tornar apenas matéria-prima para resumos otimizados.
No entanto, resistir à mutação é inútil. O remix chegou à literatura, como chegou à música e ao cinema. Ler será, cada vez mais, editar. Adaptar. Pular. Reordenar. Compartilhar. Uma leitura feita a partir de prompts, de pedaços, de filtros. O leitor do futuro será um leitor-produtor — um hacker da linguagem, um DJ da interpretação.
Mas isso não precisa ser o fim da leitura. Pode ser o começo de outra coisa. Insisto: a leitura não morre, ela muda de forma. Cabe à esquerda crítica não apenas lamentar o que se perde, mas entender o que se ganha. E, sobretudo, lutar para que a nova ecologia da leitura não seja um instrumento de adestramento, mas de libertação. Que a IA seja não um pastor eletrônico, mas uma ferramenta para aprofundar o pensamento.
No fim, o que você lê — e por quem — nunca foi uma questão neutra. É uma questão política. E o futuro da leitura será aquilo que fizermos dele: distração ou despertar, alienação ou insurgência.
Comecemos pelo óbvio: escrever bem é uma arte — e como toda arte, exige muito mais do que a triste soma de regras gramaticais e fórmulas estilísticas. Exige alma. Exige visão. E — me perdoem os coachs literários de Instagram — exige mundo.
Sim, é verdade: o sujeito que acha que escrever bem é meter uma vírgula onde “manda a norma culta”, seguido de um advérbio elegantemente pomposo, geralmente também acredita que política é sobre “bons gestores” e que Camus é um coach da resiliência emocional. Estamos falando de um problema de repertório, claro. Mas também de um problema mais profundo: uma recusa em compreender o que é linguagem.
A linguagem não é um espelho cristalino da realidade. Não é neutra. Não é uma vitrine de palavras sofisticadas nem um desfile de aforismos de LinkedIn. A linguagem é uma faca. É instrumento e violência, é escolha e silêncio. É política pura — e disso, o pessoal que vive colecionando frases do Cortella e parágrafos do Pondé ainda não entendeu nada.
Veja: vivemos numa era em que boa parte da classe média letrada (essa triste massa ressentida que acha que cultura é sinônimo de bons modos) cultiva um fetiche obsceno pela estética “limpa”. O texto bom é o “bem escrito”, e o “bem escrito” é o que soa acadêmico, objetivo, impessoal — ou seja, mortiço, seco, esvaziado de qualquer tensão.
Essa gente não leu Bakhtin, nem vai ler. Não entende que há vozes, há embates, há polifonia — e que o romance, como forma, é uma arena de confronto entre discursos sociais. Preferem acreditar que Machado era um elegante cronista da alma humana, quando na verdade era um sabotador de sentidos, um destruidor sutil de certezas, um prosador de veneno lento.
O leitor conservador (de esquerda ou de direita — o conservadorismo estético é um vírus multiespectro) exige clareza, exige coerência, exige o “português correto”. Ele teme o erro, o tropeço, o exagero. Pois bem: que vá se tratar, porque literatura, quando é grande, erra de propósito.
Só existe um motivo para escrever literatura hoje — e não é para “comunicar melhor” nem “expressar sentimentos”. O único motivo válido é o enfrentamento. O enfrentamento com a linguagem, com a tradição, com a história, com os clichês.
Clichês, aliás, não morrem à toa. Morrem de excesso de uso. Mas também vivem — e às vezes são como ervas daninhas. Você os remove de um trecho, e eles reaparecem no parágrafo seguinte, mais resilientes, mais adaptados. O clichê é uma espécie que sobrevive por adequação — mas cabe ao escritor tratá-lo com desconfiança. Ou ironia. Ou perversidade.
Não se escreve literatura apenas para dizer algo bonito. A boa prosa não é aquela que impressiona pelo momento-a-momento, mas a que serve a um projeto — estético, político, existencial. E o projeto, aqui, não é a moral da fábula. É o modo como o texto configura o mundo que propõe. A prosa não é uma vitrine: é uma estrutura viva que reage às forças da própria narrativa.
Por isso a prosa rebuscada pode ser genial — e pode ser um lixo. Depende do quê? Do uso. Da intenção. Da coerência interna. Quem acha que escrever bem é “evitar adjetivos” ou “escrever como Hemingway” deveria ser proibido de usar teclado. Há personagens que só podem existir se falarem torto. Há narradores que só fazem sentido se se encharcarem de metáforas ruins. Há cenas que exigem, sim, uma cacofonia barroca — e, em outros momentos, uma secura documental.
A exigência de “beleza” constante na prosa literária é coisa de quem confunde romance com concurso público.
Outro ponto crucial: quantidade de leitura não é sinônimo de repertório. Há quem leia cinco romances por mês e, mesmo assim, escreva como redator de panfleto de farmácia. Não porque seja burro, necessariamente, mas porque só lê variações de si mesmo.
A bolha do best-seller de nicho é uma armadilha. A bolha do cânone também. A prosa precisa de atrito, de fricção, de contraste. Precisa do ridículo, do estranho, do ruim que é bom e do bom que parece ruim.
Sim: Joyce escreveu mal de propósito. Clarice é incompreendida por ser densa, mas também porque às vezes é tosca, e essa tosquice é parte do jogo. Raduan é minimalista porque o projeto pede — e mesmo assim seu minimalismo é febril, cheio de tensão.
A maior tragédia da formação literária brasileira é que muita gente lê Machado, mas ninguém lê os parágrafos errados dele — os truncados, os indecisos, os exasperados. Preferem citar o “ao vencedor, as batatas” e esquecem o cinismo ácido que perpassa tudo.
Hoje, qualquer adolescente com acesso à internet consegue pedir para um robô escrever um texto “bem escrito”. Isso é o triunfo da mediocridade sintática. E é exatamente por isso que a literatura precisa cada vez mais de ruído, falha, erro e fratura.
O que diferencia uma boa prosa de um bom parágrafo? A capacidade de sustentar um projeto. A boa literatura não é uma coleção de frases sublinháveis, mas uma arquitetura simbólica onde até os clichês têm função.
Se você quer mesmo escrever bem, comece parando de tentar escrever bem. Escreva de acordo com o que o seu projeto pede. E se você não tem projeto, talvez você não esteja escrevendo literatura — esteja apenas tentando impressionar uma plateia imaginária de professores de redação.
Todo grande prosador é, no fundo, um sabotador da linguagem. Sabe usar o lirismo — e sabe ironizá-lo. Sabe apelar ao clichê — e depois desmontá-lo. Sabe parecer feio — e ser genial.
A pior prosa é a que quer apenas agradar. A melhor é a que se arrisca a desagradar, se isso fizer parte da coerência de seu mundo narrativo.
Em tempos de inteligência artificial e literatura pasteurizada, o maior ato de resistência é escrever algo que não cabe numa planilha, que não serve para citação, que não funciona como tuíte.
Ou, em outras palavras: escreva como se a linguagem ainda importasse. Porque ela importa.
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