Em um sábado, no Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, três mulheres de diferentes origens se reuniram para um encontro de mundos distintos. A escritora negra Bianca Santana, a atriz e dramaturga judia Clarice Niskier e a autora e educadora indígena Márcia Mura foram convidadas para a mesa “Quando foi que me descobri?”, onde debateram seus diversos processos de descoberta da própria identidade.
Histórias de avós abriram as comportas da emoção. Mura, que nasceu e vive às margens do rio Madeira, no Amazonas, aprendeu sua identidade com a avó que lhe ensinou a ouvir o canto dos pássaros, a navegar pelas águas e andar na floresta. Niskier recordou os últimos instantes de vida da avó, judia e imigrante, que lhe ensinou a amar o Brasil de uma maneira linda e, perto de morrer, encontrou força para cantar “Cidade maravilhosa” com a neta. Santana lembrou dos avós que vieram todos do Nordeste, de regiões da Bahia e Alagoas próximas ao rio São Francisco, terra de muitos povos indígenas e de tradição negra, principalmente quilombola.
As origens diferentes e bem definidas, no entanto, em pouco tempo ficaram para trás. Niskier, que há 17 anos encena sua adaptação para o teatro de “A alma imoral”, um livro do escritor e rabino Nilton Bonder, disse: “A minha identidade é confusa, sou uma judia que foi educada para também ser brasileira”. Ela sempre viveu entre dois mundos: o real e o imaginário, o judaico e o brasileiro, o da poesia e o pragmático.
A discussão se voltou para o questionamento das identidades rígidas, que muitas vezes ignoram as personalidades individuais e a complexidade da vida social. Santana destacou que a identidade não é única, mas composta de muitos fragmentos e está sempre mudando. Ela expressou seu desejo de não ser confinada por uma ideia de negritude, mas de poder se conectar com outras culturas e histórias.
Santana, que é negra de pele clara, compartilhou suas experiências de “passabilidade” durante uma viagem à África, onde foi acolhida como etíope na Etiópia, queniana no Quênia e marroquina no Marrocos. No entanto, ela observou que a experiência de “passabilidade” no Brasil é diferente daquela observada em outros países, como os Estados Unidos. No Brasil, pessoas de sua cor muitas vezes ocupam posições subalternas e são alvo de políticas de extermínio.
Recusar a ideia de identidades fixas não significa, para as convidadas da mesa, renunciar à necessidade de resistência. Mura falou sobre a experiência coletiva de sua comunidade no combate aos invasores de terras indígenas. Ela mencionou a guerra de cem anos que seu povo travou contra exploradores europeus que queriam levar seu cacau originário da Amazônia.
A menção à guerra, em um momento em que o mundo está passando pelos conflitos armados mais destrutivos em décadas, trouxe um reforço do valor do diálogo. Niskier lembrou as palavras de um monge do Sri Lanka que, em meio a um tiroteio no antigo templo budista de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, não interrompeu a sessão de meditação. Ele disse: “você, quando quis paz, porta do tempo aberta. Paz, momento difícil. Senta na estrada pra mato não fechar, estrada da paz aberta”. Isso foi uma lição. Às vezes as bombas estão caindo, podem um dia cair na nossa cabeça, mas se pisarmos na estrada da paz, o mato não fecha. O que a gente está fazendo aqui não é bobagem. Com esse diálogo, a gente está mantendo a estrada da paz aberta."
José Fagner Alves Santos
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