Ao contrário, muitas vezes a centralidade de um texto nasce da marginalidade de um povo. Os escritores do Tanakh — ou Antigo Testamento, se quisermos adotar a nomenclatura cristã — foram testemunhas de uma realidade constantemente ameaçada. A sucessão de monarcas justos e ímpios, descrita em páginas intermináveis de Reis e Crônicas, não deve ser lida como relato objetivo da história, mas como mito político de uma comunidade sitiada, para quem a catástrofe era sempre iminente. O texto sagrado explica derrotas militares como punições divinas, e raramente como resultado de uma inferioridade estratégica. Esta recusa em aceitar o acaso ou a contingência é a marca distintiva de uma religião que fez da história um campo de batalha entre fidelidade e apostasia.
Para o leitor moderno, no entanto, essa narrativa só se revela plenamente quando se observa o pano de fundo arqueológico. O que chamamos de “Israel” e “Judá” eram reinos pequenos, cujas capitais — Samaria e Jerusalém — separavam-se por meros 56 quilômetros. Mas, ao longo de séculos, estas cidades-estado estiveram à mercê de forças externas: guarnições egípcias, expedições assírias, deportações babilônicas. Os autores bíblicos escreveram para contemporâneos que sabiam situar Moabe a leste do Jordão e Edom ao sul, que conheciam os rituais de Aram-Damasco e o perigo dos filisteus. Nós, leitores tardios, ao abrirmos essas páginas, somos lançados em um mundo tribal, onde cada localidade e cada divindade estrangeira tinham peso imediato na consciência política de quem escrevia.
É revelador que a primeira menção extrabíblica a Israel não tenha surgido em Jerusalém, nem mesmo em Canaã, mas no Egito. A estela do faraó Merneptah, datada de 1207 a.C., proclama com frieza: “Israel está devastado; sua descendência não existe mais.” É difícil imaginar uma ironia histórica mais cruel. A inscrição que testemunha o nascimento histórico de Israel já o anuncia como extinto. E, no entanto, dessa aparente aniquilação brotou a memória que daria origem ao texto fundador de três religiões mundiais. O que é registrado como fim tornou-se começo.
Canaã, nesse período, era menos uma potência e mais um corredor, um espaço de passagem entre civilizações imperiais. O vale do Jordão, com seus microclimas e diversidade de espécies, era um território de encontros e deslocamentos. Tribos nômades e pequenos agricultores se espalhavam por suas montanhas e planícies, moldando uma cultura necessariamente pluralista, ainda que marcada por rivalidades. Essa instabilidade ecológica e demográfica explica por que nunca se constituiu ali um império duradouro. As chuvas incertas, as colheitas irregulares e a vulnerabilidade às secas obrigavam à migração constante — muitas vezes rumo ao Nilo, onde a abundância era mais previsível. A sobrevivência em Canaã era um exercício permanente de adaptação.
E é precisamente dessa instabilidade que emerge a teologia bíblica. O Deus que pune e recompensa não é senão a tradução metafísica da precariedade política e ecológica. A crença em um pacto divino reflete a necessidade de encontrar uma lógica transcendente em meio ao caos histórico. O Tanakh é, nesse sentido, um arquivo de ansiedade: cada derrota militar, cada invasão estrangeira, cada deportação torna-se sinal de uma falha espiritual, não de um acidente político. A história, nesse imaginário, não é contingente — é pedagógica.
Mas a arqueologia revela uma outra narrativa, desprovida de teleologia. Entre o século XIV e o XII a.C., Canaã foi território sob rígido controle egípcio. As cartas de Amarna, escritas em cuneiforme, mostram pequenos governantes cananeus pedindo ajuda militar contra vizinhos ou saqueadores, sempre reconhecendo a autoridade do faraó. As cidades-estado de Siquém, Hazor, Laquis e Jerusalém não passavam de assentamentos modestos, com palácios mínimos e templos rudimentares, incapazes de rivalizar com a monumentalidade de Tebas ou Nínive.
E, ainda assim, foi desse terreno secundário que emergiu o mito mais duradouro da humanidade. A explicação não se encontra na força militar, mas no poder da imaginação. Povos que não puderam dominar pelo exército procuraram dominar pelo texto. A Bíblia não é testemunho de supremacia política, mas de resiliência cultural. Enquanto os impérios que subjugaram Canaã ruíram e se dissolveram na poeira, o relato dos hebreus sobreviveu, carregado por gerações que se recusaram a esquecer. O triunfo da memória sobre a realidade é, em última análise, o triunfo da própria religião.
Se hoje voltamos os olhos a esse período remoto, não é para celebrar a glória perdida de um povo que jamais foi realmente poderoso, mas para compreender a ironia da história: a grandeza da Bíblia nasce da insignificância geopolítica dos que a escreveram. Canaã não foi o centro do mundo antigo. Mas, porque esteve sempre na periferia, pôde transformar sua fragilidade em universalidade.
Quando olhamos para o ano de 1207 a.C., data da Estela de Merneptah, estamos de fato diante de uma encruzilhada histórica. O faraó ergue seu monumento em Tebas como gesto de triunfo, mas, no horizonte do Mediterrâneo oriental, um processo muito maior se desenrola — o colapso da Idade do Bronze. É um daqueles momentos em que a história não se move gradualmente, mas desmorona em cascata. Civilizações que pareciam imutáveis — os hititas na Anatólia, as cidades micênicas na Grécia, até mesmo as redes comerciais do Egito — entram em declínio simultâneo. A arqueologia registra incêndios súbitos, abandono de palácios, queda das rotas marítimas. O mundo antigo, estruturado em impérios estáveis, fragmenta-se em pequenas unidades, deixando espaço para novos atores.
Sem esse colapso, os israelitas provavelmente não teriam deixado vestígio. Teriam permanecido como mais uma tribo pastoril, sem literatura própria e sem papel histórico. Mas a ruína dos grandes impérios criou interstícios nos quais pequenos povos puderam inscrever sua existência. É aqui que o acaso se confunde com necessidade: a Bíblia só pôde nascer porque o mundo que a cercava entrou em falência.
O que chamamos de “Israel” nesse período não era uma nação unificada, mas um mosaico de clãs montanheses. O ambiente das terras altas, com sua diversidade ecológica e sua dificuldade agrícola, funcionava como refúgio contra o colapso. Enquanto cidades costeiras como Ugarit ou Megido eram destruídas por invasores, os grupos das colinas sobreviviam em relativa obscuridade, cultivando olivais, cuidando de rebanhos, preservando tradições orais. A arqueologia das aldeias da região central da Palestina mostra assentamentos pequenos, de casas de quatro compartimentos, organizadas em torno de pátios comuns. Nada de muralhas, nada de templos grandiosos. A religião era doméstica, o espaço social reduzido. Mas foi dessa precariedade que brotou uma nova identidade.
A Estela de Merneptah fala de “Israel” como se fosse uma entidade distinta, já reconhecida pelo Egito. Mas não se trata ainda de um Estado. É provável que “Israel” fosse, nesse momento, apenas um rótulo para comunidades dispersas que partilhavam uma língua semítica e certas práticas religiosas. A inscrição egípcia anuncia sua destruição, mas, paradoxalmente, nos dá a primeira evidência de sua presença. A ausência de grandes cidades e a dispersão da população tornam invisível este Israel nascente, salvo quando nomeado por potências externas.
O que os textos bíblicos mais tarde narraram como Êxodo e conquista de Canaã deve ser lido menos como memória literal e mais como mito de origem. O movimento real não foi de um povo escravizado no Egito que retorna triunfante, mas de comunidades que se consolidaram nas montanhas enquanto o sistema urbano costeiro desabava. O colapso do Bronze abriu espaço para narrativas de eleição: se os impérios caíam, era possível imaginar que um Deus único havia escolhido um povo pequeno para sobreviver. O vazio de poder foi reinterpretado como sinal de providência.
Ao mesmo tempo, Canaã nunca esteve isolada. As “rotas de Hórus” mantinham a conexão com o Egito, e os intercâmbios culturais eram contínuos. Pinturas do túmulo de Beni Hasan, séculos antes, já mostravam grupos semitas entrando no Nilo. O episódio dos hicsos — aquela breve dinastia de origem cananeia que governou o Egito entre 1670 e 1570 a.C. — atesta como as fronteiras eram porosas. Canaã sempre foi tanto objeto quanto sujeito de migrações. Os israelitas carregavam essa memória de deslocamento: eram, por definição, um povo que se via como estrangeiro em sua própria terra. Daí a insistência bíblica em narrativas de êxodo, exílio e retorno.
Na Idade do Bronze Final, Canaã havia se tornado colônia do Egito. As cartas de Amarna revelam governantes locais suplicando por auxílio contra vizinhos, pedindo ouro, tropas, proteção. A dependência era explícita. E, no entanto, essa submissão constante moldou o imaginário israelita de forma decisiva. O Egito tornou-se o arquétipo da dominação, a metáfora primordial do cativeiro. Todo império futuro — Assíria, Babilônia, Roma — seria reinterpretado à luz dessa primeira experiência. A libertação de Israel não é apenas um evento fundador: é um mito trans-histórico, aplicável a cada nova situação de opressão.
É crucial notar que a religião israelita não surge pronta. Os primeiros altares encontrados na região mostram culto a divindades diversas, inclusive à deusa Asherah. Javé, o Deus que mais tarde se tornaria único, era provavelmente apenas uma divindade entre outras, talvez de origem edomita ou madianita, ligada ao deserto meridional. A unificação religiosa foi lenta, e só ganhou força em períodos de crise — sobretudo durante o Exílio Babilônico, séculos depois. O monoteísmo, longe de ser um dado inicial, foi uma invenção progressiva, nascida da experiência de derrota.
É nesse contexto que o Tanakh deve ser lido. Os livros mais antigos — como parte de Juízes ou as primeiras narrativas sobre Samuel — são ecos de uma época em que a identidade israelita ainda era fragmentária. Não descrevem um império em ascensão, mas uma coleção de tribos tentando se articular diante de ameaças externas. O drama incessante de reis bons e maus, alternando prosperidade e ruína, é a forma literária de dar coesão a uma história marcada por descontinuidade.
A arqueologia, ao contrário, mostra que Judá e Israel foram sempre pequenos, constantemente sujeitos ao poder alheio. Jerusalém, no século X a.C., era uma vila modesta, incapaz de sustentar os templos suntuosos descritos em Reis. Samaria, capital do reino do norte, era mais expressiva, mas ainda assim periférica. A Bíblia, com sua retórica de grandeza, é menos uma fotografia e mais um espelho invertido: quanto mais frágil a realidade, mais grandiosa a narrativa.
O colapso da Idade do Bronze, portanto, não é apenas pano de fundo. Ele é a condição de possibilidade da memória bíblica. Sem o vácuo deixado pela queda dos impérios, não haveria espaço para o surgimento de Israel. Sem a alternância entre dominação e sobrevivência, não haveria narrativa de eleição divina. A identidade israelita nasce das ruínas — não apenas das ruínas materiais, mas das ruínas de certezas, das falências sucessivas que marcam a região.
Na história, raramente os grandes impérios deixam herança duradoura. Seus monumentos desmoronam, suas cidades são soterradas. O que permanece é muitas vezes a voz dos povos menores, cuja única arma foi o texto. É o caso de Israel. É o caso da Bíblia. O triunfo da escrita sobre a espada não é romântico: é a ironia objetiva da história.
Se a Estela de Merneptah nos mostra Israel reduzido a nota de rodapé na crônica egípcia, e o colapso da Idade do Bronze nos revela sua sobrevivência marginal, é apenas nos séculos seguintes que percebemos a dimensão do paradoxo: de povos que jamais foram protagonistas da geopolítica, nasceu a narrativa que moldaria a consciência religiosa do Ocidente. O Tanakh, compilado entre 600 e 100 a.C., não é um simples repositório de mitos locais; é o testemunho da capacidade humana de converter derrota em vocação, catástrofe em revelação.
A alternância entre os reinos de Israel e Judá, descrita com obsessão nos livros históricos, é mais que um registro de monarcas sucessivos. É a dramatização de uma visão do tempo. O ciclo repetitivo — um rei justo prospera, seu sucessor ímpio leva o povo à ruína, um reformador surge, e logo tudo se repete — expressa uma filosofia da história que é, simultaneamente, desesperada e pedagógica. Nada de linearidade, nada de progresso. Apenas uma sucessão de quedas e restaurações, em que a fidelidade a Deus é a única variável capaz de alterar o curso dos acontecimentos.
Essa concepção não pode ser entendida fora do contexto político. Israel e Judá eram, no melhor dos cenários, vassalos tolerados. Sob a sombra de impérios como a Assíria e a Babilônia, a experiência cotidiana era a da impotência. O exílio de 586 a.C., com a destruição de Jerusalém e a deportação para a Babilônia, foi apenas o ponto culminante de uma longa série de humilhações. Mas é neste momento, paradoxalmente, que o monoteísmo se afirma de modo decisivo. O que poderia ter sido a extinção de uma cultura transformou-se em sua consagração: se um único Deus controla toda a história, então até mesmo a derrota se torna sinal de eleição.
Aqui está o núcleo da originalidade israelita: a transformação da fragilidade em vocação teológica. Para os gregos, a história era um ciclo natural; para os romanos, uma sucessão de conquistas. Para Israel, era a pedagogia de um Deus que punia e recompensava. A contingência foi transfigurada em providência. O acaso tornou-se narrativa.
Mas essa narrativa não permaneceu estática. O Tanakh é um corpus profundamente plural. Seus livros variam da rigidez normativa de Deuteronômio à melancolia cética de Eclesiastes, do tribalismo feroz de Josué à compaixão universal de Jonas. O que chamamos de Bíblia é, na verdade, uma polifonia de épocas e experiências: textos escritos em tempos de isolamento rural, outros em contextos cosmopolitas do período persa ou helenístico. O mesmo povo que, em seus primeiros escritos, celebrava a destruição de inimigos, mais tarde compôs poemas eróticos como o Cântico dos Cânticos, narrativas novelescas como Ester e Daniel, e reflexões sobre a vaidade da existência.
Essa diversidade é inseparável das circunstâncias históricas. Em tempos de ameaça, a lei se endurece: Levítico e Números codificam fronteiras rígidas. Em tempos de convivência imperial, surgem perspectivas mais cosmopolitas: Jonas anuncia um Deus que se compadece até de Nínive, a cidade inimiga. O Tanakh é, portanto, um palimpsesto de respostas históricas, cada texto registrando a adaptação a novas condições de sobrevivência.
O universalismo cristão, que mais tarde ampliaria esses escritos, não foi uma traição, mas uma continuidade. Quando os seguidores de Jesus reinterpretaram o Tanakh como prenúncio de sua vinda, estavam prolongando a lógica já presente: a capacidade de reescrever a própria tradição à luz da catástrofe. Se o exílio babilônico havia sido lido como castigo divino, a crucificação tornou-se igualmente sinal de eleição. A mesma gramática da derrota deu forma à teologia cristã.
O que aprendemos, ao observar essa trajetória, é que a história não é feita apenas pelos fortes. Impérios constroem estradas, ergem muralhas, acumulam tesouros. Mas o que sobrevive são as narrativas dos que perderam — porque apenas os que perdem necessitam dar sentido à perda. O Tanakh é a mais impressionante elaboração desse mecanismo: a conversão da impotência em destino.
Canaã nunca foi um centro imperial. Sempre foi fronteira, encruzilhada, território disputado. Mas é precisamente essa condição periférica que lhe permitiu produzir um texto de alcance universal. Do vale estreito entre impérios, nasceu uma literatura que atravessou o tempo, transportada da sinagoga à igreja, da madrassa ao seminário, traduzida em centenas de línguas, reinterpretada em incontáveis tradições.
No fim, a lição de Canaã é menos sobre teologia e mais sobre a condição humana. A história é instável, os impérios são transitórios, a força política é passageira. Mas a necessidade de significar a perda é permanente. O povo que escreveu o Tanakh não sobreviveu porque era poderoso, mas porque transformou sua vulnerabilidade em memória. A Bíblia é o testemunho de que a fragilidade pode ser mais duradoura que a força.
Assim, ao estudarmos os pequenos reinos de Israel e Judá, não nos aproximamos apenas de uma arqueologia perdida. Aproximamo-nos de uma verdade incômoda: a história do mundo é, em grande parte, escrita pelos derrotados. Os vencedores deixam monumentos; os vencidos deixam narrativas. E, em última análise, são as narrativas que moldam o imaginário das gerações.
Epílogo
Quando hoje abrimos o Tanakh, não encontramos apenas ecos de guerras antigas ou de rivalidades tribais. Encontramos a expressão mais poderosa de uma experiência humana universal: viver sob a sombra de forças maiores, sentir-se insignificante diante do curso dos acontecimentos, e, ainda assim, acreditar que existe um sentido. Essa crença, ilusória ou não, foi a herança mais duradoura de Canaã.
A estela de Merneptah anunciou o fim de Israel. A Bíblia transformou esse fim em início. A ironia permanece: aquilo que o faraó proclamou extinto tornou-se, contra toda expectativa, o fio condutor da imaginação ocidental.Se a Estela de Merneptah nos mostra Israel reduzido a nota de rodapé na crônica egípcia, e o colapso da Idade do Bronze nos revela sua sobrevivência marginal, é apenas nos séculos seguintes que percebemos a dimensão do paradoxo: de povos que jamais foram protagonistas da geopolítica, nasceu a narrativa que moldaria a consciência religiosa do Ocidente. O Tanakh, compilado entre 600 e 100 a.C., não é um simples repositório de mitos locais; é o testemunho da capacidade humana de converter derrota em vocação, catástrofe em revelação.
A alternância entre os reinos de Israel e Judá, descrita com obsessão nos livros históricos, é mais que um registro de monarcas sucessivos. É a dramatização de uma visão do tempo. O ciclo repetitivo — um rei justo prospera, seu sucessor ímpio leva o povo à ruína, um reformador surge, e logo tudo se repete — expressa uma filosofia da história que é, simultaneamente, desesperada e pedagógica. Nada de linearidade, nada de progresso. Apenas uma sucessão de quedas e restaurações, em que a fidelidade a Deus é a única variável capaz de alterar o curso dos acontecimentos.
Essa concepção não pode ser entendida fora do contexto político. Israel e Judá eram, no melhor dos cenários, vassalos tolerados. Sob a sombra de impérios como a Assíria e a Babilônia, a experiência cotidiana era a da impotência. O exílio de 586 a.C., com a destruição de Jerusalém e a deportação para a Babilônia, foi apenas o ponto culminante de uma longa série de humilhações. Mas é neste momento, paradoxalmente, que o monoteísmo se afirma de modo decisivo. O que poderia ter sido a extinção de uma cultura transformou-se em sua consagração: se um único Deus controla toda a história, então até mesmo a derrota se torna sinal de eleição.
Aqui está o núcleo da originalidade israelita: a transformação da fragilidade em vocação teológica. Para os gregos, a história era um ciclo natural; para os romanos, uma sucessão de conquistas. Para Israel, era a pedagogia de um Deus que punia e recompensava. A contingência foi transfigurada em providência. O acaso tornou-se narrativa.
Mas essa narrativa não permaneceu estática. O Tanakh é um corpus profundamente plural. Seus livros variam da rigidez normativa de Deuteronômio à melancolia cética de Eclesiastes, do tribalismo feroz de Josué à compaixão universal de Jonas. O que chamamos de Bíblia é, na verdade, uma polifonia de épocas e experiências: textos escritos em tempos de isolamento rural, outros em contextos cosmopolitas do período persa ou helenístico. O mesmo povo que, em seus primeiros escritos, celebrava a destruição de inimigos, mais tarde compôs poemas eróticos como o Cântico dos Cânticos, narrativas novelescas como Ester e Daniel, e reflexões sobre a vaidade da existência.
Essa diversidade é inseparável das circunstâncias históricas. Em tempos de ameaça, a lei se endurece: Levítico e Números codificam fronteiras rígidas. Em tempos de convivência imperial, surgem perspectivas mais cosmopolitas: Jonas anuncia um Deus que se compadece até de Nínive, a cidade inimiga. O Tanakh é, portanto, um palimpsesto de respostas históricas, cada texto registrando a adaptação a novas condições de sobrevivência.
O universalismo cristão, que mais tarde ampliaria esses escritos, não foi uma traição, mas uma continuidade. Quando os seguidores de Jesus reinterpretaram o Tanakh como prenúncio de sua vinda, estavam prolongando a lógica já presente: a capacidade de reescrever a própria tradição à luz da catástrofe. Se o exílio babilônico havia sido lido como castigo divino, a crucificação tornou-se igualmente sinal de eleição. A mesma gramática da derrota deu forma à teologia cristã.
O que aprendemos, ao observar essa trajetória, é que a história não é feita apenas pelos fortes. Impérios constroem estradas, ergem muralhas, acumulam tesouros. Mas o que sobrevive são as narrativas dos que perderam — porque apenas os que perdem necessitam dar sentido à perda. O Tanakh é a mais impressionante elaboração desse mecanismo: a conversão da impotência em destino.
Canaã nunca foi um centro imperial. Sempre foi fronteira, encruzilhada, território disputado. Mas é precisamente essa condição periférica que lhe permitiu produzir um texto de alcance universal. Do vale estreito entre impérios, nasceu uma literatura que atravessou o tempo, transportada da sinagoga à igreja, da madrassa ao seminário, traduzida em centenas de línguas, reinterpretada em incontáveis tradições.
No fim, a lição de Canaã é menos sobre teologia e mais sobre a condição humana. A história é instável, os impérios são transitórios, a força política é passageira. Mas a necessidade de significar a perda é permanente. O povo que escreveu o Tanakh não sobreviveu porque era poderoso, mas porque transformou sua vulnerabilidade em memória. A Bíblia é o testemunho de que a fragilidade pode ser mais duradoura que a força.
Assim, ao estudarmos os pequenos reinos de Israel e Judá, não nos aproximamos apenas de uma arqueologia perdida. Aproximamo-nos de uma verdade incômoda: a história do mundo é, em grande parte, escrita pelos derrotados. Os vencedores deixam monumentos; os vencidos deixam narrativas. E, em última análise, são as narrativas que moldam o imaginário das gerações.
As escolas literárias são frequentemente apresentadas como um esforço humano de ordem: categorias, gavetas, linhas de sucessão. Cada movimento seria uma janela para a realidade, um modo de olhar mais penetrante que o anterior. A ilusão é a mesma que atravessa a filosofia e a política: a de que podemos arrumar a experiência humana em esquemas, como quem organiza livros em prateleiras.
Mas a literatura, como a vida, não cabe em rótulos. Tolstói, Dostoiévski, Machado — todos transbordam as molduras em que críticos tentaram fixá-los. O impulso de classificá-los não é diferente da mania moderna de reduzir sociedades e indivíduos a teorias: progresso, razão, revolução. Tudo são narrativas que prometem clareza, quando o que existe, na verdade, é apenas um turbilhão de desejos, ilusões e derrotas.
O realismo se tornou notável justamente por recusar a mentira romântica da grandeza. Mas ele não escapa ao destino que atinge qualquer doutrina literária: também se converte em um estilo de ilusão. Emma Bovary não é apenas um retrato da condição humana — ela é a encenação, em forma de romance, de uma verdade que o próprio Flaubert quis enxergar. Rubião, Liévin, Raskólnikov: todos refletem menos um “diagnóstico” sobre a vida do que a tentativa, sempre provisória, de encontrar sentido na desordem que nunca se fecha.
A suposta “redenção” dos personagens realistas, quando ocorre, não é senão a resignação a uma vida que não oferece justificativa. Liévin encontra paz no cotidiano porque não há outro lugar para encontrá-la. Raskólnikov abraça sua culpa porque não existe redenção fora da aceitação da própria miséria. O realismo não revela um caminho, apenas encena a ausência de qualquer horizonte seguro.
Essa é talvez sua maior proximidade com a vida: não o fato de ser fiel ao “real”, mas de mostrar que o real é incoerente, contraditório e sem promessa de reconciliação. A ironia do narrador realista não é um recurso estilístico, mas uma maneira de lidar com a impossibilidade de qualquer certeza.
A literatura, quando mais honesta, confirma o que todas as tradições filosóficas esquecidas já sabiam: não há progresso no humano, não há pureza a ser descoberta, não há chão firme. Se ainda buscamos nas escolas literárias algum aprendizado, ele é o de que nenhuma escola nos salva. O que resta são histórias — tentativas frágeis de dar forma ao que, no fundo, não tem forma.
O pacto do realismo, portanto, não é o da franqueza, mas o do desengano. Ele nos convida a abandonar a esperança de que a arte, a política ou a razão ofereçam respostas finais. E ao fazer isso, paradoxalmente, liberta-nos: não para viver melhor, mas para viver sem ilusões desnecessárias.
Uma das ilusões mais persistentes da era digital é a de que nos tornamos mais comunicativos. Nunca houve tanto discurso, nunca houve tanta exposição do eu. Mas a proliferação de palavras, imagens e confissões não é sinônimo de proximidade. Ela pode significar o contrário: uma multiplicação de máscaras.
As redes sociais não são um espaço de revelação, mas de encenação. O sujeito digital é um ator em tempo integral, obrigado a compor incessantemente a própria persona. O que chamamos de “expressão pessoal” é, na maioria das vezes, uma coreografia de sinais: a foto editada, a opinião calculada, a indignação performática. Não se trata de comunicação, mas de publicidade. O que se anuncia não é o eu real, mas o eu desejável — uma ficção íntima cujo valor se mede em aprovação.
Essa cultura da autoimagem opera segundo uma lógica terapêutica. Já não se trata de buscar a verdade sobre si mesmo, mas de administrar afetos. O sofrimento deve ser narrado, mas de modo que produza reconhecimento e empatia. A dor se converte em capital simbólico, uma moeda de troca no mercado da atenção. A vulnerabilidade é estilizada, estetizada, posta em circulação. Não se sofre em silêncio; sofre-se para ser visto.
Esse deslocamento é sintoma de algo maior. A vida moral, que supunha a existência de critérios objetivos — o bem, o justo, o verdadeiro — foi substituída por uma retórica da sensibilidade. O que importa não é o que é certo, mas o que “me faz sentir mal”. O que importa não é a realidade, mas a intensidade da reação subjetiva. A consequência é um enfraquecimento do juízo: toda crítica é percebida como ofensa; toda divergência, como violência. O espaço público se converte em palco de feridas expostas, mas raramente em arena de ideias.
Não é por acaso que o narcisismo esteja no centro desse regime cultural. Narcisismo não no sentido vulgar de vaidade, mas como uma condição em que o sujeito só existe através do olhar do outro. A aprovação é o oxigênio da identidade. E, como todo oxigênio, quanto mais se respira, mais se depende dele. O resultado é fragilidade: basta a ausência de aplauso para que se instale o ressentimento.
A cultura terapêutica promete cura, mas apenas intensifica a ferida. Pois há dores que não podem ser eliminadas por técnicas emocionais ou por encenações digitais. A mortalidade, a solidão, a perda, o fracasso — esses elementos não negociáveis da condição humana resistem a qualquer estética de autoajuda. A encenação talvez adie o confronto, mas não o dissolve. O mal-estar retorna, sempre.
Não se trata de negar a necessidade de consolo, mas de recuperar a consciência de que nem todo consolo é verdadeiro. A estética da vitimização, ao transformar cada dor em espetáculo, nos impede de reconhecer a dimensão trágica da vida. A tragédia não se resolve com curtidas. Ela exige outra disposição: silêncio, pensamento, talvez até uma dignidade que não precisa ser vista.
O perigo maior é que, ao dissolver a vida moral em autoimagem, perdemos também a capacidade de distinguir aparência e substância. A linguagem é corroída; as palavras se tornam slogans; a verdade, apenas opinião. O mundo se fragmenta em bolhas de emoção simultâneas, onde cada grupo valida apenas a sua própria sensibilidade. Nesse cenário, a censura não aparece como imposição autoritária, mas como consequência inevitável: o que fere meu sentimento deve ser suprimido.
O que vemos, portanto, não é liberdade, mas confinamento. Não uma cultura mais plural, mas mais frágil. O excesso de eu produz a ausência do outro. O excesso de opinião dissolve a possibilidade de juízo. A catarse terapêutica substitui a reflexão moral.
A atitude realmente subversiva, neste contexto, não é exibir mais emoções ou multiplicar confissões. É recusar a encenação. É recuperar o valor da interioridade, que não se publica, não se negocia, não se vende. É aceitar que há dor que não se converte em performance, que há verdade que não cabe em opinião.
A cultura digital nos ensinou a viver diante de um espelho. Talvez seja hora de quebrá-lo.
Há uma tentação permanente em toda cultura: a de reduzir a complexidade da experiência humana a uma fórmula. A “jornada do herói” de Joseph Campbell é uma dessas fórmulas que seduzem porque parecem explicar tudo, quando na verdade funcionam sobretudo como dispositivos de controle. Trata-se menos de uma descoberta sobre mitos universais do que de uma cristalização moderna do desejo por coerência — esse vício ocidental de transformar vida em esquema, em roteiro, em mapa.
O fato de a publicidade ter encontrado na jornada seu alicerce narrativo não é acidente; é destino. A fórmula campbelliana, com seus doze passos, foi inventada para ser apropriada. O capitalismo não tem interesse por narrativas singulares, mas por narrativas previsíveis, intercambiáveis, que se encaixem em ciclos de consumo. O herói sai de casa, enfrenta provas, retorna transformado — e no intervalo compra um carro, uma calça jeans, um sorvete de marca italiana fictícia. O mito convertido em clichê serve para eliminar o que há de mais perturbador na experiência: sua abertura, seu risco, sua resistência à codificação.
A verdadeira violência da jornada não está no fato de ser usada para vender produtos, mas no modo como coloniza nossa imaginação. Ela instala no leitor e no espectador uma expectativa de virada, de turning point, como se toda vida só adquirisse sentido na medida em que se organiza em torno de um acontecimento decisivo. Essa dramaturgia forçada nos torna incapazes de ver o valor do que não muda, do que permanece, do que falha em se transformar. Beckett é um antídoto: seus personagens esperam, repetem, hesitam, e ao fazê-lo revelam que também há grandeza no não-evento, no intervalo, no silêncio.
O turning point, quando existe, não se anuncia. Ele não é iluminado por holofotes narrativos. Pode ser um tropeço, um telefonema, uma recusa, um olhar. A mudança é ordinária — e, justamente por isso, intolerável. A jornada do herói oferece o consolo de que a transformação será assimilável, que o protagonista voltará ao lar, ainda que “diferente”. Mas a experiência real da mudança raramente nos devolve ao lar. Ela nos desterra.
Ao adotar a jornada como medida universal da narrativa, nossa cultura perdeu sensibilidade para outras formas. Para o fragmento, para o esboço, para a história em que nada acontece. Perdemos também a capacidade de ler sem projetar um destino sobre o texto. Tudo precisa evoluir, avançar, ter clímax e resolução. Como se a literatura não fosse também o espaço da suspensão, da ambiguidade, do inacabado.
O que está em jogo, afinal, não é apenas a integridade da narrativa, mas a integridade da imaginação. A domesticação da mudança em doze passos é uma forma de nos proteger daquilo que mais tememos: a descontinuidade radical entre o antes e o depois. O mito deveria nos confrontar com essa descontinuidade. Em vez disso, é utilizado para domesticá-la.
É preciso resgatar a mudança do cativeiro da jornada. Isso não significa negar sua potência simbólica, mas recusar sua tirania. Devemos recuperar a percepção de que o instante decisivo pode ser banal, irreconhecível, até mesmo invisível. Que não existe necessariamente catarse, lição, retorno. Que o turning point pode ser apenas o silêncio que permanece, ou a ausência de virada.
A arte, se quiser permanecer vital, precisa defender a experiência contra o esquema. Precisa preservar a opacidade da vida, o imprevisto, o que não se encaixa. Em última instância, precisamos de menos heróis — e de mais histórias que nos deixem perplexos diante daquilo que muda sem anúncio, e daquilo que, contra toda expectativa, permanece.
Quando leio o texto do Sushi POP sobre os oitenta anos do pesadelo nuclear (recomendo muito o blog para os interessados em cultura pop japonesa), não consigo pensar apenas na história como sucessão de eventos. Hiroshima e Nagasaki não são episódios isolados; são manifestações daquilo que a humanidade sempre foi: uma espécie capaz de criar maravilhas técnicas e, ao mesmo tempo, de convertê-las em instrumentos de extermínio.
O artigo recorda com clareza que o Japão, em 1945, já estava mergulhado em atrocidades, e que as bombas não atingiram um povo inocente no sentido histórico. Mas civis — sempre eles — pagaram o preço. Isso me parece inevitável, não por algum destino cósmico, mas porque as sociedades humanas sempre se estruturaram sobre sacrifícios. A guerra moderna não inventou o massacre dos inocentes, apenas lhe deu uma escala inédita e uma frieza maquínica.
Os que acreditam que Hiroshima representa um ponto de virada moral se iludem. O horror não ensinou nada de novo. Mostrou apenas o que já sabíamos: que a razão e a técnica não libertam a humanidade de sua violência, apenas a tornam mais eficiente. É essa a lição mais perturbadora — e é por isso que preferimos acreditar em narrativas de progresso e aprendizado.
O ensaio do Sushi POP, escrito pelo meu amigo Alexandre Nagado, tem o mérito de não cair na tentação da absolvição fácil. Relembrar que os japoneses cometeram crimes não significa justificar sua aniquilação. Mas também não se deve romantizar as vítimas. A história não se organiza em lados morais claros; ela se repete em padrões de poder, orgulho e medo. O Bushidô japonês, com sua exaltação da morte, não é menos irracional do que a fé americana na bomba como símbolo de triunfo.
O que a memória de Hiroshima me diz, oitenta anos depois, não é que devemos evitar repetir o erro — porque a humanidade não aprende dessa forma. Ela me diz apenas que somos incapazes de viver sem repetir. As armas nucleares continuam entre nós, e nada garante que não serão usadas novamente. Os tratados, as instituições, as intenções de paz, tudo isso é precário. A espécie humana sobrevive não porque seja sábia, mas porque tem sorte.
Lembrar Hiroshima e Nagasaki é lembrar que a sorte não dura para sempre. Mas também é aceitar que não temos outra condição além dessa: viver sob a sombra de destruições que nós mesmos inventamos. Ao contrário do que se costuma pensar, não há promessa de redenção nesse conhecimento. Apenas uma espécie de lucidez amarga: a de que seguimos existindo como sempre existimos, criaturas engenhosas, violentas, frágeis — e mortais.
A crença de que a história avança por inovações radicais é um mito moderno — tão mítico quanto qualquer teologia que a modernidade afirma ter deixado para trás. O que mudou não foi a natureza humana, mas o vocabulário com que descrevemos suas repetições.
A inovação não é uma força libertadora que nos leva a um mundo melhor. É apenas uma fase previsível do ciclo humano de imitação e rivalidade. Sociedades tradicionais temiam a mudança porque viam nela a semente da desordem; sociedades modernas a cultuam porque esqueceram o que o medo queria preservar. Mas em ambas as formas, a lógica é a mesma: seguimos modelos que julgamos superiores, e competimos para superá-los.
A economia de mercado apenas formalizou essa repetição. Empresas “inovadoras” não surgem do nada; começam imitando quem teve sucesso. Só depois, e quase sempre por acidente, aparecem as pequenas diferenças que chamamos de invenções. O mesmo acontece na cultura. A Alemanha industrial copiou a Inglaterra antes de superá-la. O Japão pós-guerra copiou o Ocidente antes de exportar sua própria tecnologia. Coreia e Taiwan repetem o mesmo script. A “criação pura” é uma ficção útil para o marketing.
O que a cultura moderna chama de “inovação absoluta” — ruptura total com o passado — não é mais criativa do que a recusa medieval de mudar. São apenas maneiras distintas de encenar a mesma necessidade mimética, com a diferença de que a modernidade finge que não está imitando ninguém. Nietzsche tornou-se o modelo supremo da recusa de modelos; a vanguarda transformou a “ruptura” em um hábito previsível.
Não existe retorno a uma tradição perdida que pudesse curar essa compulsão, mas também não existe destino final para onde a “novidade” nos conduza. A inovação não é um caminho para a salvação, seja divina ou secular — é apenas mais um episódio no jogo interminável de cópia, variação e esquecimento.
Se há algo a aprender com isso, é que as grandes expectativas associadas ao “novo” são ilusões recorrentes. A história da inovação não é a marcha do progresso humano, mas o registro das maneiras engenhosas pelas quais repetimos velhos gestos com novas ferramentas. O resto é propaganda — e a propaganda, como sempre, é excelente em se vender como novidade.
Li A Visão das Plantas de Djaimilia Pereira de Almeida como se percorresse um jardim que não é meu. E, como em todo jardim, há uma promessa tácita: a de que nele encontrarei ordem, sentido e consolo. Mas essa promessa, percebo logo, é apenas mais uma forma da ilusão humana que denunciei em textos anteriores: a de que o mundo existe para responder às nossas inquietações.
Celestino, o capitão negreiro convertido em jardineiro, não busca redenção. O que ele busca — e não o confessa — é um pacto de silêncio. O jardim é cúmplice porque as plantas não têm moral. Elas não exigem explicações, não distribuem perdões. A primeira metáfora que o livro me oferece é, assim, corrosiva: a natureza não se curva ao peso de nossa culpa. Ela floresce indiferente, como sempre fez, e nós insistimos em ver nisso um gesto de compaixão.
A moralidade humana é uma peculiaridade evolutiva sem relevância para o cosmos. O livro de Djaimilia encena essa tese com a precisão de uma alegoria não-intencional: a vida vegetal prospera sobre a terra encharcada de sangue com o mesmo vigor com que prospera sobre a terra limpa. A segunda metáfora, então, é um espelho sujo — não pela lama, mas pelo reflexo que nos devolve sem retoques heroicos.
A cegueira de Celestino é outro ponto em que me detenho. Não apenas a cegueira física, mas a recusa em enxergar que seu jardim repousa sobre o mesmo mundo que ele ajudou a devastar. Essa é a terceira metáfora: a capacidade humana de criar bolhas de sentido para sobreviver à própria história. Não é esquecimento; é um tipo de adaptação comparável à fototropia das plantas — viramo-nos para a luz, ignorando o apodrecimento atrás de nós.
O título, A visão das plantas, sugere uma perspectiva não-humana. Tal perspectiva é inacessível a nós. Podemos imaginá-la, mas apenas como exercício poético. As plantas “veem” sem consciência; registram o mundo sem projetar nele narrativas. Sua visão não distingue entre crime e inocência, e é exatamente essa neutralidade que a torna insuportável para o nosso desejo de sentido.
No fundo, o jardim de Celestino é uma fábula invertida. Nele, a beleza não compensa a violência; apenas a sucede. É uma estética construída sobre o esquecimento voluntário. O erro, aqui, é acreditar que essa estética é um caminho para a salvação. O ser humano é apenas uma espécie entre outras, destinada a desaparecer como todas as demais. As plantas continuarão a crescer muito depois de termos desaparecido, assim como cresceram antes de surgirmos.
A metáfora final do livro é, para mim, o próprio limite da metáfora: o instante em que percebemos que nada, no olhar das plantas, se destina a nós. Toda a nossa moralidade, arte e história cabem apenas no estreito recinto humano. Fora dele, reina a indiferença — não como um castigo, mas como o estado natural das coisas. E é nesse reconhecimento que, paradoxalmente, encontro um raro tipo de paz: a liberdade de saber que não precisamos — e talvez não possamos — ser perdoados.
Samuel Beckett nunca buscou consolar. Nascido em Dublin em 1906, testemunhou duas guerras mundiais, a ascensão e a queda de ideologias que prometeram a redenção da humanidade e o triunfo do progresso. Trabalhou com James Joyce em Paris, mas ao contrário do mestre, que via na linguagem um terreno para celebração e exuberância, Beckett preferiu despir as palavras até o osso, reduzindo-as a gestos de sobrevivência.
Esperando Godot (1953) é frequentemente descrito como uma peça sobre a espera por um messias que nunca chega. Mas essa leitura simplifica demais o que Beckett constrói. Vladimir e Estragon, figuras sem passado claro e sem futuro possível, não esperam apenas por alguém; esperam por uma interrupção, por uma prova de que a existência não é apenas o arrastar dos dias. Godot, cujo nome ecoa “God”, mas também “goddamn” e “forgot”, é um significante vazio. Sua ausência é mais eloquente do que qualquer presença poderia ser. A peça não denuncia a falta de sentido da vida; mostra que essa falta de sentido é a própria condição humana.
Muitos críticos tentaram vincular Godot à teologia cristã ou ao existencialismo de Sartre e Camus. Mas Beckett não oferece nem o conforto da revolta heroica nem o consolo da graça. Ele apresenta algo mais nu: a constatação de que a vida não precisa de um significado para continuar. Os personagens discutem partir, enforcar-se, ou simplesmente ficar. E no fim, não fazem nada. A peça termina como começa: com a espera. Isso não é um círculo vicioso, mas um retrato fiel de nossa rotina ontológica. A maior parte da humanidade vive assim — esperando algo que nunca se cumpre, mas incapaz de desistir.
O que torna Beckett tão desconcertante é que ele não nos oferece nenhuma saída. Não há redenção, nem no sofrimento, nem na memória, nem na arte. Mas, paradoxalmente, é dessa recusa que surge uma forma de catarse. Ao expor a espera como o núcleo da existência, Beckett nos liberta da ilusão de que precisamos de sentido para suportar a vida. O vazio deixa de ser uma ameaça e se torna um companheiro. A própria repetição, que antes parecia um tormento, passa a ser um consolo silencioso: mesmo sem propósito, a vida prossegue.
Talvez essa seja a lição de Beckett, e por extensão, de Esperando Godot: a esperança é uma ficção tão desgastante quanto a fé em ideologias ou deuses distantes. Mas a vida, despojada dessas expectativas, continua — não porque tenha valor intrínseco, mas porque não precisa de justificativa. E, no fundo, essa aceitação pode ser a única catarse possível: descobrir que o nada, ao invés de nos consumir, pode ser habitado.
O novo livro de Marcelo Leite, A ciência encantada de jurema, chega às livrarias como mais uma tentativa de aproximar dois mundos que não podem ser reconciliados. De um lado, a tradição afro-indígena da jurema, viva em rituais transmitidos por mestres e mestras que a tratam como caminho de cura e memória. Do outro, a ciência moderna, que vê na planta um objeto de investigação, uma molécula a ser isolada e aplicada segundo protocolos.
Não é um encontro. É uma colisão educada.
A ciência não “dialoga” com tradições; ela as traduz para a sua própria gramática. E toda tradução desse tipo é, na verdade, uma substituição. A jurema que entra no laboratório deixa de ser a jurema do terreiro. O que sai do outro lado é um composto psicoativo com potencial terapêutico — útil, patenteável, mas desprovido da teia de significados que o tornava sagrado.
O mito moderno do progresso diz que todo conhecimento pode ser incorporado ao projeto científico, assim como religiões antigas acreditavam que toda alma humana podia ser incorporada à sua salvação. É o mesmo sonho de universalidade, apenas com outro léxico.
Leite conhece os riscos. O livro menciona críticas indígenas ao extrativismo científico, e alerta para o interesse empresarial na N,N-dimetiltriptamina (DMT) da jurema. Mas seu fascínio pelo universo que investiga suaviza o tom. Ficam ausentes algumas das contestações mais recentes, como as que denunciam pesquisas conduzidas sem consulta às comunidades guardiãs desses saberes. É um silêncio revelador: mesmo quando se quer preservar o mistério, o impulso de torná-lo acessível a todos continua sendo mais forte.
Parte da narrativa acompanha a mutação da jurema na cultura global do psicodélico: de rito demorado e comunitário a “ayahuasca fumável” para consumo rápido. É a lógica de nosso tempo: acelerar, intensificar, descartar. Não é degeneração, nem progresso — é transformação irreversível. E o que se perde nesse processo não é mensurável.
O título do livro — A ciência encantada — é, no fundo, uma contradição. A ciência existe para desfazer encantos. Quando tenta preservá-los, acaba apenas criando cópias. O que é arrancado de seu contexto original não sobrevive como era. A cuia que circula num terreiro e o frasco numerado num ensaio clínico não pertencem ao mesmo mundo.
O erro está em acreditar que pertencem.
O que a obra de Leite revela, talvez sem intenção, é que alguns saberes só existem enquanto são guardados, não compartilhados. Não por egoísmo ou ignorância, mas porque seu sentido depende de um mundo que não cabe na nossa ideia de universalidade.
Podemos estudar a jurema. Podemos isolá-la, medi-la, aplicá-la. Mas não podemos traduzi-la sem destruí-la. E se esse destino é inevitável, então a pergunta não é “o que ganharemos com isso?”, mas se ainda conseguimos viver num mundo onde certas coisas permanecem fora do nosso alcance.
A ciência encantada de jurema
A crença na unidade da autoconsciência humana sempre foi uma ilusão conveniente. Durante séculos, culturas diferentes sustentaram a ideia de que cada indivíduo, apesar de viver em meio ao fluxo do tempo, poderia apreender sua vida como uma narrativa coerente. Essa ilusão foi sustentada por mitos, religiões e, mais tarde, por versões seculares do mesmo consolo: o progresso, a razão, a liberdade individual. O que está se desintegrando hoje não é apenas essa narrativa, mas a própria necessidade de fingir que ela pode ser mantida.
O sentido de um “eu” contínuo, capaz de ligar passado, presente e futuro, sempre foi um artifício. Em sociedades que acreditavam em uma ordem eterna — seja a de um Deus ou a de leis morais universais —, o indivíduo podia imaginar-se como parte de algo mais amplo, e sua memória encontrava coerência nesse horizonte. Sem essa moldura, o eu se fragmenta em episódios descontínuos. O que chamamos de “autobiografia” passa a ser apenas uma colagem arbitrária de cenas, ajustadas para satisfazer exigências sociais, terapêuticas ou políticas.
Essa dissolução não é apenas psicológica. Ela tem implicações políticas diretas. Um indivíduo que não consegue conceber sua vida como um todo é mais vulnerável a manipulações. Ele se torna disponível para qualquer narrativa coletiva que prometa sentido, seja uma utopia tecnológica, uma ideologia de identidade ou uma religião política. A fragmentação do eu é, em última análise, uma ferramenta de poder. Não é coincidência que regimes totalitários tenham sempre buscado controlar a memória individual e coletiva. Quando a memória se torna instável, o indivíduo deixa de ter qualquer âncora moral ou histórica que o proteja.
A filosofia moderna acelerou essa erosão. Ao tentar purificar a autoconsciência de tudo que é contingente, produziu um eu abstrato, sem passado, incapaz de se sustentar fora da razão pura. Esse experimento intelectual acabou por corroer o próprio terreno onde a experiência humana podia se enraizar. Mas a dissolução não é apenas culpa de filósofos. Ela é também o produto inevitável de uma civilização que já não acredita em nada duradouro. O mercado, a tecnologia e a política operam como agentes de aceleração: memórias e identidades são descartáveis, reescrevíveis e substituíveis.
Não há retorno ao modelo antigo. Nenhum apelo à tradição ou à transcendência pode restaurar a unidade perdida. O que resta é reconhecer que o eu contínuo foi sempre uma ficção útil, e que agora vivemos sem sequer o consolo dessa ficção. Talvez possamos aprender a lidar com a fragmentação, aceitando que a vida humana não é uma história, mas uma sucessão de instantes cujo sentido é sempre parcial e temporário.
A esperança de um fio condutor pode ter morrido, mas o vazio que ela deixa não precisa ser preenchido por ilusões piores — como a promessa de redenção por sistemas políticos ou a fé ingênua na tecnologia. Se a autoconsciência não pode ser unificada, talvez seja melhor aceitá-la como algo múltiplo e instável, e abandonar de vez a busca por coerência que sustentou tantas mentiras confortáveis.
Não é a literatura brasileira que morreu. É o ser humano que, reduzido ao ruído de suas próprias ficções, esqueceu o que significava ter uma vida interior. A literatura — como tudo que outrora serviu para atenuar o horror de existir — foi apenas mais uma vítima desse processo inevitável. Não há nada de trágico nisso, pois tragédia exige grandeza, e o fim que presenciamos é de uma mediocridade banal. Não é uma queda heroica, mas um apodrecimento silencioso, como o de um corpo esquecido em um quarto fechado.
Allen Tate falava em “comunhão”, em uma experiência que transcendia a utilidade e a propaganda. Mas quem, em pleno século XXI, ainda tem nervos para isso? A comunhão supõe que haja algo para compartilhar além de slogans e ressentimentos. Hoje, não há interioridade, apenas identidades — categorias ocas às quais indivíduos se agarram para evitar o pânico do nada. Esperar que surja literatura num cenário assim é como esperar que vermes componham sinfonias.
O que se chama de literatura, nas vitrines brasileiras e nas suas academias decrépitas, não passa de um produto secundário de uma economia da atenção. Os escritores sobrevivem como cães domesticados, farejando ansiosos o próximo selo de aprovação ideológica. Não escrevem para dizer algo, mas para não dizer nada que possa perturbá-los. Cada frase é calibrada, cada palavra uma moeda em circulação — não para tocar, mas para agradar. Nesse mundo, a “língua de pau” não é uma imposição externa: é a língua nativa, aprendida desde cedo, e falada com prazer por criaturas que jamais experimentaram algo que pudesse feri-las ou engrandecê-las.
A destruição da literatura não é um crime. É apenas uma etapa no declínio da ilusão humana de que somos algo mais que animais de hábitos. Durante séculos, inventamos mitos — religiões, filosofias, obras de arte — para nos proteger do absurdo da existência. Agora, essas construções se desmoronam, não por algum cataclismo moral ou político, mas porque já não há quem as sustente. A perda da comunhão não será sentida porque já não há ninguém capaz de sentir. O vazio substitui a ausência, como a morte substitui a dor.
E, se há algum consolo, ele não está em sonhar com um renascimento, como fazem os otimistas patológicos que ainda escrevem manifestos sobre “a crise da literatura”. Não haverá renascimento, porque não há nada para renascer. O que resta é aceitar que todas as formas de grandeza humana — inclusive a literatura como meio de autoconhecimento — eram apenas mecanismos para negar o que sempre foi evidente: que não há sentido, nem destino, nem profundidade no animal humano.
Talvez, nesse reconhecimento, haja algo como paz. Não uma paz elevada, mas a paz dos ossos, silenciosa e final. Quando aceitamos que nada resta, que a literatura não voltará, que a “comunhão” é um mito já sem uso, a vida pode enfim ser suportada sem esperanças ou ilusões. O que sobra não é transcendência, mas anestesia — o único bálsamo que a natureza, indiferente e cega, concede a seus filhos mais conscientes.