A modernidade nunca acreditou verdadeiramente em Deus, mas acreditou fervorosamente no desejo. Substituiu a graça pela vontade, o mistério pela escolha, a salvação pelo consumo. No entanto, o homem moderno — armado de liberdade e privação espiritual — descobre-se incapaz de querer. O niilismo do nosso tempo não nasce da falta de crença em valores, mas da saturação do querer. Aprendemos a desejar tudo e, com isso, tornamo-nos incapazes de desejar qualquer coisa.

René Girard, com sua teoria mimética, ainda imaginava que o desejo era um motor universal, um mecanismo antropológico inescapável. Talvez fosse. Mas a civilização tardia — pós-cristã, pós-histórica e pós-humana — deu um passo adiante: encontrou o modo de paralisar o motor. O “aborto do desejo”, como o autor do texto que inspira estas linhas o chama, é o verdadeiro milagre da sociedade liberal. Ele é a vitória final do desencantamento.

O tédio como sacramento

Nenhuma sociedade anterior foi tão eficaz em tornar o tédio um direito humano. A multiplicidade de opções — profissões, identidades, afetos, gêneros — não abriu horizontes: diluiu-os. O “pode ser o que quiser” se converteu em “não há nada que valha a pena querer”. O jovem moderno não sofre por repressão, mas por saturação. Vive rodeado de objetos e possibilidades que não pedem nada dele, e por isso não lhe devolvem nada.

O capitalismo promete o infinito, mas entrega o descartável. O desejo, que outrora buscava o sagrado, agora busca o upgrade. E, quando até a própria transgressão se torna rotina, resta apenas a apatia. O que chamamos “libertação sexual” ou “autonomia pessoal” talvez sejam apenas etapas intermediárias do grande projeto moderno: extinguir o desejo, essa força irracional que faz o homem lembrar que é um animal.

Influenciadores e ascetas digitais

A figura do influenciador é o último sacerdote de uma religião morta. Ele vende a ascese sem transcendência — sacrifícios diários, dietas, rotinas, produtividade — em nome de uma felicidade que nunca chega. O influenciador não acredita no produto que anuncia; acredita no ato de influenciar. É o asceta que não tem Deus, mas ainda jejua.

Girard falou da “ascese para o desejo”: sacrificar o menor pelo maior. Hoje vivemos o contrário — uma ascese do desejo. Sacrificamos qualquer vontade autêntica em nome da performance do querer. Desejamos parecer desejantes. A sociedade da exposição produziu sujeitos que não querem possuir, mas ser vistos possuindo. Não há eros no Instagram — há apenas publicidade.
A indiferença como ideal moral

O dândi do século XIX fingia não sentir; o cidadão digital realmente não sente. Sua frieza não é um estilo, é uma anestesia. O antigo pudor cristão, que escondia o corpo, deu lugar ao pudor pós-moderno, que esconde a vulnerabilidade. Amar, desejar, precisar — tudo isso é vergonhoso, porque implica dependência. A nova virtude é a indiferença. O único pecado é a entrega.

Homens e mulheres competem, hoje, não por amor, mas por autonomia emocional. O corpo é um campo de batalha simbólico, onde a vitória consiste em não precisar do outro. Assim, a emancipação — tanto a masculina quanto a feminina — culmina na esterilidade afetiva. O triunfo do orgulho é a impotência.

O vício em obstáculos

O prazer moderno já não está no objeto, mas no obstáculo. Desejamos o impossível, porque só o impossível ainda promete resistência. Quando tudo é permitido, o único gozo possível é o da autodestruição. A pornografia, a política de identidades, a compulsão por escândalos — tudo isso é a busca frenética por algo que ainda consiga ferir.

Mas esse ferimento já não abre feridas reais. É uma dor simulada, um suplício de consumo rápido. A revolta, como a fé, foi privatizada. O ativista online é o novo devoto: vocifera contra o sistema, mas jamais abandona seu smartphone. O ressentimento é a forma final da esperança.

O eclipse do eros

O que chamamos de “morte do desejo” é, no fundo, a vitória do controle. O eros sempre foi perigoso porque nos colocava fora de nós mesmos. Desejar é aceitar a ferida da alteridade. Por isso, o mundo moderno — obcecado com segurança, autonomia e previsibilidade — precisava eliminá-lo.

As canções pop que celebram o poder e a independência são, na verdade, cânticos fúnebres. São hinos a um sujeito que não precisa de ninguém, e por isso não tem ninguém. O amor foi substituído pelo marketing de si; a paixão, pela curadoria da própria imagem. O corpo, antes um altar de prazer e mistério, tornou-se uma vitrine higienizada.

Epílogo: o último mito

Em Missa Negra, John Gray escreveu que a modernidade é uma religião disfarçada de razão. O mesmo vale para o culto do desejo: ele prometia liberdade, mas conduziu à servidão da indiferença. Quando o homem quis abolir todos os deuses, esqueceu que o próprio desejo era um deles.

Agora, com o altar vazio e o coração anestesiado, resta apenas o murmúrio: “tanto faz”. É o amém pós-moderno, o coro de uma humanidade que venceu todos os interditos e perdeu a capacidade de sentir.

O fim da história não é o paraíso — é o fastio. E, no silêncio após o último grito de emancipação, talvez o único gesto verdadeiramente humano seja aquele que o niilista teme mais: desejar novamente.


Publicar uma tradução é, para uma editora moderna, o equivalente civilizado do antigo comércio de escravos. O tradutor — esse ser intermediário entre o verbo e o mundo — trabalha meses sobre um texto, decifra o espírito de outro homem, transforma-o em corpo verbal novo, e no fim descobre que o espírito não paga imposto, mas a alma, sim. Recebe migalhas, quando recebe. E o público, cada vez mais estupidificado, lê aquilo como se o texto tivesse brotado do nada — de uma “equipe editorial com auxílio de ferramenta de inteligência artificial”, segundo a novilíngua corporativa do século XXI.

O episódio narrado na revista piauí — a tradutora Paula Carvalho que traduziu um livro de 345 páginas e recebeu uma ninharia — é apenas um sintoma. É o retrato perfeito de uma civilização que não reconhece mais a hierarquia do espírito, porque já não distingue o espírito do algoritmo. Quando o tradutor é substituído pelo DeepL e o editor se gaba do “bom resultado”, o que temos não é progresso técnico: é a abdicação do homem diante da máquina. A tradução feita por uma inteligência artificial não traduz: transpõe. É o transporte de cadáveres linguísticos de um idioma para outro.

A profissão do tradutor nasceu da reverência. O tradutor era o sacerdote do verbo — aquele que descia ao inferno das palavras alheias para arrancar-lhes o sentido e trazê-lo purificado à luz da sua língua. Quando José Saramago dizia que “os tradutores fazem a literatura universal”, exprimia, sem o saber, uma ideia teológica: a tradução é a comunhão das línguas, e o tradutor é o ministro desse sacramento. Hoje, porém, os ministros foram expulsos do templo e substituídos por operadores de software.

As editoras, como toda burocracia moderna, são movidas por uma lógica de contabilidade e ressentimento. O tradutor é o tipo de profissional que não se enquadra: trabalha sozinho, pensa demais e não se deixa transformar em “recurso humano”. Por isso, é humilhado. Não é à toa que o coletivo Quem Traduziu nasce com mais de seiscentas assinaturas: é o gemido de uma classe que percebeu tarde demais que a cultura que serviu já não existe. A cultura virou mercado; o mercado, um simulacro; e o simulacro, o senhor de tudo.

Não me espanta que o Sindicato dos Tradutores prefira “não se envolver”. O sindicalismo moderno é a arte de negociar a própria escravidão em suaves prestações. Enquanto isso, as tradutoras, mal pagas e cansadas, vão às festas literárias exigir o óbvio: que seus nomes apareçam na capa. É comovente, mas inútil. Quando a cultura de um país precisa de um manifesto para lembrar que quem traduziu um livro é um ser humano, é sinal de que o idioma já entrou em coma.

A situação se agrava com a entrada triunfal da inteligência artificial. Chamam de “inteligência” o que não passa de uma estatística automatizada de probabilidades linguísticas. A máquina não compreende nada — apenas repete padrões, como um papagaio que faz doutorado em semiótica. E o tradutor humano que aceita servir de revisor da máquina não será seu mestre, mas seu escravo. “Aprender programação”, como sugerem alguns, é o primeiro passo para o suicídio espiritual da profissão.

O tradutor verdadeiro não traduz palavras: traduz mundos. Ele não é o funcionário do texto, mas seu ressuscitador. Gregory Rabassa não “interpretou” Cortázar ou García Márquez — ele os recriou, no sentido mais radical da palavra. Quando escolheu “to discover” em vez de “to know”, ele não seguiu uma regra; seguiu o sopro do espírito. Nenhuma inteligência artificial, por mais “treinada”, poderá sentir o estremecimento metafísico que separa conhecer de descobrir.

A tradução é uma forma de amor — e o amor, dizia Santo Agostinho, é o peso da alma. O tradutor carrega o peso da alma de outro homem, em outra língua. O que o mercado faz hoje é transformar esse ato de amor em prestação de serviço, e o tradutor, em digitador terceirizado.

Mas há um consolo: quando tudo se automatiza, o gesto humano autêntico volta a brilhar como um milagre. Chegará o dia em que uma tradução feita por uma pessoa será vendida como se fosse vinho antigo — rara, imperfeita, mas viva. A máquina pode imitar o ritmo, a cadência, o léxico; mas não pode imitar o silêncio entre as palavras, onde mora o sentido.

No fundo, a luta dos tradutores não é econômica — é ontológica. Trata-se de decidir se a linguagem é coisa viva ou ferramenta morta. Se vencerem os algoritmos, perderemos não apenas a literatura universal, mas a própria humanidade. Porque o que nos faz humanos não é a capacidade de comunicar, mas de compreender — e a compreensão começa onde a tradução se torna impossível.



Não é preciso crer em Deus para se submeter a Ele. Basta não crer em mais nada. O romance de Michel Houellebecq, Soumission, é uma parábola não sobre fé, mas sobre fadiga — uma meditação cruel sobre o modo como o cansaço substituiu a convicção na alma moderna. François, o protagonista, não se converte ao islamismo: ele desaba nele, como quem cai na cama após uma vida desperdiçada em debates inúteis.

A França de Houellebecq é a civilização do esgotamento — e François é seu corpo fatigado. Ambos chegam à mesma conclusão: resistir exige energia, e energia é um luxo de quem ainda acredita no sentido das coisas. A submissão, ao contrário, é repouso.

O romance é menos uma distopia política que uma radiografia do niilismo disfarçado de tolerância. Não há revolução nem imposição: há simplesmente um colapso moral administrado com boas maneiras. O islamismo em Soumission não conquista a França — apenas preenche o vazio deixado por uma elite que trocou a fé pela ironia e a verdade pelo consenso.

O triunfo dos cansados

A cena política do livro — a vitória eleitoral da Fraternidade Muçulmana — é apenas o espelho de um processo mais profundo: a rendição voluntária de uma sociedade que já não tem vontade. Eu diria (e Gray confirmaria, rindo por dentro) que todas as ideologias modernas são religiões cansadas de si mesmas. O socialismo, o liberalismo, o humanismo secular — todos filhos bastardos do cristianismo, todos prometendo redenção terrena, todos esgotados por excesso de esperança.

A França do romance é o laboratório dessa falência. O país que inventou a razão de Estado, os direitos humanos e o ateísmo elegante termina por entregar sua alma ao poder mais arcaico e simples: o poder de quem ainda acredita em alguma coisa. O islamismo de Houellebecq é menos uma ameaça externa do que uma caricatura da fé abandonada. Ele ocupa o espaço vazio deixado pela decadência espiritual da Europa — uma invasão não por conquista, mas por osmose.

A teologia do comodismo

O mérito perverso de Houellebecq está em perceber que a verdadeira religião do Ocidente é o conforto. A “submissão” de François é apenas uma modalidade espiritual do mesmo instinto que o leva a buscar sexo sem amor, emprego sem vocação e fé sem transcendência. Ele não odeia o cristianismo — apenas não vê utilidade nele.

O islamismo que o acolhe não é uma doutrina, mas uma rotina. Oferece-lhe o que as democracias liberais não conseguem mais: um papel social, um ritual, um senso de continuidade. Em troca, exige apenas o silêncio. Uma barganha razoável.

Há uma ironia trágica nesse arranjo. François acredita ter recuperado a virilidade que o mundo feminista lhe roubara — mas, na verdade, apenas encontrou um modo socialmente aceitável de transformar o tédio em submissão. Sua “conversão” é o ponto máximo de sua mediocridade: um colapso moral apresentado como epifania.

A ilusão da resistência

Toda civilização acredita ser mais lúcida que as anteriores. É um erro de perspectiva: quanto mais uma sociedade se afasta de seus mitos fundadores, mais confunde a apatia com sabedoria. O racionalismo europeu, que começou libertando o homem de Deus, termina libertando-o também de si mesmo.

O homem moderno não resiste à tirania — ele a negocia. François, diante da islamização da França, não se revolta; ele adapta-se. A Sorbonne, outrora templo da razão iluminista, torna-se uma madrassa financiada pelo petróleo árabe. Nenhum protesto, nenhuma indignação. Apenas um murmúrio burocrático, uma transição pacífica para a obediência.

É a revolução passiva de Gramsci em sua forma mais perfeita: uma sociedade que muda radicalmente sem perceber que mudou. Nenhum golpe, nenhum sangue, apenas o desaparecimento suave da liberdade sob a forma de uma nova normalidade.

O colapso da alma

A ironia final é que François, ao aceitar o islamismo, acredita estar ganhando algo — um retorno à ordem, à virilidade, à comunidade. Na verdade, ele está apenas trocando um vazio por outro. O Ocidente pós-cristão e o Oriente teocrático são duas versões de uma mesma negação: ambos desprezam a fragilidade humana.

O primeiro o faz em nome da autonomia racional; o segundo, em nome da obediência divina. Em ambos, a ideia de pessoa — esse milagre moral inventado pelo cristianismo — se dissolve. François, incapaz de amar, e a França, incapaz de crer, terminam idênticos: corpos civilizados sem alma.
A rendição como redenção

Há um tipo de paz que só existe depois da derrota. Soumission é o romance dessa paz. A França ajoelhada não é humilhada — está aliviada. François tampouco é convertido — é poupado do esforço de pensar.

No fundo, Houellebecq escreve sobre o colapso espiritual do Ocidente com o humor gélido de quem já aceitou que nada voltará a ser grande. Sua ironia é a mesma de John Gray: o riso de quem compreende que toda civilização é uma religião moribunda que ainda não percebeu estar morta.

A submissão de François é apenas o epitáfio de uma cultura que, tendo perdido o sentido do sagrado, decidiu venerar o descanso.

E no altar vazio da modernidade, o homem ajoelha-se — não diante de Deus, mas diante da própria fadiga.


A literatura — se ainda a palavra conserva algum sentido — era, em outros tempos, o espaço onde a linguagem se tornava uma forma de consciência. Escrever não era apenas comunicar: era experimentar-se no limite do que podia ser dito. Mas o mundo moderno, sempre ansioso por redenções seculares, converteu a linguagem num instrumento de salvação política. O escritor cedeu lugar ao militante, e a literatura, à catequese.

Não foi a censura que matou a literatura brasileira. Foi a crença. A crença de que o mundo pode ser moralmente corrigido pela retórica. A crença de que a linguagem, purificada de toda ambiguidade, serviria como veículo para um novo homem — um homem sem preconceitos, sem contradições, sem pecado. O Homo redimido pelo discurso. O Homo corretíssimo.

Toda utopia começa com uma promessa de pureza. A modernidade brasileira, com sua ânsia de se alinhar às modas ideológicas globais, apenas atualizou o velho delírio iluminista em escala tropical. Substituímos Deus pela “consciência social”, a alma pela “identidade” e o pecado pela “opressão estrutural”. O resultado é o mesmo: culpa universal, redenção impossível, inquisidores de plantão.

A linguagem, antes veículo de comunhão — no sentido que Allen Tate dava ao termo — tornou-se uma ferramenta de profilaxia moral. As palavras foram desinfetadas, tornadas seguras para consumo público. Em lugar do estilo, temos o protocolo. Em vez do ritmo interior do pensamento, temos o catecismo da opinião. O escritor moderno não escreve: higieniza frases.

A consequência é previsível. Uma cultura que vigia suas palavras deixa de pensar. E uma literatura que não pensa deixa de existir. A ausência de grandes escritores não é um acidente, mas o sintoma de uma civilização que já não tolera o risco da sinceridade. A literatura não morreu por falta de leitores, mas por excesso de virtude.

Em Missa Negra, John Gray recorda que as ideologias modernas são teologias sem transcendência — religiões que ainda acreditam na redenção, mas dispensam Deus. O progressismo cultural que domina o cenário brasileiro é uma dessas teologias, e sua liturgia é a linguagem. Cada termo proibido é um pecado, cada adjetivo suspeito, uma heresia. A literatura, se quer sobreviver, deve penitenciar-se em público, confessar sua culpa original, pedir desculpas à História.

Mas a História não perdoa. Apenas consome. A cada nova geração, o escritor brasileiro é compelido a se purificar um pouco mais, a calibrar sua consciência para as sensibilidades do momento. O resultado é uma prosa sem espessura, sem ironia, sem verdade. O escritor torna-se um funcionário da moral — e o leitor, um fiscal.

Escrever sob tais condições é como respirar num quarto sem oxigênio. A linguagem, privada de tensão e ambiguidade, morre de asfixia. A literatura, reduzida a instrumento pedagógico, já não é arte: é política de recursos humanos.

A destruição da literatura é um crime invisível, porque suas vítimas não sangram. Não há cadáveres, apenas o silêncio. As gerações formadas sob essa nova ordem moral não saberão o que perderam, porque já nasceram órfãs da experiência interior. Não saberão distinguir comunicação de comunhão — nem compreenderão por que isso importava.

A alma humana, dizia Pascal, tem horror ao vazio. Quando a arte recua, o moralismo avança para preenchê-lo. O moralista é o artista fracassado que descobriu o poder do ressentimento. Ele não cria: ele corrige. E a correção, em sua forma mais elevada, é o extermínio simbólico de tudo o que é ambíguo, imperfeito, vivo.

Por isso, a extinção da literatura não é um colapso cultural, mas um triunfo político. A palavra autêntica — aquela que exprime a verdade da experiência humana — é perigosa. Ela desestabiliza crenças, ridiculariza certezas, afronta hierarquias. É mais subversiva do que qualquer panfleto. E justamente por isso, foi banida.

Há, é claro, uns poucos sobreviventes — poetas que ainda escrevem como quem escava uma mina abandonada, na esperança de encontrar vestígios de humanidade entre os escombros da ideologia. São poucos, anacrônicos, quase invisíveis. Mas sua persistência é a última forma de resistência espiritual num país que se tornou incapaz de distinguir arte de anúncio governamental.

O Brasil não carece de talento. Carece de mundo interior. E sem mundo interior não há literatura, apenas propaganda de sentimentos.

Talvez seja essa a ironia final: a civilização que mais se orgulha de sua consciência moral é justamente a que menos compreende o mal — e, por isso, a que menos compreende o homem.

A literatura, se algum dia voltar, não virá como salvação, mas como ruína. E talvez seja preciso que tudo se destrua — para que uma palavra volte a significar alguma coisa.



Três reféns ajoelham-se diante de uma câmera. As mãos, amarradas nas costas; as cabeças, cobertas por sacos plásticos pretos que lhes ocultam os rostos. Atrás deles, um grupo de militantes barbudos e sisudos, vestidos com túnicas e turbantes, avança lentamente. Alguns empunham rifles de assalto, outros apenas cruzam os braços, em silêncio.

“Temos uma mensagem para a América”, anuncia o homem que ocupa o centro da cena. Com uma das mãos, apoia-se no ombro da figura ajoelhada à sua frente; com a outra, ergue o dedo indicador para o alto, pontuando o discurso com gestos teatrais.

Para qualquer pessoa acima de certa idade, o enquadramento é imediatamente reconhecível. O olhar fixo, a encenação rígida, o texto ameaçador — tudo remete, de forma perturbadoramente precisa, aos vídeos de Daniel Pearl e James Foley, jornalistas ocidentais decapitados diante das câmeras por grupos extremistas islâmicos.

O título do vídeo — The Lede — sugere tratar-se de uma reportagem ou comentário sobre os acontecimentos do dia. A mise-en-scène reforça a expectativa: mais uma peça de propaganda violenta, mais um registro sombrio das guerras intermináveis no Oriente Médio.

Mas a sequência seguinte toma outro rumo. O homem de pé remove a sacola plástica do rosto do prisioneiro — e o que se vê é um sorriso hollywoodiano. O suposto refém ergue o polegar, radiante. “Bem-vindos ao Afeganistão!”, diz, encarando a câmera com entusiasmo estudado. O que se segue é uma montagem frenética de estrangeiros posando para fotos em vales montanhosos, fazendo flexões sobre canhões de tanques e tirando selfies com soldados locais.

O vídeo, afinal, não era uma ameaça — era um anúncio. Seu criador, Yosaf Aryubi, um afegão-americano de quase trinta anos, o concebeu como peça de propaganda para sua agência de viagens, a Raza Afghanistan, que organiza excursões turísticas pelo país.

Aryubi divide o tempo entre o Afeganistão e a Califórnia. No vídeo, interpreta o papel de um executor em potencial, enquanto o refém que ele “revela” é Jake Youngblood Dobbs, influenciador de viagens norte-americano que, na época, percorria o país em turnê com a Raza. O resultado é uma mistura de sátira e autopromoção — um comercial provocativo que vende tanto o senso de aventura quanto a própria coragem de quem se dispõe a visitar o Afeganistão.

A encenação ganhou atenção além do público-alvo. Uma conta pró-Talibã nas redes sociais, @afghanarabc, compartilhou o vídeo, num gesto que soou como aprovação tácita da façanha de Aryubi. O mesmo perfil já havia divulgado outros conteúdos em inglês, entre eles um trecho do programa de Tucker Carlson, no qual o apresentador elogiava os programas de tratamento de dependência química do Afeganistão e os comparava favoravelmente aos dos Estados Unidos.

Detesto admitir, mas quando vi o vídeo pela primeira vez, há alguns meses, ri. O contraste abrupto entre o tom de ameaça e a virada cômica lhe dava uma ironia sombria e absurda — algo que um Tim Robinson particularmente cínico poderia ter inventado.

Jake Youngblood Dobbs e os outros viajantes até criaram um apelido afetuoso para seus anfitriões: Talibros. A montagem de rock que se segue à falsa execução tem momentos genuinamente engraçados. Em uma das cenas, um grupo de rapazes posa com um fuzil de assalto onde se lê, gravado na lateral, “Propriedade do Governo dos EUA”. “É um souvenir americano”, comenta alguém, entre risadas. “Ah, nem está na trava de segurança agora”, diz o turista branco que segura a arma — antes que todos caiam na gargalhada coletiva e familiar de quem sabe estar fazendo algo estúpido, perigoso e, portanto, irresistivelmente engraçado.

Mas a sequência inicial continuou me assombrando. Nas semanas seguintes, percebi que havia ali algo menos cômico e mais inquietante. As execuções filmadas foram imagens indeléveis das guerras que marcaram minha infância e adolescência — vídeos clandestinos de decapitações que circulavam em sites piratas e que, por curiosidade mórbida, insistíamos em procurar. Lembrei deles com náusea. E suspeito que essa reação — esse mal-estar involuntário — fosse justamente o que buscavam provocar os jovens influenciadores por trás do vídeo.

As referências irreverentes de Aryubi a décadas de violência no Afeganistão se inserem num gênero crescente de conteúdo turístico embalado em ironia: uma mistura de sátira e marketing que, simultaneamente, convida o espectador a duvidar de tudo o que a grande mídia diz sobre o país e a não levar muito a sério o que os próprios criadores afirmam. É, em essência, um guia de viagens para os cínicos — um Frommer’s dos edgelords.

Nos últimos anos, o Afeganistão se tornou cenário de um tipo peculiar de aventura: a dos influenciadores que viajam em busca de ironia. São jovens criadores de conteúdo que, armados de câmeras e autoconfiança, percorrem o país com o discurso de que querem “mostrar a verdade” — ou, pelo menos, uma versão alternativa dela.

Um dos nomes mais conhecidos é o do americano Addison Pierre Maalouf, mais popular na internet como Arab, dono de quase dois milhões de inscritos no YouTube. No inverno passado, ele também visitou o Afeganistão. Em um de seus vídeos, aparece em um mercado feminino, ladeado por companheiros barbudos.

“Estamos aqui, em um mercado de mulheres, comprando roupas femininas, com mulheres ao nosso redor. Isso é loucura. E elas estão conversando! Olha, estão conversando!”, diz, com falsa surpresa, enquanto o amigo ironiza, fingindo duvidar do que vê.

Maalouf continua: “Mas eu lembro de ter lido: ‘Talibã proíbe mulheres de falar’.” Nesse momento, surge na tela a imagem de uma manchete com exatamente essa frase.

A insinuação é clara: a mídia ocidental teria exagerado na representação da repressão feminina para difamar e isolar o regime do Talibã — quando, na verdade, as mulheres afegãs estariam em situação mais livre do que se imagina.

Mas a realidade que Maalouf tenta relativizar é menos flexível. A lei à qual ele se refere determina que “sempre que uma mulher adulta sai de casa por necessidade, deve esconder a voz, o rosto e o corpo”. É a mesma lógica que sustenta a proibição de meninas frequentarem escolas após os doze anos, ou a decisão recente do governo de retirar das universidades todos os livros escritos por mulheres.

É verdade que as leis, no Afeganistão como em qualquer outro lugar, são aplicadas de modo desigual. Assim como em São Paulo é possível atravessar a rua fora da faixa sem ser multado, em Cabul há mulheres que conversam e compram roupas nos mercados sem serem repreendidas por patrulhas do Talibã. Maalouf, portanto, não inventou a cena que filmou — mas a utilizou de modo enviesado, como se fosse prova de que a narrativa internacional é falsa.

O truque é sedutor: o espectador sente que está vendo o que “não querem que ele veja”, e sai do vídeo com a sensação de ser mais esperto do que as massas crédulas que acreditam em tudo o que a imprensa diz.

Há um cinismo difuso operando nesse tipo de conteúdo, uma confluência curiosa entre o turismo de risco e a política de rede. Muitos desses influenciadores de viagens alternativas acompanham — e alimentam — a guinada à direita de seu público, majoritariamente masculino e jovem. O resultado são vídeos que misturam adrenalina, queixas morais e o fascínio pelo “mundo real” fora da bolha ocidental.

O caso de Kurt Caz ilustra bem o fenômeno. Branco, sul-africano e dono de milhões de seguidores em múltiplas plataformas, Caz conquistou fama ao filmar suas andanças por bairros considerados perigosos em países como Venezuela e Quênia. Seu estilo era direto e provocador: desafiava os avisos dos moradores e se aventurava exatamente onde diziam que ele não deveria ir, retratando os países em desenvolvimento por meio de suas zonas de maior vulnerabilidade — um retrato parcial, mas eficaz, de pobreza e violência.

Nos últimos tempos, porém, Caz mudou de foco. Neste verão, apareceu em Frankfurt, na Alemanha, acompanhado de um influenciador britânico de extrema direita que se apresenta como FredCPO — guarda-costas autoproclamado e crítico feroz da imigração. No vídeo, os dois caminham por ruas cheias de usuários de drogas e pessoas sem-teto, lamentando o número de “migrantes ilegais” na cidade. Caz rebatiza o local de “Crackfurt”.

A estética do perigo, antes restrita a favelas latino-americanas ou becos africanos, agora é trazida para o coração da Europa. O subtexto é claro: se nada for feito, as cidades ocidentais seguirão o mesmo caminho dos lugares “arruinados” que ele filmava antes. A mensagem implícita é menos sobre viagem e mais sobre medo.

Há, é claro, um fundo de verdade nesse tipo de vlog em primeira pessoa e em outras “fontes alternativas” de informação. Não é conspiratório afirmar que as narrativas moldadas pela geopolítica estão cheias de estereótipos e de propaganda. Tampouco é mentira que os avisos oficiais de viagem — aqueles comunicados secos emitidos por embaixadas — raramente oferecem um retrato completo dos países que pretendem descrever.

O problema é o que acontece quando essa constatação vira método. Influenciadores como Aryubi, Maalouf e Caz não se interessam pela complexidade: ela não rende cliques. A nuance não funciona bem nas redes sociais. Em vez de contextualizar a longa história de intervenções estrangeiras no Afeganistão, ou os efeitos econômicos do isolamento e do colonialismo, preferem a simplificação que sustenta a indignação e o engajamento.

O resultado é uma torrente de conteúdos que soam tanto como teoria da conspiração quanto como denúncia heroica — e funcionam precisamente por isso. É uma forma eficiente de capitalizar sobre o descrédito crescente no jornalismo tradicional.

Uma pesquisa recente da Gallup mostra que apenas cerca de um quarto das pessoas com menos de cinquenta anos confia na mídia de massa para relatar as notícias de forma “completa, precisa e justa”. A erosão da confiança nos veículos tradicionais vem acompanhada de uma perda de fé na própria ideia de especialização. Nesse vácuo, florescem figuras como Andrew Tate e Nicolas Kenn de Balinthazy (mais conhecido como Sneako), que se apresentam como os únicos dispostos a revelar “como o mundo realmente funciona” — mediante o pagamento de um curso de autoajuda ou a assinatura de um servidor privado no Discord.

O economista político William Davies, no livro Nervous States, descreve esse deslocamento como o colapso de uma visão compartilhada da realidade. A confiança nos especialistas, escreve ele, fornece à sociedade “uma versão do mundo sobre a qual todos podemos concordar”. Quando essa confiança se desfaz, o que toma seu lugar é a intuição coletiva — uma leitura emocional e fragmentária do presente.

“À medida que a visão objetiva do mundo recua”, escreve Davies, “ela é substituída pela sensação de para onde as coisas estão indo agora. Esse estado nervoso oferece mais estímulo e sensibilidade, mas, por isso mesmo, é inquietante. Pode gerar conflito e agitação do nada. E a pergunta que se impõe é: quem está tentando despertar esses sentimentos — e com que finalidade?”

Em vez de buscar a verdade, esses influenciadores parecem empenhados em dissolvê-la. Seu objetivo não é esclarecer, mas embaralhar — deixar o público perdido, cético, incapaz de distinguir o que é fato e o que é encenação. Essa névoa de incerteza rende cliques, visualizações e, sobretudo, dinheiro.

Ao minar as narrativas oficiais, eles se posicionam como a única fonte confiável de informação — paradoxalmente, convertendo o descrédito na mídia em capital simbólico e financeiro. O público, cada vez mais desconfiado, acaba preso em um ciclo de notícias baseado em rumores, ironia e especulação.

Nas franjas do algoritmo, operar no limite tornou-se estratégia de marketing. É por isso que nomes como os Nelk Boys ou Jake Paul — antes conhecidos por pegadinhas juvenis no YouTube — migraram para um conteúdo cada vez mais político e provocador. Títulos como: 48 horas vivendo na favela dos trilhos de trem da Indonésia ou Fiquei cego experimentando o mel alucinógeno do Nepal seguem a mesma fórmula: fetichizar o perigo e a pobreza para garantir atenção. Não por acaso, o canadense Nolan Saumure, que atende pelo nome artístico de Seal, ostenta na capa de seu canal o slogan “Junte-se ao Circo Itinerante”. A tentação, sempre implícita, é a mesma: venha ver se esse idiota morre.

William Davies volta a ser certeiro: “Quando palavras e imagens se tornam meras ferramentas para mobilizar e engajar, deixa de importar se são reflexos válidos da realidade.”

Sob esse prisma, a execução simulada de Yosaf Aryubi adquire um estranho frescor. Não há disfarce de seriedade, nem promessas de verdade. Tudo é abertamente uma encenação. Ele sabe — e nós também — que é apenas uma grande piada.

Por que artistas como Ritchie, Guilherme Arantes, Lulu Santos, Djavan,Marisa Monte e bandas como Legião Urbana, Titãs, Blitz, Capital inicial, Biquíni cavadão e outros mais, continuam em evidência e lotando shows?

Nesse vídeo, tentamos desvendar esse "mistério" em mais uma conversa com Jota Fagner, sobre o incrível universo musical dos anos 80.


O ser humano moderno acredita estar evoluindo, mas apenas aperfeiçoou sua capacidade de morrer por dentro com elegância.

O progresso humano é uma ilusão de escala. Acreditamos que, por termos refinado nossos instrumentos e acelerado nossos meios, também ampliamos nossa consciência. Mas a única coisa que fizemos, na prática, foi sofisticar a negação da morte — não apenas da morte biológica, mas da mais profunda e real: a morte interior.

Hoje, milhões vivem como Raskólnikov depois do crime, mas sem jamais se darem conta do que perderam. Morreram por dentro — e chamam isso de autonomia.

O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ainda pertence a um tempo em que o sofrimento podia ser um caminho de revelação. Ele acreditou, por um breve e trágico momento, que poderia transcender a moral comum, agir além do bem e do mal, como um Napoleão urbano. Quando mata, não elimina apenas a velha agiota; destrói também o último vestígio de sua própria ligação com o mistério da existência. Torna-se um cadáver funcional. Mas diferente do homem moderno, ele sente o cheiro de sua própria decomposição.

O ser humano contemporâneo, por outro lado, já não sofre com isso. Substituiu a culpa por diagnósticos, o arrependimento por racionalizações, e a dor por distrações. Ele não deseja redenção — deseja apenas não ser incomodado.

Essa é a principal conquista da modernidade: a anestesia da consciência.

Nada ilustra melhor essa condição do que a ideia — amplamente aceita — de que a vida interior é um luxo dispensável. Em vez de um espaço de encontro com o real, ela foi relegada ao patológico. Ficar em silêncio tornou-se estranho. Sentir-se vazio passou a ser tratado como uma disfunção química. E a busca por sentido virou nicho de mercado.

O homem moderno, assim como Raskólnikov, tentou se tornar espírito puro. Mas o espírito que ele encarnou não foi o da razão esclarecida, e sim o da abstração desumanizadora. Ele acredita que pode viver de ideias — e, como resultado, afunda num vazio que nenhuma ideia consegue preencher.

Dostoiévski via no sofrimento uma chance de renascimento. Mas essa visão, por mais potente que seja, pressupõe algo que o nosso tempo já perdeu: a capacidade de sentir culpa, vergonha, espanto. Numa sociedade que transformou até o trauma em capital simbólico, sofrer tornou-se uma performance — e não um caminho.

Mesmo a empatia — palavra-fetiche de nossos dias — foi desidratada de qualquer autenticidade. Ela é celebrada enquanto conceito, mas evitada enquanto experiência real. Afinal, empatizar de verdade com o outro exige parar, escutar, abrir mão do próprio eu — exatamente o que a modernidade nos ensinou a evitar a todo custo.

A técnica não apenas modificou o modo como vivemos. Ela moldou o que consideramos vida. E o fez com tamanha eficácia que o vazio tornou-se norma. Nunca estivemos tão rodeados de estímulos — e nunca fomos tão incapazes de prestar atenção. A mente moderna é um motor de fuga contínua: da dor, da dúvida, do silêncio.

Mas não se trata de um erro, e sim de uma adaptação. Os seres humanos não são racionais, nem buscam a verdade — buscam apenas conforto emocional. O racionalismo moderno é apenas o nome nobre que damos ao desespero domesticado. Inventamos explicações para não ver o que somos. Criamos doutrinas, sistemas, crenças — inclusive a crença na ciência como salvação moral — porque não conseguimos suportar a contingência da existência.

Dostoiévski ainda via uma saída: o amor, a compaixão, o vínculo. Mas mesmo isso parece hoje obsoleto. Sonia, com sua fé silenciosa, talvez seja a personagem mais inverossímil para o século XXI. Ela acredita em redenção. Nós acreditamos em algoritmos.

O que nos resta, então?

Nada. Ou, se quisermos ser generosos, quase nada.

Talvez ainda reste a arte — não como entretenimento, mas como ruína. Os grandes livros não nos salvam, mas nos lembram do que perdemos. São fósseis de uma consciência que já não temos, e que provavelmente não voltará. Ainda assim, em raros momentos, podemos tropeçar em algo que nos pare. Um trecho, uma frase, um sopro de sentido. Isso não nos redime — mas, por alguns instantes, suspende a farsa.

E isso, talvez, seja o máximo que podemos esperar de um mundo como o nosso.




Em entrevista para a revista Quatro Cinco Um, o escritor Patrick Chamoiseau relata suas percepções a respeito da própria obra (v. Em busca do insondável). Toda utopia começa como uma esperança e termina como um sistema de crenças. O artista, quando acredita saber o que é a arte, já está a meio caminho de sua servidão. Patrick Chamoiseau reconhece isso com uma honestidade que poucos intelectuais ainda suportam: não sabe o que é a literatura — e talvez nunca venha a sabê-lo. Nesse gesto de ignorância deliberada, há uma lucidez que falta aos que transformaram a arte em moral.

Vivemos em um tempo em que a cultura é convocada a oferecer redenção. Cada livro deve provar sua utilidade social, cada escritor deve confessar sua ideologia. As universidades e os festivais literários se tornaram, em grande parte, versões seculares dos antigos púlpitos. A dúvida estética cedeu lugar à catequese da representatividade. Contra essa tendência, Chamoiseau se comporta como um herético: escreve com a consciência de que o ato de criar é uma forma de desobediência — não à norma social, mas à ilusão de que a linguagem pode ser domesticada.

“Escrever é apoiar a testa contra a rocha dura de uma língua”, ele diz. Essa imagem é mais exata do que parece. A língua, seja a do colonizador ou a do colonizado, é sempre uma estrutura de poder. Toda palavra carrega um império, todo silêncio é uma rebelião. Ao recusar escolher entre o francês e o crioulo, Chamoiseau revela a natureza trágica da arte: ela é o lugar em que o oprimido fala com as palavras do opressor, e ainda assim o desarma. A “língua-fronteira” que ele constrói não é um compromisso, mas uma ferida que permanece aberta — e dessa ferida brota a literatura.

Mas o martírio da linguagem não é apenas político. É também metafísico. Chamoiseau intui que o artista não conhece a beleza, apenas a pressente. A beleza, como a verdade, não é uma propriedade da arte; é um acidente. O escritor trabalha para merecer o acaso de sua visita. A maioria morre sem tê-la encontrado, como o místico que reza a vida inteira a um deus que não responde. A fé do artista é justamente essa: continuar a escrever diante do silêncio.

Ao falar de crioulidade, Chamoiseau não celebra uma harmonia multicultural. Ele descreve uma catástrofe fundadora. A crioulização não é fusão; é fricção. É o encontro de forças que se chocam e se destroem, gerando uma nova forma de vida — instável, híbrida, irredutível. Em um mundo que venera identidades fixas, sua literatura da “relação” é uma lembrança incômoda de que toda cultura nasce do conflito e da mistura. A pureza é apenas a mitologia dos que temem o tempo.

O escritor martinicano percebe o que as utopias do progresso se recusam a admitir: o futuro não é uma promessa de reconciliação, mas uma expansão da complexidade. Quando ele afirma que o mundo novo será feito de “mobilidades, intercâmbios, individualizações”, descreve algo que está além do sonho liberal de um planeta integrado. Ele anuncia uma era em que não haverá mais centro, apenas fluxos — e, portanto, nenhuma forma estável de pertença. Para muitos, isso soa como libertação; para outros, como desamparo. Em ambos os casos, é o fim de um mundo.

John Gray observou que as religiões seculares, de esquerda ou de direita, partilham o mesmo vício: acreditam na redenção histórica. Chamoiseau oferece um antídoto poético a essa ilusão. Sua “literatura da relação” não promete salvação, apenas convivência. Não busca restaurar a unidade perdida, mas aceitar o inacabamento como condição da existência. O artista que escreve em um país dominado descobre, afinal, que toda língua é um império — e que a única forma de liberdade é transformá-la em ruína.

A maioria das utopias modernas pretende fundar novos mundos. Chamoiseau, ao contrário, apenas tenta ouvir os ecos dos que sobreviveram. Sua arte não projeta um paraíso futuro; observa os destroços do presente. É aí que reencontra a beleza — não como resposta, mas como vestígio. O artista, diz ele, caminha sozinho em direção ao enigma. Talvez o que chama de literatura seja apenas isso: o vestígio luminoso deixado por quem se perdeu no caminho certo.


A Rua 25 de Março (v.Muito além da 25 de Março) é um retrato fiel daquilo que o capitalismo sempre foi: uma economia do improviso, movida por redes invisíveis e moralmente indiferentes. Nenhuma novidade nisso, embora insistamos em tratá-la como anomalia.

As barracas, as galerias e os galpões que se estendem pelo centro de São Paulo são apenas o cenário mais recente de uma história muito antiga — a de comunidades humanas organizando a escassez por meio de hierarquias informais e pequenos truques de sobrevivência.

A sociologia chama isso de “captura por ilegalidade”. Mas o que está sendo descrito não é a exceção: é a norma. Toda economia, em algum nível, repousa sobre uma dose calculada de violação. O capitalismo formal apenas aprendeu a terceirizar sua ilegalidade — a escondê-la atrás de contratos, zonas econômicas especiais e paraísos fiscais. A 25 de Março não subverte o sistema; ela o expõe em sua forma mais honesta.

A diáspora chinesa que ali se instalou é o retrato em miniatura da globalização: pessoas movendo-se entre fronteiras permeáveis, obedecendo a lógicas de sobrevivência que ignoram tanto o Estado quanto a moralidade.

No topo, importadores e proprietários; na base, vendedores vulneráveis. Entre eles, um espaço cinza, onde a lei é aplicada de modo flexível o suficiente para continuar lucrativa.
Nada disso é escandaloso. É simplesmente o que o homem faz quando não há outra forma de viver.

As análises que falam em “exploração” partem da crença — cada vez mais frágil — de que existiria um capitalismo puro, legal, transparente, do qual esse circuito seria uma distorção.
Mas não há capitalismo sem zonas de sombra. O sistema depende delas tanto quanto depende da luz. São os mesmos mecanismos — a terceirização da culpa, a monetização do risco, a invisibilidade da mão que lucra — que sustentam, em escala global, a ficção da prosperidade.

O comércio informal não é uma falha do mercado: é sua versão natural. Quando as crises vêm, quando o Estado falha, quando o dinheiro escasseia, o homem retorna ao seu instinto original — negociar, trapacear, adaptar-se.

O sociólogo, ao nomear esse processo, talvez o dignifique sem querer. Mas o que há ali não é dignidade nem degradação — é apenas continuidade biológica.

A moralidade nunca existiu como fundamento econômico.
Os mercados não se sustentam pela ética, mas pela utilidade. E a utilidade, como tudo o que é humano, é local e transitória.
A 25 de Março não é um sintoma do colapso da civilização; é um lembrete de que a civilização sempre foi uma forma de disfarçar o colapso.

Os imigrantes chineses, com sua rede silenciosa e disciplinada, não estão destruindo o capitalismo brasileiro — estão simplesmente praticando-o com mais honestidade.

Eles sabem, talvez instintivamente, que a lei é um idioma que se fala com sotaque.

O brasileiro, por sua vez, aprendeu a conviver com o duplo padrão: aplaude a esperteza e denuncia a esperteza alheia.

Assim, a 25 de Março se torna o espelho perfeito de um mundo sem centro moral: todos fingem cumprir regras que ninguém leva a sério.
O Estado finge regular, o vendedor finge obedecer, o consumidor finge ignorar a origem das mercadorias.

É essa simetria de fingimentos que mantém a ordem possível — uma ordem precária, mas suficientemente estável para sobreviver.

Talvez o que mais espante não seja o cinismo dessa economia, mas o fato de que, a despeito dele, ela funcione.
O caos é o habitat natural da espécie.

E o mercado, seja na Bolsa de Nova York ou sob o toldo azul da 25 de Março, é apenas a forma mais engenhosa de torná-lo habitável.


Toda literatura que se propõe política carrega uma contradição de origem: quer transformar o mundo, mas depende da linguagem — essa ferramenta de uma espécie incapaz de transformar a si mesma.

Coração sem medo, de Itamar Vieira Junior, não tenta escapar dessa contradição; antes, a assume como princípio. Sua força nasce justamente do reconhecimento de que o sofrimento brasileiro — o da pobreza, da violência policial, da desigualdade racial — não é uma falha passageira da história, mas o seu modo regular de operar.

A protagonista, Rita Preta, não atravessa o infortúnio em busca de purificação moral. Sua existência não sugere transcendência, apenas continuidade. No universo de Vieira Junior, continuar é o gesto ético fundamental. E continuar, aqui, significa recusar o consolo. Essa recusa é o que aproxima o romance de uma visão trágica do humano — aquela que John Gray reconhece na tradição que vai de Heráclito a Schopenhauer: o reconhecimento de que a dor não é um obstáculo ao progresso, mas a substância da vida consciente.

Em Coração sem medo, a dor não ensina; repete-se. O desaparecimento de Cid, o filho primogênito, não é o início de um drama singular, mas o prolongamento de uma história coletiva. Cada corpo negro que some é uma reencenação do mesmo ritual estatal de extermínio. Cada mãe enlutada é a memória viva da falência de um Estado que insiste em se proclamar republicano. Vieira Junior, como Gray, parece compreender que as instituições humanas não evoluem: apenas mudam de forma para preservar a mesma estrutura de dominação.

Ao contrário das narrativas redentoras que povoam o imaginário progressista — aquelas que imaginam o sofrimento como etapa de um processo moral ascendente —, Coração sem medo rejeita a linguagem da esperança. Rita Preta não deseja reformar o mundo, tampouco se deixa convencer pela promessa de que a justiça virá. Sua luta é mais elementar: manter a lucidez diante do infortúnio.

Gray escreveu que o humanismo secular é apenas “cristianismo sem teologia”: mantém a fé na bondade e na perfectibilidade do homem, mesmo tendo perdido o deus que garantia tal fé. O romance de Vieira Junior parece escrever contra esse mesmo dogma. Ele sugere que a crença no progresso moral da humanidade é uma das últimas formas de superstição. Por trás do discurso civilizatório, o que persiste é a barbárie racionalizada — a mesma que transforma a violência policial em rotina e a desigualdade em estatística.

Essa percepção não conduz ao niilismo, mas à sobriedade. O mundo, nos lembra Gray, não precisa de sentido para existir. O sofrimento não exige justificação. A sabedoria trágica está em aceitar a imperfeição como condição inescapável. É exatamente o que Rita Preta encarna: ela sabe que não há justiça possível para o que perdeu, e ainda assim segue. Sua dignidade nasce dessa lucidez amarga.

O espaço do sonho e da imaginação, que se amplia no decorrer da narrativa, não contradiz essa visão; ele a reforça. Em Coração sem medo, sonhar não é esperar um outro mundo — é preservar um fragmento de humanidade dentro deste. O sonho é uma forma de consciência, não de ilusão. Ele é, para Rita Preta, o que a filosofia foi para os céticos antigos: um abrigo contra o desespero.

Quando a protagonista declara que “a ditadura nunca acabou”, ela não está apenas denunciando o autoritarismo brasileiro: está descrevendo o próprio ritmo da história humana. A violência muda de nome, mas nunca desaparece. As democracias modernas, com suas polícias, prisões e desigualdades, são apenas versões mais sofisticadas do mesmo regime de força. A civilização é o modo como disfarçamos a guerra permanente da espécie contra si mesma. Vieira Junior mostra essa guerra com a precisão de um cronista que não acredita em milagres.

No fundo, Coração sem medo é uma crítica ao mito central da modernidade — o mito de que o homem pode ser salvo por suas próprias invenções. Nem o Estado, nem a política, nem a cultura redimem o sofrimento. O humanismo, como religião secular, fracassa porque ainda supõe que a história tem direção e que o bem pode prevalecer com o tempo. O romance de Vieira Junior destrói essa narrativa: o tempo, aqui, é circular, e o mal, permanente.

Contudo, é justamente nesse reconhecimento que surge uma ética possível. Se o progresso é uma ilusão, a compaixão não o é. Se a história não melhora, o gesto singular de cuidado — o olhar da mãe, o sonho persistente, a palavra escrita — ainda preserva um sentido. A obra de Vieira Junior confirma, assim, a intuição mais sombria e, paradoxalmente, mais humana de John Gray:
“A tarefa não é aperfeiçoar o mundo, mas aprender a viver dentro dele.”
Rita Preta aprende — não com fé, mas com lucidez. Sua coragem é sem esperança. E talvez seja essa a única coragem que reste.



A imaginação sempre foi o refúgio mais íntimo da espécie humana. No ato de criar — seja uma história, um poema, um pensamento — o homem encontra um raro intervalo de liberdade entre o mundo que o oprime e o eu que o sustenta. No entanto, estamos vivendo o momento em que até esse intervalo é colonizado. As ferramentas de inteligência artificial além de prometerem acelerar a escrita, buscam purificá-la daquilo que a torna humana: a incerteza, a hesitação, o erro.

Não é a máquina que ameaça a literatura — é a ideologia que a alimenta. A idolatria contemporânea pela eficiência e pela produtividade converteu o pensamento em uma operação estatística. A imaginação, reduzida a dado processável, tornou-se um recurso de extração. A criação, que antes emergia da lentidão, da solidão e da dúvida, passa agora a ser mensurada em tokens por segundo. Escrever, hoje, é competir com um algoritmo. E o escritor que tenta “colaborar” com a máquina apenas internaliza sua lógica — a lógica do desempenho.

O fascínio pela inteligência artificial não nasce do desejo de compreender, mas do medo de ser deixado para trás. Por trás da promessa de criatividade aumentada, oculta-se a mais antiga das servidões: a busca por validação. O criador contemporâneo já não confia em seu próprio juízo; ele busca a certificação algorítmica de que aquilo que faz “funciona”. A literatura, nesse contexto, deixa de ser uma forma de expressão e se torna um teste de aderência a padrões estatísticos de relevância.

Os algoritmos não compreendem o que produzem; apenas espelham a regularidade das repetições humanas. Sua linguagem é um espelho fosco onde o escritor, ao procurar a si mesmo, descobre apenas o reflexo de uma multidão sem rosto. A IA não é um instrumento da criação, mas um sintoma daquilo que a sociedade fez com o ato de criar: transformá-lo em um processo industrial de certificação simbólica. A literatura passa a ser medida não por sua verdade, mas por sua eficiência comunicativa — e nisso a máquina é insuperável.

O estilo, essa expressão instável e vital da experiência humana, não pode ser imitado porque não é apenas técnica. Ele nasce da tensão entre o mundo e a consciência, da fricção entre o desejo de dizer e o fracasso inevitável da linguagem. O estilo é o traço de uma alma que resiste à abstração. A máquina, porém, só reconhece o que é recorrente. Ao reproduzir o estilo, ela mata o movimento que o fazia vivo. Sua perfeição é um cadáver polido.

A sociedade que se prostra diante das máquinas não o faz por ingenuidade, mas por conveniência. O culto à eficiência oferece um alívio moral: quem produz rapidamente sente-se virtuoso. A pressa é a nova forma de pureza. Nesse mundo, o escritor hesitante — aquele que pensa devagar, que duvida, que reescreve uma frase dez vezes — é um anacronismo, um obstáculo à economia da velocidade. O capitalismo de dados não tem lugar para o intervalo contemplativo; ele o identifica como falha.

Talvez por isso a literatura que sobreviverá não seja a que imita o humano, mas a que se refugia naquilo que nenhuma máquina pode acessar: a interioridade. Essa literatura não será um produto de luxo, mas um exercício de desobediência. Será lenta, imperfeita, frágil — e, justamente por isso, viva. Em um tempo em que tudo é quantificado, apenas o que resiste à medição conserva valor.

A inteligência artificial é apenas o espelho de uma civilização que desistiu de pensar. A tecnologia não destrói a imaginação; ela a revela em sua decadência. O escritor que entrega seu ofício à máquina não perde apenas o controle da linguagem — perde o direito de se surpreender com o que cria. O que morre, nesse gesto, não é a literatura, mas a experiência de ser humano o bastante para criá-la.

A tarefa agora é simples e terrível: aprender a estar sozinho de novo, longe das máquinas que fingem pensar por nós. O silêncio, mais do que nunca, é uma forma de insubordinação. A resistência à automatização da arte começa com o gesto de recusar o cálculo, de aceitar o tempo da dúvida, de escrever uma linha que não serve a nada — exceto ao mistério de ser.
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