É preciso reconhecer o fim


Quando fui conversar com ela, eu estava me sentindo como o coronel Richard Cantwell – personagem do livro Do outro lado do rio, entre as árvores – tentando se explicar para Renata, a jovem condessa italiana.

Diferentemente da situação descrita nessa história, a minha Renata não era assim tão mais jovem que eu. Mas a proximidade com a morte e o desejo de ter uma última experiência de conexão com outro ser humano me levou a reler esse clássico do Hemingway. Existem livros que retomo de tempos em tempos. Cada nova leitura, uma nova interpretação. Heráclito escreveu que, “não se entra duas vezes no mesmo rio”, eu extrapolo a frase e costumo dizer que não se lê duas vezes o mesmo livro. Eu sei, é brega e pouco original, mas refinamento e originalidade nunca fizeram parte da minha caixa de ferramentas.

Encaixado entre duas de suas obras-primas – Por quem os sinos dobram (1940) e O velho e o mar (1952) –, Do outro lado do rio, entre as árvores foge um bocado da temática constante dos escritos de Hemingway, sempre envolvendo a vida boêmia e literária da Europa, as touradas espanholas e as guerras e suas consequências. Trata-se de um romance que fala do amor de um militar cinquentão, castigado por ferimentos acumulados ao longo de várias batalhas em diversas guerras, por uma jovem de família rica de apenas 19 anos. O cenário é Veneza, e não há como deixar de lembrar de Thomas Mann e seu Morte em Veneza, embora os estilos não se comparem. O texto tem o mesmo vigor das demais obras de Hemingway, com diálogos fortes, frases curtas e diretas. Mas a crítica não entendeu assim, dando o livro como obra menor e banal.

Mas voltemos ao que eu dizia no início desse texto. Lá fui eu carregando algumas ilusões. Quando comecei a falar, ela encheu-me de perguntas. E tentou justificar suas indagações: “Eu não conheço você. Sinto que não conheço você. Apesar de termos convivido durante certo período, eu não sei quem você é.”

A princípio fiquei um tanto desconfortável com a situação. Considerei a observação um pouco gratuita, mas resolvi analisar o argumento. Era verdade, ela não me conhecia. Não sabia nada sobre mim, não pertencia ao meu mundo. O personagem que eu interpretava no trabalho não era nada parecido comigo. Ela parecia estar com medo, considerando a possibilidade de ter caído numa cilada. Mas eu não fizera promessas, não propusera coisa alguma. O combinado, se é que havia algum combinado, era que um faria companhia para o outro quando fosse conveniente. Ao que parecia, isso não seria mais possível. Fazia muito sentido. Tudo aquilo deveria estar claro para mim desde o início, mas até aquele momento não estava. Mais uma vez a vida me mostrava que a percepção e a maturidade feminina são imbatíveis.

Voltei para casa me sentindo um falsário. Sabendo que o melhor seria seguir em frente e não tomar mais do tempo dela. Sentiria falta daquele abraço e do cheiro dos seus cabelos, mas era preciso ser responsável. A casa vazia e as coisas empacotadas destacavam a percepção de que era o fim. Mas tudo aquilo já havia acontecido e fora registrado na minha história. O que está feito não pode ser desfeito.

J. Fagner

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.