Num tempo em que as elites culturais se fingem de pobres e os pobres, por sua vez, são desfigurados em laboratório estético por gente que jamais sujou as mãos com uma hora de trabalho braçal, parece quase natural — patológico, mas natural — que surjam figuras como Tati Bernardi e Vincenzo Latronico. Ambos — e aqui não há mistério nem teoria conspiratória — escrevem a partir da experiência íntima com o conforto material. Fazem literatura de classe a partir da classe. Da sua. E fingem que a expõem.

A Tati, de São Paulo; o Vincenzo, de Roma ou Berlim, tanto faz — cosmopolitismo de catálogo. Ela se instala como a “boba da corte”, apelido que já nasce pretensioso: sugere crítica travestida de piada, quando é só piada travestida de crítica. Ele escreve As perfeições, uma imitação tardia e auto-higiênica do Georges Perec — como quem coleciona embalagens de perfume e chama isso de arqueologia dos sentidos. Ambos, com seriedade ensaiada e bom humor programado, se colocam diante do espelho da autoficção como quem se confessa num talk show: muito close, nenhuma transcendência.

A “boba da corte” não pretende ser apenas engraçadinha: quer ser vista como a Annie Ernaux da Avenida Faria Lima. A diferença é que Ernaux escreveu depois de viver o esmagamento simbólico da classe operária — e escreveu contra o silêncio. Já Tati escreve contra o tédio. E o tédio, nesse caso, é o produto interno bruto de uma vida confortável. O umbigo, como sabemos, não tem nervo, mas causa coceira. E a autoficção contemporânea é isso: gente se coçando diante do espelho.

Latronico, por sua vez, não faz pastiche por ignorância, mas por método. As perfeições não é homenagem — é operação estética de um sistema de produção cultural em que a repetição virou valor. Não escreve contra a classe, mas a partir dela e por ela. Os móveis reciclados, os objetos vintage, os cafés orgânicos e o tédio dos “nômades digitais” são tratados como se fossem denúncia, quando são apenas o retrato fidelíssimo do próprio habitat natural do autor. O desconforto é retórico; a crítica, decoração.

O problema — e aqui está o nó — não é o conforto. Não é o privilégio. É a mentira estética e moral de fingir que se está contra aquilo que se vive com gosto. Tati Bernardi declara desconforto com os bairros ricos de São Paulo, mas não os abandona — como alguém que detesta o espelho e vive diante dele. E Vincenzo transforma o desespero da gentrificação em cenografia. Ambos são sintoma do esvaziamento da literatura como forma de confronto com a realidade — e da ascensão da ficção como zona de conforto estilizada.

“Autossociobiografia” e “autoficção”: dois termos que a intelligentsia cultural adotou com um entusiasmo quase pornográfico. O primeiro exige esforço: trata-se de refletir sobre si no mundo. O segundo é desculpa: olhar para si como se o mundo não existisse. Tati se acomoda na segunda categoria. Mas seu mérito, se há algum, é saber disso — e converter a consciência da própria futilidade em produto. O que não quer dizer que seja inocente.

Ela — a autora ou a personagem? A pergunta é velha e inútil — fala de si como quem se justifica preventivamente. Cria uma outsider de boutique, uma excluída do clube do qual é sócia fundadora. E acredita nisso, como se a maquiagem fosse identidade. Tati se diz fora do sistema, mas está em todas as mesas de jantar onde o sistema se perpetua com vinho natural e ironia moderada. O desconforto não é político, é de almofada.

Latronico, por sua vez, acredita que emular Perec o coloca numa posição de observador clínico da elite cultural berlinense. Mas falta-lhe a angústia histórica que fazia do experimentalismo de Perec uma tentativa desesperada de dar forma à desintegração da experiência. Em As perfeições, a forma não busca o real — apenas o estiliza. Não se narra a decadência, mas o mal-estar como curadoria de Instagram. A crítica é brunch com palavras difíceis.

E aqui chegamos à questão central: esses livros não são ruins porque são mal escritos. São ruins porque não acreditam em nada além de si mesmos. São literatura autocentrada, autofágica, autoconsumível. São iscas para um público que quer se ver criticado com leveza, com graça, com afeto — como quem vai ao psicanalista para ouvir que está tudo bem. A crítica virou gesto de adesão. O sarcasmo, selo de autenticidade.

Não há problema em escrever sobre os ricos, os bem-nascidos, os bem-resolvidos. Tolstói o fez. Proust o fez. Mas fizeram-no com tragédia, com mistério, com desespero. Hoje, a elite cultural escreve sobre si mesma como quem dá entrevista: com frase de efeito, com hashtags e nenhuma consequência. O “prontofalei” virou estilo. A literatura, um grande story de 15 segundos com pose de Sartre.

Se A boba da corte é uma colagem de colunas autocentradas, As perfeições é um catálogo de móveis existenciais. Nenhum dos dois ousa encarar o que realmente perturba: a própria mentira que cultivam. E isso, meus caros, não é só estética — é moral.

O que Tati e Vincenzo nos oferecem, enfim, é um espelho. Mas não daqueles que revelam. Daqueles que decoram. E o leitor, seduzido pelo reflexo, nem percebe que saiu da livraria do mesmo jeito que entrou: com a alma intacta e o espírito em suspenso.


 

Pesquisadores da Johns Hopkins e da NYU deram psilocibina a clérigos cristãos e judeus, a um líder islâmico e a um roshi zen budista.Ilustração fotográfica de David Samuel Stern

Dezenas de líderes religiosos experimentaram cogumelos mágicos em um estudo universitário. Muitos agora são evangelistas de psicodélicos.


Em outubro de 2015, Hunt Priest, então ministro da Igreja Episcopal Emmanuel em Mercer Island, no estado de Washington, estava folheando The Christian Century, uma revista protestante progressista, quando um anúncio chamou sua atenção: "Procura-se clero para participar de um estudo de pesquisa sobre psilocibina e experiência sagrada". A psilocibina é um composto alucinógeno encontrado em certos cogumelos; pesquisadores da Universidade Johns Hopkins e da NYU queriam administrá-la a líderes religiosos que tivessem "interesse em explorar e desenvolver ainda mais suas vidas espirituais".

Priest, um homem franzino, barbudo e surpreendentemente aberto, de uma pequena cidade do Kentucky, cresceu em uma família protestante e sentiu uma vocação religiosa na adolescência. Ele foi trabalhar para a Delta Air Lines, mas me contou que, aos 30 anos, "comecei a sentir que faltava algo na minha vida espiritual". Começou a ler textos budistas, incluindo "Buda Vivo, Cristo Vivo", de Thích Nhất Hạnh, o que o levou de volta ao cristianismo. Aos 37 anos, ingressou no seminário.

Quando Priest viu o anúncio, estava esgotado. Ele ministrava em uma comunidade residencial abastada perto de Seattle e sentia que seu trabalho havia se tornado "mais voltado para administração e manutenção institucional. Isso arrancaria a espiritualidade da maioria das pessoas". Ele nunca havia experimentado psicodélicos — um requisito para participar do estudo — e ouvira algumas histórias de terror. Mesmo assim, sempre fora curioso. O estudo era realizado em universidades respeitadas e legalizadas. " Por que diabos eu não faria isso ?", pensou. Começou o árduo processo de qualificação para participar: uma série de telefonemas, longos questionários, entrevistas presenciais em Baltimore e um exame médico.

A equipe por trás do anúncio incluía Roland Griffiths e William Richards, acadêmicos da Hopkins que contribuíram para o chamado renascimento da pesquisa psicodélica, que começou por volta da virada do milênio. Griffiths, um psicofarmacologista, interessou-se por psicodélicos pela primeira vez depois de ter uma experiência mística enquanto meditava. Naquele dia, ele encontrou "algo muito, muito além de uma visão de mundo material sobre o qual eu realmente não posso falar com meus colegas, porque envolve metáforas ou suposições com as quais me sinto realmente desconfortável como cientista", ele me disse em 2014. Sua pesquisa mais influente se concentrou nas aplicações terapêuticas de psicodélicos. Em um artigo de 2016 publicado no Journal of Psychopharmacology, Griffiths, Richards e vários outros cientistas relataram que a psilocibina poderia ajudar a tratar o medo e a ansiedade em pacientes com câncer; o estudo foi citado mais de mil vezes. Numerosos ensaios clínicos com psilocibina, MDMA e outros psicodélicos se seguiram.

Conheci a pequena comunidade de pesquisadores psicodélicos pela primeira vez enquanto escrevia sobre o estudo do câncer para esta revista. Conheci muitos outros quando escrevi um livro sobre o trabalho deles e, desde então, tenho defendido que os psicodélicos têm o potencial de tratar doenças mentais e nos ensinar sobre a mente. Em 2020, ajudei a estabelecer um centro de pesquisa psicodélica na UC Berkeley e, depois de saber que Griffiths estava morrendo de câncer, fiz uma doação para uma nova cátedra que ele considerava parte de seu legado.

Ao longo do caminho, descobri que, em 2012, Richards e Anthony Bossis, psicólogo clínico da NYU, começaram a discutir psicodélicos e religião. "Para mim, essas experiências podem ser espirituais", disse-me Bossis, quando nos encontramos em seu consultório em Manhattan. Os pesquisadores se propuseram a responder a várias perguntas. Será que as experiências psicodélicas aumentariam o bem-estar e a vocação de líderes religiosos, em comparação com os participantes de um grupo de controle que ainda aguardavam uma sessão? A experiência renovaria a fé deles ou os faria questioná-la?
O grupo obteve apoio financeiro de vários financiadores importantes no mundo psicodélico, incluindo T. Cody Swift, filantropo com mestrado em psicologia existencial-fenomenológica, e Carey e Claudia Turnbull, que financiaram estudos e investiram em empresas que buscam tratamentos médicos psicodélicos. Swift e Claudia Turnbull participaram da pesquisa — Swift entrevistando os participantes e escrevendo um relato narrativo de suas sessões, e Turnbull facilitando sessões na Johns Hopkins.

Priest foi finalmente aceito no estudo, juntamente com cerca de trinta outros líderes religiosos, incluindo um padre católico, um estudioso bíblico batista, vários rabinos, um líder islâmico e um roshi zen-budista. (A piada sobre entrar em um bar quase se escreve sozinha.) Priest era um dos quatro episcopais. A amostra final, assim como a demografia da equipe do estudo, era composta por brancos (noventa e sete por cento), cristãos (setenta e seis por cento) e homens (sessenta e nove por cento). O recrutamento, por meio de anúncios e contato direto com comunidades religiosas, mostrou-se difícil, especialmente para religiões como o islamismo, o budismo e o hinduísmo; proibições religiosas contra substâncias psicoativas podem ter desempenhado um papel. Encontrar rabinos dispostos, no entanto, foi fácil — o desafio foi encontrar aqueles que fossem "psicodelicamente ingênuos".

Cientificamente falando, o estudo apresentou sérias limitações, muitas delas reconhecidas por seus autores. A amostra era pequena, autoselecionada e não representativa, várias religiões não foram incluídas e não houve controle com placebo. Os "efeitos de expectativa" também podem ter um impacto profundo na pesquisa com psicodélicos, e pode-se argumentar que os participantes foram preparados para ter um certo tipo de experiência. Em questionários preenchidos meses após as sessões, por exemplo, os participantes foram questionados sobre sua "experiência sagrada". Andrew Gelman, estatístico da Universidade Columbia e especialista em design de estudos, leu um rascunho do artigo resultante do estudo e me disse por e-mail: "Acho que a piada é que, se você inscrever pessoas em um estudo e disser a elas que terão uma experiência sagrada, algumas pessoas terão uma experiência sagrada". Zac Kamenetz, um rabino de Berkeley que participou do estudo, também me disse que a linguagem usada por alguns pesquisadores, bem como a música tocada durante as sessões (a lista de reprodução incluía Enya, uma obra coral de Natal, "Om Namah Shivaya" e muito Bach), revelavam uma inclinação nitidamente cristã.

Como uma espécie peculiar de etnografia, porém, o estudo conta uma história provocativa. Não é comum que um grupo de clérigos relate uma viagem com altas doses de psilocibina. Será que pessoas imersas em teologia e prática religiosa ofereceriam relatos singulares, informados ou matizados de experiências místicas? Encontrariam imagens ou simbolismos de suas crenças — ou será que suas experiências apontariam para algo mais universal, um núcleo comum compartilhado por todas as religiões? Entre os participantes que tiveram duas sessões, os pesquisadores descobriram que um número impressionante — setenta e nove por cento — relatou que a experiência enriqueceu suas orações, sua eficácia na vocação e seu senso do sagrado na vida cotidiana. Noventa e seis por cento classificaram seus primeiros encontros com psilocibina como estando entre as cinco experiências espiritualmente mais significativas de suas vidas.

Talvez a questão mais intrigante não tenha sido mencionada no artigo científico, embora tenha vindo à mente de muitos participantes do estudo. Numa época em que a religião organizada tem lutado contra o declínio do número de membros, especialmente entre os jovens, experiências psicodélicas cuidadosamente preparadas e guiadas – seja para clérigos ou membros de suas congregações – poderiam ter o potencial de reacender o interesse pela religião? Esta é uma ideia controversa, por isso fiquei surpreso ao ouvir Priest e vários outros participantes dizerem que acreditavam que sim. A maioria dos pesquisadores foi mais cautelosa, mas Richards – um psicólogo clínico contagiantemente alegre, agora na casa dos oitenta – estava feliz em considerar a possibilidade. Antes de concluir o doutorado em aconselhamento, Richards obteve mestrado em teologia e teologia. Os psicodélicos "podem dar nova vida ao dogma, ajudando as pessoas a entender de onde ele veio", disse-me ele em sua casa, em West Baltimore. "Uma maneira de encarar os psicodélicos é como uma revelação acontecendo no presente." Então, talvez consciente do potencial de reação religiosa ou científica, ele acrescentou: “Não vamos assustar os cavalos!”

As convicções de Richards e suas aspirações por psicodélicos suscitam questionamentos sobre a objetividade dessa pesquisa. Rick Strassman, psiquiatra da Universidade do Novo México que conduziu pesquisas com psicodélicos no início dos anos 1990, sugeriu-me que pelo menos alguns dos pesquisadores participaram do estudo com "a missão" de demonstrar o valor espiritual e psicológico da psilocibina. 

Ele apontou o risco Quando Priest entrou na sala de sessões psicodélicas da Johns Hopkins, sentiu-se animado e ansioso ao mesmo tempo. O ambiente do espaço era mais de sala de estar do que de clínica; havia um sofá aconchegante para os participantes se deitarem, obras de arte com aparência vagamente espiritual nas paredes e uma pequena estátua de Buda em uma estante. Richards, que tem um sorriso largo e cheio de dentes, era um dos dois facilitadores, ou "guias", presentes para supervisionar a experiência. Priest me contou que, antes de tomar a cápsula azul que Richards lhe ofereceu em um incensário em forma de cálice, admitiu estar nervoso. Ele não conseguia se lembrar exatamente do que Richards disse em resposta, mas se lembrava da mensagem que recebeu: Você deveria estar nervoso. Você está prestes a encontrar Deus.

A polinização cruzada entre religião e psicodélicos tem uma longa história. Na comunidade psicodélica, é praticamente um artigo de fé que plantas alucinógenas e fungos desempenharam um papel nas visões e experiências místicas que ajudaram a dar origem a algumas religiões. Os Mistérios de Elêusis, o rito anual em homenagem a Deméter, realizado na Grécia por quase dois mil anos, culminavam com o consumo de uma poção chamada kykeon , que se dizia dar aos participantes visões da vida após a morte e permitir que comungassem com seus ancestrais. Albert Hofmann, o químico suíço que descobriu o LSD, em 1938, suspeitava que a receita incluísse ergot, o fungo no qual sua descoberta se baseava. (Deméter é a deusa da agricultura e da fertilidade; o ergot cresce em grãos.)

No Novo Mundo, o peiote, os cogumelos com psilocibina e as sementes de ololiuqui — um tipo de ipomeia — têm usos sacramentais há milênios. No início da década de 2000, cientistas dataram dois espécimes de peiote, encontrados em uma caverna perto do Rio Grande, com mais de cinco mil anos. Após a chegada dos colonizadores espanhóis, a Igreja Católica proibiu o uso de cogumelos em rituais astecas; a palavra náhuatl para eles — teonanácatl — pode ser traduzida aproximadamente como "carne dos deuses", o que deve ter soado como um desafio direto ao sacramento cristão. A prática, no entanto, continuou na clandestinidade, e costumes semelhantes persistem até hoje.

Os EUA proibiram o peiote no final do século XIX, mas a Igreja Nativa Americana, que funde crenças indígenas e cristãs, travou uma longa batalha jurídica e legislativa pelo direito de usar o cacto peiote em suas cerimônias. A iniciativa teve sucesso em 1993, quando o Congresso aprovou a Lei de Restauração da Liberdade Religiosa. Desde então, duas igrejas originárias do Brasil garantiram o direito de usar ayahuasca durante cerimônias nos EUA. Igrejas psicodélicas, algumas sinceras em suas convicções espirituais e outras nem tanto, estão abrindo em ritmo acelerado. Advogados da recém-formada Ordem dos Advogados Psicodélicos afirmam que essa tendência foi incentivada pela abordagem expansiva da Suprema Corte em relação à liberdade religiosa.

Em 1962, Walter Pahnke, um estudante de pós-graduação de Harvard sob a tutela do psicólogo e defensor dos psicodélicos Timothy Leary, administrou um comprimido contendo psilocibina ou um placebo a vinte voluntários, a maioria estudantes protestantes de teologia. Os voluntários então se sentaram no porão da Capela Marsh, na Universidade de Boston, e ouviram um sermão da Sexta-Feira Santa transmitido do púlpito acima deles. Dos dez voluntários que receberam a droga, oito relataram experiências místicas poderosas. No grupo placebo, um relatou. A definição de misticismo dos pesquisadores espelhava a de "As Variedades da Experiência Religiosa", uma coletânea de palestras de 1902 do psicólogo e filósofo William James, que experimentou com óxido nitroso. James associou experiências místicas a uma sensação de bem-estar, atemporalidade, inefabilidade e unidade com a "realidade suprema".
A pesquisa publicada por Pahnke omitiu que, como os participantes relembraram anos depois, uma pessoa fugiu da capela e seguiu em direção à Avenida Commonwealth, possivelmente para espalhar a palavra de Jesus aos transeuntes; ele teve que ser contido e receber uma injeção do antipsicótico Thorazine. Outro participante, Huston Smith, era um importante estudioso da religião. "Até o Experimento da Sexta-Feira Santa", disse ele a um entrevistador em 1996, "eu não tivera nenhum encontro pessoal direto com Ele/Ela/Aquilo".

Griffiths, Richards e seus colegas foram inspirados, em parte, pelo Experimento da Sexta-Feira Santa. Em um estudo publicado em 2006, eles administraram psilocibina a várias dezenas de voluntários, que então preencheram questionários que incluíam um "Questionário de Experiência Mística". O questionário baseou-se no experimento de Pahnke e nos escritos de James. Os pesquisadores finalmente concluíram que a psilocibina poderia, de forma confiável, ocasionar experiências místicas.

A jornada psicodélica de Priest na Johns Hopkins seguiu normas que se tornaram comuns na pesquisa psicodélica moderna: após várias sessões preparatórias com dois guias, o participante engole a cápsula, deita-se em um divã e coloca um par de fones de ouvido e uma máscara para os olhos, para incentivar o foco interno. Os facilitadores dizem pouco, mas compartilham palavras de conselho ou conforto se a experiência se tornar assustadora; "dentro e através" é um refrão comum. Embora o toque seja considerado uma violação de limites na psicoterapia convencional, os terapeutas psicodélicos às vezes oferecem uma mão para segurar ou um tapinha no ombro. 

O consentimento para o toque é discutido previamente e reiterado no momento; participantes e facilitadores também ensaiam o toque previamente. Após as sessões na Hopkins e na NYU, os participantes preencheram vários questionários e escreveram uma narrativa de sua experiência. No dia seguinte, eles retornaram para uma "sessão de integração", para ajudar a dar sentido ao que pode ser uma experiência confusa. Eles também puderam participar de uma sessão de acompanhamento com psilocibina. Dos vinte e nove participantes que completaram a primeira sessão, cinco não retornaram para a segunda.

Como praticamente todos os líderes religiosos com quem conversei, Priest relatou um encontro com o divino. Sua sessão começou com visuais deslumbrantes — padrões fractais que o lembravam de mosaicos em uma mesquita. Então, uma corrente elétrica em espiral pareceu se instalar em sua coxa esquerda. Ele a sentiu subir poderosamente por seu corpo e se alojar em sua garganta. "Achei que meu pomo-de-adão estava prestes a explodir", disse-me. Ambos os guias perceberam sua angústia e um deles estendeu a mão para confortá-lo. (Posteriormente, Priest falou publicamente sobre um guia tocando sua cabeça, o que gerou críticas online, mas uma análise universitária das gravações em vídeo contradisse o relato de Priest.)

Para Priest, o toque parecia o gesto ritual cristão da imposição de mãos. Ele se lembra de um guia segurando seus pés enquanto a sensação elétrica se intensificava. "Aquilo soprou do topo da minha cabeça, e então comecei a emitir aqueles sons que pareciam religiosos, espirituais e sagrados", lembrou Priest. "Percebi que estava falando em línguas, algo que eu nunca tinha feito antes. Falar em línguas não é algo típico dos episcopais."

Olhando para trás, Priest descreveu a experiência em termos distintamente religiosos, mas não estritamente cristãos. "Eu diria agora que meu chacra laríngeo estava bloqueado há muito tempo", disse ele. "Eu simplesmente me sentia bloqueado no que estava pregando." Priest descreveu a qualidade de seu encontro com o divino como "erótica". O mesmo fizeram alguns outros participantes; um deles falou sobre ter tido "um orgasmo espiritual". Priest também falou de uma inversão de papéis de gênero. "O divino parecia mais masculino, e eu sentia que o estava vivenciando como uma mulher o vivenciaria", disse-me ele. "Parecia tão estranho para mim como homem que eu sentia que devia ser assim que uma mulher vivencia a sexualidade." Após a sessão, um amigo veio buscar Priest e ficou surpreso ao ver seu rosto corado. "Eu parecia completamente diferente", disse Priest. "Eu era como uma nova criação."

Nem todos os participantes do estudo saíram da sessão com tanta clareza teológica. Um padre católico do México me contou que ouviu Jesus diretamente, mas um pastor protestante disse, dando de ombros, que "não havia nada de particularmente cristão nisso". A roshi budista me disse que sua experiência "não foi transformadora", mas a levou "a um reino completamente não conceitual", que ela não conseguia encontrar palavras para descrever. Rita Powell, agora capelã episcopal em Harvard, recusou uma segunda sessão porque a primeira, na NYU, a colocou cara a cara com "o abismo". Falando sobre sua experiência em um painel em Harvard sobre psicodélicos e religião, Powell disse que seus facilitadores não a prepararam para algo tão sombrio. Um deles "continuava tentando me garantir que as experiências com psilocibina eram boas, belas e unificadoras", disse ela. "Parecia um tipo de coisa hippie desleixada sobre amor e harmonia." Ela disse que, em determinado momento da sessão, não estava em lugar nenhum: “Não havia cor nem sua ausência. Não havia forma, nem sua ausência. Não havia medo. Não havia alegria. Não havia revelação. Não havia nada.” Ela descreveu isso como “talvez a coisa mais difícil que já fiz na minha vida”, algo que a levou “ao limite máximo da capacidade humana”.

Um artigo acadêmico revisado por pares, “Efeitos da psilocibina em atitudes e comportamentos religiosos e espirituais em clérigos de várias grandes religiões do mundo”, foi publicado na revista Psychedelic Medicine deste mês. Seus autores principais são Bossis e Stephen Ross, professor de psiquiatria da NYU. A Swift, financiadora que ajudou a desvendar alguns dos participantes, também me enviou um relato narrativo que destaca temas de dezesseis entrevistas. Parece quase uma história oral psicodélica. Os entrevistados tendiam a relatar “experiências espirituais ou religiosas autênticas”, observa o relato. Um padre é citado dizendo: “Eu não estava sonhando, não estava imaginando, não estava alucinando”. Muitos participantes compararam sua experiência à de figuras históricas e bíblicas. “Eu pude vivenciar o que os místicos, por algum motivo, foram capazes de vivenciar espontaneamente”, disse um pastor. “Não acho que... minha experiência tenha sido inferior à deles.” De acordo com as entrevistas, o divino geralmente não era corporificado ou visível, mas sim sentido como uma presença que permeava a realidade, ou como uma sensação de unidade. “Percebo que meu próprio pulso é Deus, minha própria respiração é Deus”, disse um rabino.

Vários participantes ficaram surpresos ao encontrar imagens ou dogmas fora de sua própria fé. Um pastor congregacionalista descreveu ter se transformado em um deus asteca e depois no deus hindu Shiva. Ninguém com quem conversei, nem mesmo os rabinos, descreveu ter visto o Deus estereotipado do Antigo Testamento. E muitos líderes religiosos, homens e mulheres, vivenciaram o divino como uma presença feminina. Os participantes caracterizaram Deus como "tranquilo", "maternal" ou "semelhante a um útero". Um pastor metodista unido do Alabama chamou isso de "impressionante". (Jaime Clark-Soles, o estudioso bíblico batista do estudo, me disse: "Deus me pareceu uma mãe judia em determinado momento, o que é engraçado, já que sou um seguidor de Jesus".) Um dos companheiros episcopais de Priest, um homem, relatou: "Eu tive uma desconstrução total da religião patriarcal".

Era comum que os participantes passassem a apreciar religiões diferentes da sua. "Todas as verdades estão em todas as religiões", disse um rabino. "Os ingredientes ativos são todos os mesmos." Um congregacionalista que antes tinha pouca paciência para expressões carismáticas do cristianismo — "as mãos no ar, a fala, o falar em línguas e todas as esquisitices" — observou após sua sessão que "os caminhos para a verdade são ainda mais variados do que eu pensava". Alguns sentiram uma tensão acentuada entre as convenções de sua fé e a imediatez de sua experiência com psilocibina. "Acho que tenho menos tolerância para a religião institucional agora", disse um pastor presbiteriano. "Existem outras maneiras de se conectar com o divino." Aqui estava toda a história das religiões do mundo em poucas palavras: ortodoxia e autoridade em tensão com a experiência espiritual direta do indivíduo.

Sughra Ahmed, a única muçulmana no estudo com líderes religiosos, me disse que ficou apavorada antes da primeira sessão. Como muitas outras, ela estava apreensiva com o que descobriria sobre si mesma. Também temia que sua participação fosse considerada tabu em sua comunidade de muçulmanos britânicos. "Será que eles pensariam que eu estava envergonhando a nós como povo?", ela me disse. Ela pediu que os pesquisadores ocultassem sua identidade em seus artigos e, durante anos, não falou com ninguém sobre sua experiência. Mas, mais recentemente, concluiu que, para preservar sua autenticidade pessoal, precisava se manifestar publicamente.

Ahmed, que está na casa dos quarenta anos, tem um rosto redondo e franco e fala em parágrafos completos. Ela cresceu no norte da Inglaterra, filha de imigrantes paquistaneses. Ia à mesquita todos os dias depois da escola; seus pais rezavam em casa e jejuavam durante o Ramadã. Ela estudou língua e literatura inglesas na universidade e trabalhava em TI quando o 11 de setembro aconteceu. Determinada a entender melhor tanto as raízes do islamismo quanto a repentina onda de preconceito — ela se lembrava de pessoas a tratando "como uma ameaça à segurança" quando entrava em um ônibus —, ela se formou em estudos islâmicos. Por um tempo, usou o hijab. Foi a primeira mulher a presidir a Sociedade Islâmica da Grã-Bretanha e, em seguida, tornou-se reitora associada para a vida religiosa em Stanford, liderando orações e pregando ecumenicamente em uma igreja no campus.

Ahmed se descreve usando um honorífico feminino dado a estudiosos ou professores religiosos: ustadha . Ela se voluntariou para o estudo em parte porque sua fé não estava representada entre os participantes. "Alguém tinha que ser o assento muçulmano à mesa", ela me disse. Mas, como a única muçulmana, ela sentiu que participar significava "entrar em um espaço que não foi projetado para você". Ela também havia lido que psicodélicos haviam se mostrado promissores no tratamento de traumas, algo sobre o qual a comunidade muçulmana tem algum conhecimento.

No início de sua primeira sessão, Ahmed me contou que sentiu Deus bem atrás dela. "Tipo, se eu me virasse, eu esbarraria em Deus", disse ela. "Há um versículo no Alcorão em que Deus diz: 'Estou mais perto de você do que sua jugular'. A jugular é a fonte da vida. Deus esteve comigo o tempo todo." Para ela, Deus não era masculino nem feminino. "Deus estava acima do gênero, acima de tudo... uma existência, não uma figura", disse ela. "E Deus era amor." Sua epifania era um tropo psicodélico familiar, mas isso não a tornava menos profunda. "Ficou incrivelmente claro o quão errados estamos como seres humanos e como precisamos nutrir o amor, colocá-lo no centro do nosso envolvimento com a humanidade, os animais e o planeta", ela me disse.

Ahmed disse que, durante sua segunda sessão, "me dei conta de que o útero é o centro de tudo". A lembrança ainda faz seu coração bater mais rápido, disse ela. "Como é incrivelmente glorioso que as mulheres tenham isso exclusivamente e não mais ninguém! Então, por que não temos uma cultura em que nos prostramos aos pés dessas mulheres com admiração, amor e respeito?" Quando perguntei se alguns muçulmanos considerariam essas ideias heréticas, ela riu. Não em sua leitura das escrituras islâmicas, que frequentemente concedem grande respeito às mulheres — mas sim, disse ela, em algumas culturas muçulmanas, elas podem. "No islamismo, nos prostramos diante de Deus e de mais ninguém", disse ela.

Durante anos após suas sessões de psilocibina, Ahmed sentiu-se desorientada, como se estivesse lutando para recuperar seu senso de equilíbrio e propósito. Em sua comunidade, aqueles que conheciam psicodélicos tendiam a associá-los a outras drogas ilícitas. Ela sentia que não conseguia conversar com ninguém, nem mesmo com sua família, sobre sua experiência, embora fosse uma das mais importantes de sua vida. Ela também sentia que a equipe da Hopkins não havia feito o suficiente para ajudá-la a dar sentido à experiência. Ela chamou as sessões de "extrativas" — "eles estavam extraindo dados para o estudo" — e desejou ter tido a chance de processá-las com pessoas que se pareciam com ela. Ela se viu se afastando de orações e rituais, e a pouca tolerância que ela tinha com a misoginia e o patriarcado havia desaparecido.

No entanto, à medida que seu relacionamento com Deus se tornou menos formal, tornou-se mais direto. "Sinto uma proximidade com Deus, até hoje, que nunca experimentei antes", ela me disse. Ela disse que, depois das sessões, "eu conversava com Deus quando descia as escadas, entrava no ônibus ou ia para uma reunião. Conversávamos. É uma conversa de mão dupla."

Muitos líderes religiosos vivenciaram uma mudança tanto pessoal quanto profissional. Vários relataram que a frequência aos cultos aumentou. Um padre ortodoxo oriental, que pediu um pseudônimo para poder falar livremente, contou-me uma história particularmente dramática de sua retomada da igreja. O Padre Gregory, como o chamarei, é um homem corpulento, com barba grisalha, que mais parece um policial de cidade grande do que um clérigo estereotipado. Ele me contou que, quando era adolescente, seu pai, em seu leito de morte, "buscou o conforto de um padre e teve um momento de conversão". Depois de testemunhar isso, Gregory tomou a decisão de ingressar no sacerdócio e fez o voto de celibato. Com o tempo, porém, ele se frustrou com a Igreja. "Eu não estava apenas esgotado, mas também queria queimar outras pessoas", disse-me. "Eu lutava com a política e a burocracia da Igreja. Eu era uma pessoa amarga, alguém que outras pessoas evitariam. Eu havia ficado preso nesse ciclo de raiva, frustração, pornografia, isolamento e estava meio que perdendo o controle." Ele não sabia nada sobre psicodélicos ou terapia assistida por psicodélicos até ouvir sobre o estudo.

Gregory disse que sua primeira sessão de psilocibina, na NYU, "foi o início do meu amolecimento — o que eu considero a descalcificação do meu coração". Durante a sessão, ele sentiu como se estivesse deitado sobre uma laje de pedra no túmulo de Cristo, coberto de pétalas de rosa. "Percebi que estava morrendo, mas não era triste e eu não estava com medo", disse-me. "Meu corpo havia morrido, mas o amor ainda estava nele e o amor sobreviveria à minha morte." Este era o amor de Deus, ele entendia, e era inesperadamente sensual — o que, para um padre celibatário, "era um território muito perigoso".

No início, ele tentou se conter; continuava se levantando e tirando a máscara e os fones de ouvido para amenizar a intensidade da experiência. Mas, por fim, ele se deixou levar. "Foi extasiante", disse ele. "Eu estava fazendo amor com o amor." Foi desarmante ouvir um padre que eu acabara de conhecer dizer tais coisas sem um pingo de ironia, dúvida ou constrangimento. Ele me contou que, em determinado momento, em vez de interromper os sentimentos poderosos que o invadiam com uma ida ao banheiro, ele liberou a bexiga.Um mentor na hierarquia da Igreja percebeu rapidamente que Gregory havia mudado e perguntou o que havia acontecido. "Acho que não acreditava realmente no que estava fazendo", disse-me Gregory. "Eu odiava a liturgia. Temia. Era mecânica, algo para o qual eu colocava uma máscara. Mas agora é muito mais significativa e satisfatória." Perguntei-lhe como ele entendia o fato de essa mudança ter sido ocasionada por uma pequena cápsula azul. "Veio por meio de uma pílula, mas a pílula foi tocada — abençoada — por Deus", disse ele. "As pessoas podem ser salvas." 

Suas observações ecoaram algo que Roger Joslin, um participante do estudo que serve duas congregações episcopais em Long Island, me disse. "Estou mais desperto", disse Joslin. "Simplesmente estou. A experiência me tornou uma pessoa melhor e um padre melhor." Joslin está na casa dos setenta, mas arquivou os planos de se aposentar; ele argumentou que os pastores têm um papel a desempenhar em ajudar os paroquianos a entender as experiências psicodélicas, mesmo que os psicodélicos sejam ilegais. "Não quero deixá-los para as empresas americanas ou para os terapeutas", ele me disse. "Por que deveríamos ficar de fora dessas experiências espirituais? Achei que estávamos nesse ramo!"de viés de seleção: aqueles que se voluntariam provavelmente estarão "espiritualmente famintos por uma experiência mística", o que aumenta a chance de que tenham uma.

"Eu não imaginaria que um estudioso talmúdico enfadonho gostaria de participar", disse-me ele. "Para eles, são a palavra e a lei. A experiência espiritual por si só não é tão importante." Em 2020, Matthew Johnson, pesquisador da Johns Hopkins e coautor do estudo com líderes religiosos, fez advertências semelhantes em um artigo intitulado "Consciência, Religião e Gurus: Armadilhas da Medicina Psicodélica". Ele escreveu sobre “cientistas e clínicos impondo suas crenças religiosas ou espirituais pessoais na prática da medicina psicodélica”.

Ninguém levou essa ideia mais longe do que Hunt Priest. Em novembro de 2020, depois de se tornar pastor de uma igreja episcopal na Geórgia, ele fez um retiro no deserto do Texas com alguns amigos. "Passei um dia tentando descobrir qual seria meu papel na vida", ele me disse. Em sua visão, ele fazia parte de uma instituição que não estava conseguindo satisfazer as necessidades espirituais de seus membros. "Ao dirigir para a igreja, passo pelo estúdio de ioga, onde as pessoas fazem fila nas manhãs de domingo", ele me disse. Nenhuma multidão clamava para entrar nos cultos. Ele chamou a ioga de "prática espiritual incorporada" e apontou para a testa. "Estamos todos presos aqui", disse ele.

Priest decidiu deixar o emprego e fundar uma organização chamada Ligare, que em latim significa "amarrar" ou "ligar". Swift, o financiador do estudo, entrevistou Priest; a fundação de sua família acabou contribuindo com 25 mil dólares. Em seu site, a Ligare se descreve como uma sociedade psicodélica cristã que acredita que "psicodélicos podem ser usados ​​sacramentalmente como uma forma de experimentar a graça de Deus".

Com o tempo, muitas religiões deixam de se concentrar na experiência espiritual direta, como encontros com Deus ou momentos de transcendência, e passam a se concentrar na tradição e na crença. "Estamos lidando com uma espécie de deserto de experiência na vida religiosa americana", disse-me Charles Stang, professor de pensamento cristão primitivo na Escola de Divindade de Harvard. "Isso não é normal na história da religião." Ele acha os psicodélicos interessantes devido ao seu foco na experiência. Mas enfatizou que as experiências espirituais podem ser muito mais desafiadoras do que as que os pesquisadores anunciavam — menos como a sensação de Priest do divino se movendo através dele e mais como o encontro de Powell com o nada. "Pode envolver um Deus que realmente o rejeita, ou um encontro com a incognoscibilidade de Deus, ou com a inexistência aniquiladora do abismo", disse Stang. "Esse é um tipo de experiência mística muito diferente do abraço caloroso e amoroso, que parece ser o que este estudo está promovendo."

Ariel Goldberg, rabino e psicoterapeuta em Maryland, disse-me que experiências religiosas duradouras advêm de anos de "busca por compreensão e luta com Deus". Ele acrescentou: "Isso não quer dizer que os psicodélicos não possam desempenhar um papel nesse processo, mas é um papel limitado". Sua observação me fez lembrar de Huston Smith, o acadêmico e participante do Experimento da Sexta-Feira Santa, que certa vez observou que uma experiência espiritual é diferente de uma vida espiritual. "Nós, americanos, estamos sempre procurando um atalho", disse Goldberg.

Priest afirma que os psicodélicos podem ser mais facilmente incorporados a crenças estabelecidas do que moldados em uma religião própria. "Já tenho uma igreja e acho que temos algo a oferecer", disse ele. Na primavera de 2022, Ligare levou treze ministros cristãos e cinco facilitadores treinados para a Holanda, onde algumas formas de psilocibina são legais. "A religião institucional tem muito a aprender com os psicodélicos", disse Priest a Don Lattin, um repórter que escreveu extensivamente sobre religião e psicodélicos. "E a comunidade psicodélica tem muito a aprender com a religião organizada." Ele me disse que o encontro, que durou cinco dias, foi "um retiro cristão muito normal... exceto que houve uma grande experiência com trufas de psilocibina no meio do caminho".

Priest e eu conversamos durante um almoço em 2023, em Denver, onde ambos fomos palestrantes em uma conferência chamada Ciência Psicodélica. Mais de dez mil pesquisadores, empreendedores, terapeutas e os chamados psiconautas estavam lá. Sughra Ahmed também. Também em Denver estavam Jaime Clark-Soles, a acadêmica batista — ela está escrevendo um livro chamado "Psicodélicos e Cuidado da Alma: O Que os Cristãos Precisam Saber" — e Zac Kamenetz, o rabino de Berkeley. Todos participaram de painéis sobre psicodélicos e religião.

Este ano, Ahmed largou o emprego para se concentrar em uma organização que fundou, a Ruhani, que planeja realizar retiros psicodélicos e criar um "recipiente" especificamente muçulmano para experiências psicodélicas. Kamenetz, que trabalhou no Centro Comunitário Judaico de São Francisco, lançou um grupo chamado Shefa, que atenderá judeus interessados ​​em psicodélicos — incluindo "hassidas que vão aos cultos de sexta-feira à noite sob o efeito de cogumelos", disse Kamenetz —, inserindo suas experiências em uma estrutura judaica. O Shefa também é financiado em parte por T. Cody Swift. "A segurança política exigia que os judeus, em geral, abandonassem suas práticas mais místicas e extáticas, tanto em casa quanto na sinagoga, para se parecerem mais com seus vizinhos protestantes", disse Kamenetz. Ele argumentou que os psicodélicos poderiam ajudar a trazer de volta o misticismo judaico. Essas perspectivas repercutiram claramente na conferência. Após um painel, uma mulher subiu ao microfone e disse: "Eu voltaria à igreja se soubesse que meu padre fez isso!"

Quase uma década se passou desde que os primeiros líderes religiosos receberam psilocibina. Um dos motivos para o atraso na publicação é que duas pessoas, uma ligada à Ligare e outra afiliada ao estudo, fizeram acusações de falhas éticas em torno da pesquisa. O reverendo Joe Welker, pastor presbiteriano em Vermont que já foi estagiário na Ligare, publicou uma crítica ao estudo no Substack, escrevendo que era "parte de uma estratégia para integrar psicodélicos à religião tradicional" e entrou em contato com o Conselho de Revisão Institucional da Universidade Johns Hopkins, responsável pela proteção dos participantes em testes em humanos. (Quinze dos participantes assinaram uma carta aberta discordando de Welker.) Johnson, o pesquisador da Hopkins que coautorou o artigo, estava preocupado com o fato de Roland Griffiths querer que a pesquisa com psicodélicos influenciasse grupos religiosos e contatou o Conselho de Revisão Institucional da Universidade Johns Hopkins.
Após uma auditoria e uma revisão que duraram mais de um ano, o IRB informou aos autores do estudo que havia identificado vários casos de "grave não conformidade" com suas políticas e procedimentos, incluindo conflitos de interesse. Constatou, em parte, que os pesquisadores não haviam relatado com precisão suas fontes de financiamento e não obtiveram a aprovação do IRB para dois membros da equipe de pesquisa, um dos quais era um financiador (presumivelmente Turnbull). Além disso, não informou que um pesquisador registrado (presumivelmente Swift) também era um financiador. O IRB relatou suas descobertas ao FDA e disse que a equipe do estudo precisaria divulgá-las. "Espera-se que todas as pesquisas realizadas na Johns Hopkins atendam aos mais altos padrões de integridade", afirmou o IRB em um comunicado à The New Yorker. "Quando preocupações foram levantadas sobre este estudo, que não foi financiado pelo governo federal, respondemos imediatamente e conduzimos uma investigação abrangente."
Stephen Ross, da NYU, reconheceu que esses envolvimentos eram inapropriados. "Um doador não deveria estar conduzindo pesquisas. Parece pagar para brincar", disse-me ele. O fato de Swift ter dado dinheiro para a Ligare e a Shefa "se encaixa em teorias da conspiração de que estamos todos conspirando para criar uma religião psicodélica". (Ross se descreveu como um ateu judeu.) "Eu não sabia que meu duplo papel não havia sido relatado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)", disse-me Swift. "Sempre planejamos divulgá-lo no artigo." Alta Charo, bioeticista que atuou no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Wisconsin-Madison e que não é afiliada ao estudo, disse-me que um financiador que participa do processo de pesquisa "introduz o potencial para viés, consciente ou inconsciente, que vai além dos vieses que todos os pesquisadores têm".

Quando perguntei a Griffiths pela primeira vez sobre os participantes que eu poderia entrevistar, ele não mencionou Zac Kamenetz ou Hunt Priest. Mais tarde, perguntei por quê, e me disseram que eram "diferentes". Talvez os pesquisadores não quisessem alimentar a narrativa de que alguns participantes do estudo se tornaram defensores, até mesmo evangelistas, do uso religioso de psicodélicos. No entanto, o único sentido em que Priest e Kamenetz são diferentes é que eles deixaram seus empregos em instituições religiosas para estabelecer organizações psicodélicas formais. "É fascinante que uma porcentagem tão alta deles tenha decidido fazer dos psicodélicos um interesse real além do estudo", disse-me Swift. Os pesquisadores pareciam divididos sobre se isso era algo positivo. Todos enfatizaram que nunca foi sua intenção injetar psicodélicos na religião organizada. No entanto, alguns, como Swift e Richards, apoiaram abertamente esse esforço. (Richards discursou em um evento público da Ligare.)

Outros coautores pareciam mais ansiosos com as consequências. "Estou preocupado desde o início", disse-me Ross. "Será que isso pode ser algo que realmente irrita a religião organizada?" Griffiths morreu em outubro de 2023, mas quando conversamos em sua casa, no subúrbio de Baltimore, alguns meses antes, ele expressou preocupação com a "implicação de que deveríamos introduzir psicodélicos na religião". Ele me disse que os psicodélicos têm grande potencial, mas temia que, se se espalhassem muito rapidamente, pudessem ter consequências imprevistas e potencialmente desastrosas, incluindo o tipo de reação negativa que paralisou a pesquisa com psicodélicos nos anos 1960. "Precisamos ser cautelosos", disse ele, e mais tarde acrescentou: "Não queremos mexer muito rapidamente com as estruturas institucionais que sustentam toda a cultura". 

Nesse ponto, ele pareceu consideravelmente mais cauteloso do que alguns anos antes, quando costumava falar dos psicodélicos como importantes para a sobrevivência da espécie. (Quando perguntei a Kamenetz se ele conseguia imaginar uma reação negativa, ele brincou: "'Experimento inspira clero estranho ligado às drogas' — essa é a sua manchete.")

Entrei em contato com Elaine Pagels, historiadora e professora de religião em Princeton, para um choque de realidade. Em seu livro de memórias de 2018, "Por que religião?", Pagels escreveu sobre tomar LSD com seu marido, o falecido físico Heinz Pagels, em 1969, quando ela tinha cerca de 20 anos. "A experiência foi surpreendente e extasiante", ela me contou por e-mail. "Depois de várias horas, quando eu estava absorta demais para falar, eu disse: 'Acho que isso resolve o problema da morte'. Nós duas rimos." 

Nas décadas seguintes, Pagels não acompanhou de perto os desenvolvimentos na pesquisa com psicodélicos, mas seu interesse foi reacendido quando Anthony Bossis a contatou com perguntas sobre psicodélicos na antiguidade. Mais tarde, a revista Psychedelic Medicine a convidou para escrever um comentário sobre o estudo com líderes religiosos. "Acho que o uso dessas substâncias químicas em condições apropriadas pode ser enormemente benéfico", ela me disse. “Ao mesmo tempo, eles podem ser quase catastróficos para alguns.”

Pagels escreveu extensivamente sobre os primeiros anos do cristianismo, quando líderes religiosos reprimiam seguidores mais místicos. De certa forma, o clero que adota rituais psicodélicos assemelha-se aos cristãos dos séculos II e III sobre os quais Pagels escreveu, muitos dos quais acreditavam que a revelação estava potencialmente disponível a todos, que Deus tinha uma dimensão feminina e que é possível aos indivíduos experimentar Deus diretamente.

A religião organizada frequentemente se opõe a tais figuras. As religiões não podem sobreviver se estiverem abertas às reivindicações de cada indivíduo com suposta experiência do divino. "Não se pode ter pessoas por aí dizendo: 'Deus me disse para fazer isso ou aquilo'", disse-me Pagels. "Porque você pode realmente sair dos trilhos." Mesmo assim, ela se sentiu encorajada pela profundidade e paixão demonstradas por muitos dos líderes religiosos no estudo. "As tradições podem se fossilizar", disse ela. 

As instituições religiosas precisarão ser "revividas, reimaginadas e transformadas" se quiserem sobreviver e servir às pessoas hoje. "É como a arte", acrescentou. "Não nos limitamos à arte do século XV. As pessoas ainda fazem pinturas!" ♦


Publicado na edição impressa da The New Yorker de 26 de maio de 2025 , com o título “Sumos Sacerdotes”.


Quando uma civilização perde o senso do trágico — não a histeria, que abunda, mas o verdadeiro senso trágico — ela se apega aos escombros emocionais como quem tenta fazer de cacos um espelho. Eis a tragédia de Joan Didion, mulher de talento raro, cuja grandeza final foi confundida com a mais vulgar forma de consagração: a canonização pop.

Didion nasceu cult, diz o jornalista, e morreu pop. O que isso quer dizer senão que aquilo que era substância virou performance, e que o estilo contido, rigoroso, quase impiedoso, de seus primeiros textos foi trocado por uma exposição controlada — mas ainda assim exposição — da dor privada? A decadência começa aí: quando o sofrimento deixa de ser uma escola interior e vira um espetáculo para almas mendicantes de identificação.

É verdade, “O ano do pensamento mágico” foi um grande livro. Mas o foi não por causa da dor, e sim apesar dela. Foi grande porque, num tempo em que se romantiza o sofrimento como se ele fosse moeda de prestígio, Didion recusou o sentimentalismo, recusou a linguagem da autoajuda, recusou a pornografia emocional — o que não é pouco num mundo onde a virtude mais elevada parece ser a capacidade de lacrimejar em público.

Mas esse triunfo interior já era uma antecipação da derrota. O público que a acolheu — aquele mesmo que nunca leu “O Álbum Branco” ou “Slouching Towards Bethlehem” — não buscava compreensão; buscava catarse. E Didion, talvez contra sua vontade, acabou se deixando filmar, documentar, vender. Foi fotografada pela Céline como ícone fashion. E aí a intelectual virou celebridade, o luto virou capital simbólico, e a escritora se dissolveu na efígie.

O recém-lançado “Notes to John” talvez seja o ato final — ou penúltimo, nunca se sabe — de uma espécie de autópsia escrita em vida. Trata-se de transcrições das sessões de análise que Didion manteve entre 1999 e 2002 com Roger MacKinnon. A rigor, não é um livro: é um prontuário existencial, um relatório de alma em decomposição que só se torna obra por aquilo que revela, e mais ainda por aquilo que finge não revelar.

A estrutura do texto — “eu disse”, “ele disse” — é seca, quase clínica, mas isso só intensifica a sensação de que entramos numa zona de intimidade onde não fomos convidados. E no entanto estamos ali, lendo. Isso diz mais sobre nós do que sobre ela. Pois hoje ninguém lê para pensar. Lê-se para sentir. A sensibilidade, que deveria ser consequência do pensamento, virou seu substituto barato.

As revelações são muitas, e todas profundamente humanas. Didion não era uma santa: era uma mãe culpada, uma mulher em fuga, uma profissional que transformava o trabalho em escudo contra o afeto. Em sua relação com a filha adotiva, Quintana, vê-se claramente a falência de uma geração que acreditou poder substituir os laços naturais por uma arquitetura emocional planejada. A adoção, nesse sentido, não foi um gesto de amor cristão, mas uma tentativa inconsciente de moldar o destino — e fracassou.

E no fracasso, Didion fez o que sempre fez: escreveu. Mas o fez com uma frieza que assusta e com uma lucidez que falta a muitos dos que hoje se dizem autores de “literatura do eu”. Ali, o “eu” não é bandeira identitária, é problema metafísico. O “eu” que escreve é o mesmo que foge. A escrita não é libertação — é prisão. É nela que Didion se esconde para não amar demais, para não sofrer demais, para não estar “ali emocionalmente”.

Mas ao publicar esses registros — ou ao permitir, tacitamente, que fossem publicados — não estaria Didion finalmente cedendo à tentação do espetáculo? A resposta não é fácil. O controle obsessivo sobre sua imagem, seus arquivos, suas biografias, revela o desejo de moldar até o legado. Mas isso é um paradoxo: quem tenta controlar o próprio mito, acaba engolido por ele.

O que se vê, portanto, é uma mulher de uma lucidez trágica sendo empurrada para o panteão das santas sentimentais. E a intelectual rigorosa sendo vendida a 27 mil dólares na forma de óculos escuros. Isso é o fim. Ou melhor, isso é o fim da cultura como cultura — pois quando a reflexão vira decoração, o que resta é a estética do sofrimento.

Didion sabia disso. Ela sabia que sua dor seria consumida. Sabia que sua filha se tornaria personagem. Sabia que o mundo, que ignora os vivos, ama os mortos bem editados. Sabia — e talvez tenha escrito, mesmo assim. É esse o peso trágico de sua última obra: não sua dor, mas o fato de saber que, ao publicá-la, seria canonizada por aquilo que mais desprezava.


Escrever um bom texto — ainda que de poucas linhas — é tarefa hercúlea. Exige não apenas domínio da linguagem, mas a mais rara das virtudes modernas: a clareza de pensamento. Numa era em que até doutores tropeçam nas próprias ideias como bêbados em calçada molhada, pensar com nitidez e traduzir esse pensamento em palavras coerentes tornou-se um ato de rebelião. A escrita não é mera transcrição da tagarelice mental, mas sim o esforço de estruturação da consciência, o espelho de uma alma ordenada.

Mas não espere que as massas compreendam isso. No Brasil, país da preguiça mental institucionalizada, preferem-se os áudios de WhatsApp — a versão digital do grunhido primitivo. A estatística confirma o diagnóstico: somos campeões mundiais na arte de apertar o botão e despejar sons desconexos. Isso não é apenas um hábito tecnológico, mas a manifestação concreta da recusa em ordenar o pensamento. E onde não há pensamento, tampouco há civilização.

Agora, como se não bastasse essa debacle cognitiva, aparece o novo Messias da burrice automatizada: a inteligência artificial generativa. ChatGPT, Gemini, Claude, Llama — nomes que soam como personagens de desenho animado e que muitos tratam como oráculos pós-modernos. Professores, que mal leem Aristóteles, agora terceirizam suas aulas para robôs. Alunos, que nunca escreveram um parágrafo decente, produzem teses inteiras com a ajuda de máquinas. E o mundo aplaude, achando que se trata de progresso.

Mas aqui está a fraude: não se trata de avanço, e sim de evasão. A máquina não pensa, apenas regurgita padrões. O que ela escreve não vem de uma alma, mas de um algoritmo. E isso é o que separa o texto humano — com todos os seus erros, hesitações e lampejos de genialidade — da perfeição morta da produção automatizada. Não se escreve apenas com o cérebro; escreve-se com a memória, a consciência e a experiência — todas elas, por definição, humanas. Substituir isso por um sistema que aprende sem entender, que escreve sem viver, é reduzir o logos à caricatura mecânica.

Luciano Floridi, filósofo desses tempos amolecidos pela técnica, tenta ao menos levantar a discussão. Em seus artigos sobre “escrita distante”, alerta para o esvaziamento da autoria e a crise do sentido. Introduz o conceito de "capital semântico" — a ideia de que o valor do conteúdo reside não apenas no que é dito, mas de onde vem e como foi criado. É uma tentativa louvável, ainda que tímida, de recolocar a dignidade do autor no centro da mesa. Mas será que o mundo ouve? Duvido.

A confusão é total: há pesquisadores atribuindo autoria à IA, como se o ChatGPT fosse um Descartes digital. Revistas científicas, outrora bastiões da razão, aceitaram artigos com robôs como coautores. Um delírio. A própria ideia de autoria pressupõe responsabilidade moral — algo que só existe onde há consciência. Transferi-la para um programa de computador é como declarar Sócrates culpado por crimes cometidos por seu papagaio.

E há mais. A IA, treinada nos lixos e nos brilhos da produção humana, carrega consigo os mesmos vícios da humanidade, mas sem sua capacidade de crítica. Reproduz preconceitos, distorce verdades, mistura o ouro com o entulho, sem qualquer critério senão o do cálculo estatístico. E pior: tudo isso com a aparência de lucidez. O resultado é uma escrita homogeneizada, asséptica, sem alma — o oposto da literatura, que é, por definição, a luta do espírito com a linguagem.

No plano educacional, o estrago é ainda maior. Professores já não sabem distinguir o que é trabalho do aluno e o que é produção sintética. Avaliações tornam-se farsas, diplomas perdem o sentido e a formação intelectual vira um teatro de sombras. Fala-se em “democratização do acesso à escrita”, mas o que se vê é a industrialização do simulacro. Mais gente "escrevendo", menos gente pensando.

É preciso repetir: a escrita, em seu sentido mais elevado, não é um produto. É uma via de autoconhecimento, de contato com o real, de encarnação da verdade no verbo. Remover o autor do processo é apagar a alma da palavra. E o que resta então? Um palavrório indistinto, uma sopa morna de termos bem organizados, mas espiritualmente mortos.

Floridi acerta ao afirmar que estamos diante de uma mutação não apenas da escrita, mas da leitura, da autoria e da própria compreensão do humano. Mas o problema vai além dos diagnósticos filosóficos. Estamos, na verdade, assistindo ao triunfo de um novo tipo de analfabetismo: o do homem que sabe ler mas desaprendeu a interpretar, que escreve mas não diz nada, que produz conteúdo mas não conhece a verdade.

A ascensão da IA como ferramenta de escrita não é, como dizem os otimistas ingênuos, o início de uma nova era de criatividade. É o sintoma de uma renúncia coletiva: a de pensar, a de aprender, a de ser. O futuro, se continuar nesse ritmo, não será feito de escritores, mas de operadores de prompt. Um mundo onde todos escrevem, mas ninguém é autor. Onde há textos aos milhões, mas nenhuma voz.

Em suma: o problema da IA na escrita não é técnico. É moral, espiritual e civilizacional. E se não for enfrentado com a seriedade que merece, acabaremos trocando o logos por sua sombra, a linguagem por sua caricatura, e a verdade — essa exigente e luminosa senhora — por uma sucessão infinita de frases bonitas, mas sem dono, sem sentido, e sem vida.


Acordei esta manhã com a impressão incômoda — e, admito, intelectualmente estimulante — de que nossa experiência moderna do pecado tem mais em comum com a tragédia grega do que com qualquer catecismo. O que nos comove, hoje, no ato de pecar — supondo que ainda sejamos capazes de ser comovidos por alguma coisa — não é o escândalo moral, mas o patético inevitável. Não é o crime, é o destino. Somos, no fundo, personagens de Sófocles com diploma de psicologia clínica e um aplicativo de meditação.

A associação com Aristóteles é tão óbvia que chega a irritar. Mas, como toda obviedade duradoura, ela resiste porque funciona. Hamartía, esse termo que os tradutores eclesiásticos, com sua obsessão por cercas morais, decidiram rebatizar como “pecado”, aparece na Poética como aquilo que desencadeia a queda do herói trágico. Traduzir hamartía por “falha moral” é quase tão grosseiro quanto traduzir psyche por “alma” — uma dessas distorções piedosas que visam proteger o leitor da vertigem do real.

Na origem, hamartía não tem nada de pecado. É simplesmente um erro. Um desvio. Um tiro que não acerta o alvo. Não há culpa teológica, não há tribunal celestial. Há, sim, o inevitável entrelaçamento da ignorância com a ação. O sujeito erra — e paga. Não porque transgrediu uma norma sagrada, mas porque o mundo, mesmo sem deuses, ainda cobra caro por quem age sem saber o que está fazendo.

Que isso tenha sido recoberto, séculos depois, por camadas de culpa, expiação e juridiquês teológico, não é de surpreender. O cristianismo, com sua vocação administrativa, transformou a tragédia em código penal. Onde havia destino, enfiou contrato; onde havia horror, enfiou confessionário. Substituiu a catarsis por casuística. É um feito notável — mas, como toda tentativa de domesticar o caos, tem prazo de validade.

Voltemos a Aristóteles, que pelo menos sabia do que estava falando. Quando ele descreve a hamartía, fala também das emoções que a tragédia deve provocar no espectador: phobos (medo) e éleos (compaixão). Não se trata de uma pedagogia moral. Trata-se de tocar o fundo do humano, esse lugar em que todo juízo se suspende porque o horror se impõe.

Tome-se Édipo. Ele não é um monstro. Ele é um homem comum. Comete atrocidades — sim — mas sem saber. Mata o pai, casa com a mãe, cumpre a maldição. Mas não é o responsável no sentido moralista do termo. É apenas o infeliz executor de uma ordem que o ultrapassa. E é justamente por isso que o público sente medo e compaixão. Porque percebe: “no lugar dele, eu teria feito o mesmo”. A tragédia é eficaz quando revela o que somos — não o que deveríamos ser.

Esse é o ponto. O pecado, quando escavado até seu osso mais duro, tem menos a ver com rebeldia e mais a ver com ignorância ativa. Pecamos não porque odiamos o bem, mas porque não sabemos onde ele está — ou pior, porque confundimos o bem com outra coisa: alívio, conforto, pertencimento. E depois vem a fatura.

O que nos resta então são duas formas de abordagem. A via do medo — preferida pelos moralistas, sempre de olho em algum cargo no tribunal da alma — e a via da compaixão, mais rara, mais arriscada, porque exige pensar. A primeira reduz o pecado à infração contratual: aqui está a Lei, ali está o transgressor, acolá o inferno. Simples, robusto, ineficaz. A segunda o compreende como enrascada humana, como descompasso entre desejo e lucidez.

Na via do medo, Deus é um tabelião onisciente: forneceu o contrato, você assinou, agora aguente as cláusulas. O pecado, nesse modelo, é uma quebra de contrato — e o arrependimento, um pedido tardio de revisão de termos. Tudo muito lógico. Tudo muito estúpido.

Na via da compaixão, não há tribunal. Há teatro. Você se vê em cena, percebe o ridículo do seu gesto, o patético da sua condição, e se reconhece culpado — mas não por ter “escolhido o mal”, e sim por ter sido estúpido, precipitado, cego. Você entende que pecou não porque quis pecar, mas porque não soube fazer melhor. E isso não o absolve — o condena de forma mais profunda.

Nesse sentido, o Kyrie, eleíson — aquele velho gemido litúrgico que sobreviveu à passagem dos séculos — adquire outro valor. Não é uma bajulação ao tirano celeste. É um pedido seco, rude, adulto: “Ajude-me a sair desta miséria.” Não é o servo pedindo perdão ao senhor. É o homem pedindo ao mundo, ou a quem puder ouvi-lo, que o tire do poço onde ele próprio se enfiou.

Alguns, é claro, vão dizer que isso enfraquece a ética, que abre espaço para o relativismo, que desmoraliza o pecado. São os mesmos que acreditam que a virtude nasce da vigilância constante, como se o homem fosse um cão de guarda da própria alma. Nada mais cansativo. Nada mais falso. O bem não nasce do medo — nasce da compreensão. Quem só age corretamente por temor de castigo é, no fundo, um delinquente domesticado.

Não acredito num duelo maniqueísta entre “minha vontade” e “meus impulsos”, essa fábula de autoajuda com roupagem de batalha espiritual. O que existe, em geral, é um emaranhado mal resolvido de desejos, traumas, pavores, padrões repetitivos. Você pode reprimir um deles e descobrir que outro cresceu no subterrâneo. Cortou a gula? Bem-vindo à obsessão por controle. Cortou o sexo? Prepare-se para a raiva mal disfarçada.

Se há redenção possível, ela virá pelo pensamento — nunca pela penitência. E pensar, neste caso, é admitir: a condição humana é trágica. Não porque estamos condenados ao inferno, mas porque somos capazes de errar sem saber que estamos errando — e ainda assim sofrer todas as consequências.

A tragédia, ao contrário da moral, não promete solução. Só lucidez. E isso, às vezes, basta.


Não poderia ser mais revelador: o papagaio — símbolo involuntário do Brasil, ave de cores vívidas e fala fácil — conquista hoje uma nova forma de existência digital, invadindo não mais as florestas, mas as telas de bilhões de aparelhos. Substituída a pressa náutica de séculos atrás pelas correntes eletrônicas, a repetição que outrora encantava Reis e Gálio­neos conquistadores agora se converte em trend no TikTok. A ave, tão domesticável e contente em imitar, fez school no século XVI; no século XXI vive sua apoteose na dança uniforme de milhões que reproduzem o mesmo gesto, a mesma música, o mesmo riso padronizado.

O papagaio histórico — aquele que Cabral trouxe, talvez africano, para impressionar os índios e logo foi ofuscado pelo festival colorido de nossas araras — já representava a inclinação brasileira ao espelho: falar sem pensar, repetir sem compreender. Hoje, esse instinto alcança sua forma máxima quando o algoritmo do TikTok determina a pauta do dia: descubra a coreografia, sincronize o lábio, encene o meme. Não é mais suficiente ser você; é preciso imitar com precisão o que a plataforma reconhece como “viral”. Se você vacila, não participa da orquestra, cai no esquecimento digital — até que um novo papagaio entre em cena.

Tal como aqueles cronistas do século XVI mediam o valor de um papagaio em ducados, nossos influenciadores mensuram sua relevância em seguidores e curtidas. Cada trend é um “preço de mercado” para a atenção. Não raramente, videoclipes de quinze segundos reproduzem mantras superficiais: o “renascimento pessoal”, o “poder do agora”, o “desafio do café gelado”. Mas debaixo dessas encenações festivas esconde-se o mesmo espírito de domesticidade: o desejo — ou melhor, a urgência — de garantir quinze minutos de fama antes que o relógio do algoritmo avance para a próxima febre. E, como o papagaio falante, o usuário repete, repete, repete.

John Locke, ao citar o papagaio de Nassau, extraía dele não só uma anedota curiosa, mas uma lição sobre identidade: “Se o corpo fala como homem, por que não chamar homem o que não o é?” No TikTok, contudo, não nos confundimos: sabemos bem que a pessoa por trás da câmera não é só o eu autêntico, mas um ser híbrido, meio humano, meio bot. É preciso “dar play” no filtro certo, usar a música de sucesso, inserir a hashtag adequada — e o milagre acontece: somos visíveis. Somos, por alguns segundos, protagonistas de um espetáculo global, admitidos na corte dos que brilham.

Mas há um custo: como o papagaio doméstico, perdemos a autonomia do canto. A cultura que emergia de nossos matizes e cantos próprios dá lugar ao fast-food emocional. Uma sequência de trends nunca revisitadas — Heinz ketchup, dança do ponto eletrônico, voz de desenho animado, queda em câmera lenta. A repetição nos anestesia. Dançamos todos a mesma coreografia, falamos todos as mesmas palavras, somos todos papagaios programados para reproduzir o verniz efêmero do sucesso.

Eis, pois, a nova “Terra Papagalli”: o Brasil digital, reduto de reposts e remixes, onde a autenticidade foi metamorfoseada em métricas. O papagaio ancestral tornou-se o influenciador moderno, e o TikTok, seu viveiro infinito. Ainda assim, a salvação talvez resida no silêncio: aprender a calar o papagaio interior para que, enfim, o pensamento original possa emergir. Sem trends, sem likes, sem aplauso artificial. Talvez seja por aí, e só por aí, que possamos reencontrar algo que não seja uma mera imitação.


Num país em que até a linguagem sofre lavagem cerebral, onde o povo já não sabe mais distinguir interjeição de ideologia, é justamente no falar espontâneo do baiano que sobrevive uma das últimas formas autênticas de expressão da alma popular brasileira. E não estou falando de palavrinha de almanaque, nem de dicionário pasteurizado da academia — falo daquilo que escapa à vigilância do politicamente correto, daquilo que explode na boca com a força de uma navalha emocional: “Oxi”, “Oxente” e, sobretudo, “Porra”.

Comecemos pelo mais leve — o “Oxi”. Que beleza! Uma sílaba só, mas carregada de nuances que nenhum ministro da Educação seria capaz de decifrar sem antes passar dez anos em Itapuã. “Oxi” é o espanto do homem livre, é a reação visceral ao absurdo cotidiano, é o susto existencial do brasileiro diante daquilo que não faz sentido — e por isso mesmo, talvez, seja a expressão mais filosófica que temos. Ele é a refutação instintiva, o “não me venha com essa merda” disfarçado de surpresa. Mas também pode ser a zombaria afiada, o riso debochado diante do teatro da mediocridade que virou o Brasil moderno. Tudo depende do tom. O brasileiro, quando ainda pensava com o corpo, sabia disso.

“Oxente” vem logo em seguida, como irmã mais velha, mais mística e matriarcal. Contração de “Oh, gente!”, dizem os filólogos — mas o que importa é que “Oxente” é o clamor do povo diante da injustiça, da traição, da burrice alheia. É o protesto que vem da cozinha, do terreiro, do banco da praça. Quando alguém diz “Oxente!”, o que se ouve não é uma palavra — é a alma de um povo que não aceita ser feito de besta. É o julgamento popular em forma de fonema. Em um país em que o STF legisla por capricho, ouvir um “Oxente” é quase um ato revolucionário.

Mas é na palavra “Porra” que se revela o âmago da coisa. Ah, a “porra”! Eis aí a expressão suprema da fala baiana, o palavrão elevado à condição de categoria metafísica. Sim, o termo remonta ao vulgar — sêmen, esperma, vida crua e escancarada. Mas, como tudo o que é verdadeiramente vital, ela se sublima na boca do povo. O baiano, ao dizer “Porra!”, não está apenas xingando — está pontuando a realidade, está conferindo intensidade ao que, de outro modo, seria apenas narrativa burocrática. “Porra!” é o grito de quem ainda sente, de quem não foi anestesiado pela tecnocracia sentimental do nosso tempo.

E veja bem: o uso do “porra” não é aleatório. Ele tem regras, ritmo, entonação. É preciso saber dizer “porra”, assim como é preciso saber silenciar. “Porra” dita com raiva é uma coisa; com admiração, é outra. Dita no fim de um dia exausto, é quase uma oração profana. No fundo, a “porra” baiana é o equivalente verbal do que os gregos chamavam de thymos — aquela força interna, aquela fúria sagrada que move os homens a agir. No Brasil em decomposição, a “porra” é talvez a última reserva de energia moral do povo.

A mistura dessas expressões — “Oxi, porra!”, “Oxente, porra!”, “Vixe, porra!” — forma uma verdadeira gramática emocional. Não é linguagem ornamental, nem mero sotaque: é a dramatização da existência. É o teatro espontâneo do povo diante da comédia trágica que se desenrola à sua volta. Quando um baiano diz “Porra, que menino invocado!”, ele está dizendo ao mesmo tempo: “Estou impressionado”, “estou cansado”, “estou vivo”. E tudo isso numa frase só. Nenhum professor da USP seria capaz de condensar tanta realidade em tão poucas palavras.

O idiota acadêmico dirá que se trata de vulgaridade. Pois bem — é justamente na vulgaridade que o espírito se revela quando a linguagem oficial já não serve para nada além de mascarar a mentira. É como dizia São Paulo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir as sábias”. O baiano escolheu o palavrão para confundir o idiota erudito. E conseguiu.

No fundo, essa linguagem é uma forma de resistência. Enquanto o Brasil se embrutece sob a hegemonia do sentimentalismo de ONG e da moralidade de rede social, o baiano — com seu “oxi”, seu “oxente” e sua “porra” — segue vivendo com uma intensidade que a elite cultural já esqueceu. Ele sente com força, fala com gosto, vive com sangue. Isso não é um detalhe folclórico. É o que resta de humano num país que está virando algoritmo.

Se quiser entender o Brasil, não leia editorial da Folha. Vá à Bahia. Ouça um vendedor de coco, uma rezadeira, um pescador de maré. Lá você verá que ainda existe alma no país. E se ouvir um “Oxi, tu acredita nisso?” seguido de um “Oxente, menino, acorde!” e finalizado com um “Porra, vai viver, rapaz!” — agradeça. Você acabou de testemunhar um milagre: o renascimento da fala verdadeira no meio do caos.

E com isso, encerro com a única saudação possível:

“Bora Bahêa, minha Porra!”


Num tempo em que a cultura virou espetáculo de horrores e os artistas se transmutaram em sacerdotes de uma nova religião gnóstica — onde a perversão é sacramento e a mentira é virtude — o caso de Neil Gaiman, o queridinho dos intelectuais de camiseta preta e fãs de mitologia grega de segunda mão, surge como um exemplo gritante do abismo em que mergulhou a imaginação ocidental.

Gaiman, esse encantador de serpentes que nos vendeu sonhos embalados em horror softcore, retorna em Sandman: Terra dos Sonhos, com um conto digno da mais pura tradição fáustica — só que atualizado à miséria moral do nosso tempo. Um escritor decadente, Richard Madoc, desesperado por uma faísca criativa, compra de outro escritor mais velho e igualmente decadente, Erasmus Fry, nada menos do que uma musa grega, Calíope — feita prisioneira, abusada, usada como instrumento de inspiração literária. A musa, outrora símbolo da mais alta elevação do espírito, reduzida a escrava de homens medíocres. A alegoria é explícita, quase pornográfica: a arte moderna é produto do estupro espiritual.

E quando Calíope, entre lágrimas e gritos, exige sua liberdade, Fry — esse verme literato, avatar do próprio Gaiman? — responde com uma frase que deveria figurar em todos os manuais de denúncia cultural: “Escritores são mentirosos.” Pois é.

Agora, a ficção bate à porta da realidade com violência. Desde 2024, acusações começaram a emergir contra Neil Gaiman — relatos obscenos de abuso, manipulação e exploração sexual. Como sempre, os primeiros a defender o autor são os mesmos que falam de “separar obra e autor”, como se a mente que produz um pesadelo estivesse, por milagre, imune a viver nele. Mas o escândalo explodiu em 2025, quando a Vulture publicou um dossiê detalhado, digno de uma tragédia grega escrita por Kafka com diálogos de Bukowski. O rastro de vítimas é extenso: Scarlet Pavlovich, Katherine, Kendra — nomes reais, histórias que se repetem com o mesmo roteiro sórdido: um homem poderoso, um fã vulnerável, um convite disfarçado de oportunidade, e um ritual de dominação camuflado de “arte”.

As denúncias formam um padrão. Todas jovens, todas fãs, todas seduzidas e invadidas sob o pretexto da genialidade. A justificativa? Gaiman, em seu blog, declara — com aquela empáfia típica dos iluminados de si mesmos — que “poderia ter feito melhor”, que foi “emocionalmente indisponível”, mas, claro, nada daquilo é verdade como está sendo contado. A defesa típica do demiurgo pós-moderno: meia confissão, meia negação, e o resto jogado no colo da “narrativa distorcida”.

E aí voltamos ao velho Fry: escritores são mentirosos.

Quantos mais vão cair nesse mesmo molde? Woody Allen, James Franco, Morgan Freeman… a lista não é mais exceção, é regra. Hollywood é a nova Roma pagã, e seus deuses são tão imundos quanto os imperadores que deliravam entre orgias e gladiadores.

A hipocrisia é transparente. Gaiman posa de feminista, de aliado, de paladino da sensibilidade progressista — ao mesmo tempo em que reproduz todos os vícios de um patriarca decadente do século XIX, com um toque de fetichismo new age. “Mestre”, ele dizia. O termo que exige submissão, o título que denuncia a alma. O abuso aqui não é apenas físico: é ontológico. Um escritor que, ao invés de criar beleza, devora o espírito dos outros para fingir que ainda escreve com alguma centelha.

E como os grandes simulacros sempre caem, as consequências vêm: séries canceladas, contratos rompidos, reputação em ruínas. Mas o estrago já está feito. O mal não está apenas no que Gaiman fez, mas no que sua legião de admiradores continua a fazer: desculpas, relativizações, malabarismos morais para manter intacta a fantasia. Porque admitir que o herói é um monstro exige algo que o homem moderno perdeu: juízo moral.

A pergunta final é inevitável: será que vale mesmo a pena conhecer nossos heróis? A resposta de um velho realista seria: se for para conhecê-los, que seja sem idolatria. Porque o ídolo, mais cedo ou mais tarde, revela os pés de lama — e quem ajoelha diante dele termina com a alma suja.



Há uma pressa que não ensina. Uma inquietação que, disfarçada de desejo por conhecimento, atropela a escuta, a observação e a lenta germinação das ideias. Em tempos de fluxo contínuo de informações, é comum que confundamos acúmulo com formação — como se uma estante repleta fosse sinônimo de compreensão profunda, ou uma lista interminável de cursos e certificações substituísse o labor silencioso da maturação interior.

Recordo aqui um princípio fundamental da tradição clássica de pensamento: a formação — paideía, nos termos dos gregos antigos — não é apenas a instrução técnica ou a aquisição de conteúdo, mas sobretudo um modo de ser. A verdadeira formação se dá no ritmo da existência, não no compasso dos algoritmos. É um trabalho contínuo sobre si mesmo, que exige paciência, disposição para o silêncio, e o reconhecimento de que o saber não se alcança em linha reta.

Hannah Arendt, em A condição humana, lembra-nos que o labor do espírito exige recolhimento, e que a ação realmente transformadora parte de uma interioridade bem cultivada. Essa perspectiva se aproxima da ideia de vocação como uma escuta atenta ao que ressoa dentro de nós — e não como a mera busca por um lugar de destaque num mercado saturado de especialistas apressados.

A vocação, nesse sentido, não é um ponto de chegada, mas uma escuta constante. A voz que nos chama — do latim vocare, "chamar" — é muitas vezes tênue e se confunde com os ruídos do mundo. Exige discernimento. E o discernimento se cultiva, em grande medida, por meio da leitura.

Mas não qualquer leitura. Refiro-me àquela leitura que nos desinstala, que nos interroga, que faz do texto um espelho da própria vida. Um tipo de leitura que, como sugere Georges Steiner, em Lições dos Mestres, implica "responder à presença viva de uma voz que nos transforma" (STEINER, 2003). Não se trata de consumir livros como quem percorre prateleiras, mas de permitir que um punhado de autores — talvez cinco ou seis — nos acompanhem ao longo da vida, moldando não apenas nosso pensamento, mas nosso modo de estar no mundo.

Essa companhia exige tempo. Exige voltar às mesmas páginas sob diferentes ângulos, em diferentes estações da vida. Como escreveu Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos, "um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer" (CALVINO, 1991). Mas para que essa escuta aconteça, é preciso abdicar da pressa e da ansiedade de parecer inteligente — essa armadilha sutil que acomete, sobretudo, os que estão nos primeiros degraus da caminhada intelectual.

Nessa trilha, não há vergonha em não saber. Aliás, o verdadeiro estudante é aquele que aprendeu a reconhecer sua ignorância com humildade. É o que Platão coloca na boca de Sócrates: "só sei que nada sei". E esse reconhecimento não paralisa; ao contrário, é o que abre caminho para uma busca mais sincera, mais despretensiosa e, portanto, mais profunda.

Viver o tempo da formação é também aceitar os ciclos da vida. Há momentos em que precisamos nos recolher, ler menos e sentir mais; escrever menos e escutar mais; produzir menos e meditar mais. Há uma sabedoria no intervalo, no tédio, no tempo não ocupado. É aí que, muitas vezes, as ideias verdadeiras amadurecem, como frutos que precisam do tempo certo para serem colhidos.

Em O ócio criativo, Domenico De Masi nos lembra da importância de resgatar a potência criadora do tempo livre — não o tempo da distração, mas aquele em que a mente se aquieta e permite que algo novo emerja. Nesse intervalo, nasce a originalidade, não como um artifício para se destacar, mas como consequência natural de uma escuta profunda.

A maturidade intelectual, portanto, não se mede pela idade nem pela quantidade de diplomas ou publicações. Mede-se pela capacidade de demorar-se nas perguntas, de não se satisfazer com respostas rápidas, de sustentar o inacabado sem desespero. Como observa Maria Zambrano em Claros del bosque, "o pensamento verdadeiro nasce da ferida, da inquietação, do desejo de ver claro onde tudo parece escuro" (ZAMBRANO, 1977).

Este ensaio não pretende oferecer respostas. É antes uma defesa do silêncio, da lentidão, do inacabado. Um convite a quem, no meio da tempestade de dados e imperativos de produtividade, ainda sente a necessidade de escutar o que pulsa por dentro. Que esse chamado — ainda que tímido — encontre solo fértil. E que possamos, cada um à sua maneira, cultivar o tempo da formação como quem cultiva um jardim: com paciência, atenção e respeito ao ritmo das estações.



Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2002.



Na semana passada, enquanto os profetas do progresso digital celebravam as novas maravilhas da inteligência artificial e da “inclusão”, a Pesquisa Inaf trouxe à tona um dado que deveria causar calafrios em qualquer alma minimamente afeita à razão: 65% da população brasileira entre 15 e 64 anos é, em graus variados, analfabeta funcional. Não se trata de uma simples carência educacional. Trata-se da castração deliberada da consciência.

Vinte e nove por cento desses brasileiros não conseguem entender o que leem — e, por “ler”, entenda-se decifrar uma placa de trânsito ou o letreiro do ônibus. Os demais 36% até arranham frases, mas tropeçam diante de qualquer estrutura lógica um pouco mais sofisticada. Ou seja: são incapazes de penetrar um texto literário, compreender uma ironia, seguir um raciocínio filosófico ou sequer perceber uma manipulação discursiva. Resultado: tornam-se massa de manobra — dóceis, crédulos, eufóricos com frases de efeito e “lacrações” de TikTok.

Ora, como esperar que essa multidão se deleite com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, ou compreenda os abismos silenciosos de um Jon Fosse, se lhes foi negado o instrumento essencial da inteligência — a leitura compreensiva? Não é de se espantar que as listas de best-sellers estejam coalhadas de “livros” de autoajuda esotérica, colorir mandalas e “manifestar abundância”. O mercado editorial, transformado em parque de diversões para adultos emocionalmente retardados, atende fielmente ao que se tornou o perfil médio do leitor brasileiro: alguém que mal consegue distinguir um argumento de um slogan.

E enquanto isso, o Estado — sempre o Estado — segue emperrado, adiando há três anos a entrega de livros literários às escolas públicas. Um crime contra a infância, contra a memória nacional e contra o futuro. Editoras que dependem dessas compras se veem estranguladas, numa lenta e silenciosa eutanásia cultural.

Em carta aberta, editores ainda tentam preservar um mínimo de dignidade intelectual, dizendo que não basta incentivar a leitura — é preciso saber o que se lê, como se lê, para que se lê. Sim, perfeito. Mas isso pressupõe algo que esta civilização moribunda já não ousa sequer mencionar: formação intelectual. E isso exige hierarquia, autoridade, disciplina — tudo aquilo que a pedagogia igualitária e emburrecedora destruiu nas últimas décadas.

Não se trata apenas de distribuir livros. Trata-se de reconstruir o espírito. Isso só acontecerá quando se compreender que um povo incapaz de ler é um povo incapaz de pensar. E um povo incapaz de pensar é a matéria-prima ideal para tiranos, tecnocratas e falsos messias.

Portanto, a questão é clara: ou restauramos a educação como instrumento de elevação moral e intelectual, ou afundamos de vez na mediocridade de um analfabetismo funcional travestido de democracia.


Se há algo que as fotografias etnográficas do projeto de Kahn e seus contemporâneos deixam claro, é que o século XX nasce sob o signo da imagem como poder. Não apenas como memória ou registro, mas como autoridade. Uma autoridade que não precisa gritar: basta mostrar. Mostrar o índio parado, sem contexto, com olhar melancólico ou ausente. Mostrar o negro em trajes exóticos, com um sorriso congelado que não diz nada. Mostrar o camponês como pitoresco, o “oriental” como enigmático, o outro como o sempre observável. Mostrar para apagar.

E se hoje olhamos para essas imagens com certo fascínio ou nostalgia, é porque ainda não rompemos totalmente com aquele regime de olhar. Ainda carregamos, nos olhos e nas lentes, as mesmas estruturas que classificam, hierarquizam, infantilizam. O “bom selvagem” se reciclou em “ícone da diversidade”, o exótico virou “riqueza cultural”, e seguimos, sem vergonha alguma, colhendo imagens como quem colhe espólios. Continuamos viajando com nossas câmeras – agora digitais – e tirando fotos de povos que não conhecemos, para postar em redes que nada entendem, alimentando uma máquina que se disfarça de cosmopolitismo, mas que ainda fede ao velho armário colonial.

É por isso que a crítica da fotografia etnográfica deve ser radical. Não basta dizer que ela teve “méritos documentais”. Isso é pouco. Isso é covarde. Porque, convenhamos, não há documento que não seja também monumento – e esses monumentos foram erguidos sobre os escombros da fala dos outros. E o que fazemos com monumentos? Alguns preservamos, outros derrubamos, mas todos precisamos problematizar. Sempre.

O gesto político mais honesto, talvez, seja o de devolver complexidade a essas imagens. Rasgar o verniz estético que as encobre. Interromper a contemplação passiva. Inserir legenda onde antes havia silêncio. Recontar as histórias que elas esconderam – não com palavras doces, mas com a aspereza da verdade. Deixar que os fotografados falem, mesmo que tardiamente, mesmo que através de nós. E, sobretudo, olhar com desconfiança para cada nova tentativa de repetir aquele gesto de captura, ainda que em nome da arte, do jornalismo ou da ciência.

Porque se há algo que a fotografia etnográfica nos ensina – e ensina com brutalidade – é que o olhar nunca é neutro. E que toda vez que miramos o outro como objeto, como tema, como diferença a ser arquivada, estamos repetindo um pacto obscuro. Um pacto que talvez seja o verdadeiro legado do Iluminismo: a ilusão de que ver é compreender, de que mostrar é respeitar, de que colecionar é preservar.

Contra essa ilusão, resta-nos a tarefa ingrata – mas urgente – de desver. De desfazer os enquadramentos. De devolver movimento ao que foi fixado. De recusar o museu da humanidade como modelo de relação com o mundo. E, quem sabe assim, abrir espaço para um outro tipo de imagem: não aquela que captura o outro, mas aquela que nos obriga a repensar a nós mesmos.
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