Numa noite distinta, em meio aos luxuosos arredores da Ponta da Praia, em Santos, eu compareci a uma festa sediada na residência de um dos proeminentes produtores de “Seguindo em Frente“. Embora as filmagens dessa produção tenham chegado ao fim meros três meses antes, mal reconhecia em mim o semblante do meu personagem na referida obra. Doze quilos haviam se agregado ao meu corpo, fruto de uma dieta repleta de bifes e donuts, e meu rosto ostentava uma tensão inédita, resultado de uma incessante sucessão de Marlboro e da tentativa de acelerar o ritmo das minhas falas. Sentia-me algo alienado e inadequadamente vestido. O próprio diretor de “Seguindo em Frente” adornava-se com um imaculado terno branco, na companhia de uma jovem que parecia ter a tenra idade de treze anos, em seu braço. Naquele instante, uma convicção desabrochou em minha mente: “Não trabalharei novamente com ele”, ecoou em meus pensamentos, o que, por sua vez, desencadeou um nervosismo imediato, ante a perspectiva de não alcançar os padrões de excelência exigidos para colaborar com qualquer outro profissional. Em busca de um breve refúgio, recorri ao acalento de um cigarro, escondido por detrás de uma sebe de paquissandra.
“Eis Elizabeth”, anunciou ela mesma, quando nossos caminhos se entrelaçaram no trajeto de regresso ao bar. Pronunciava essas palavras como se estivesse aguardando o momento oportuno para proferi-las, como se nossos olhares tivessem se cruzado incessantemente ao longo da noite, embora eu mal a tivesse notado até então. Se não fosse por sua iniciativa, certamente teria passado despercebida aos meus olhos. Contava com vinte e três anos, enquanto eu já ultrapassava a barreira dos vinte e quatro. Firmei-lhe as mãos em um cumprimento, porém, instantaneamente, seu nome escapou-me da memória. “Fui responsável pelas suas vestimentas durante as gravações de ‘Seguindo em Frente'”, elucidou-me. “Costurei suas calças. Estavam excessivamente compridas, então, providenciei um ajuste na bainha, acrescentando um centímetro.” As palavras que proferia não me despertavam grande interesse. “Meia centímetro, para ser mais precisa.”
“Sou-lhe grato. As vestimentas ajustaram-se perfeitamente”, agradeci, embora não compreendesse a relevância da conversa sobre calças. Durante as filmagens de “Seguindo em Frente”, encarnei o papel do filho solitário de um veterano de guerra devastado pelo álcool, envolvido num romance clandestino com a enfermeira de seu pai. As calças permaneceram firmes em minha cintura durante todo o tempo, contudo, jamais prestei-lhes atenção, o que suponho ser a característica distintiva de um bom par de vestuário. Minha mente estava longe de trivialidades durante as gravações de “Seguindo em Frente”, menos ainda em relação a calças, e definitivamente não em mulheres. Ciente de que aquela era minha oportunidade de ingressar no universo cinematográfico, estava determinado a dar o meu melhor.
“Agradeço-lhe imensamente”, repliquei. “Suas palavras são de inestimável significado para mim, verdadeiramente.”
Dediquei-me de forma profissional às minhas obrigações no set de filmagens. A atriz incumbida de dar vida à enfermeira revelou-se excessivamente desagradável comigo. Custou-me um grande esforço conter-me para não confrontá-la. Parecia convencida de sua superioridade, e talvez estivesse certa. Suas falas eram escassas e desinteressantes. Na maioria das vezes, limitavam-se a cenas genéricas em que ela se inclinava sobre o pai enfermo e a momentos de intimidade comigo, cenas estas desprovidas de qualquer faísca de interesse. Todavia, sua presença na tela era cativante. Ela conferiu à personagem uma profundidade singular, valendo-se de seu charme e de expressivos movimentos oculares. Uma artista talentosa, sem dúvida. Acredito que a enfermeira sequer tenha comparecido à festa naquela noite. Caso o tenha feito, evitou-me, o que foi providencial, pois a presença de Elizabeth ao meu lado teria sido perturbadora. A enfermeira era notavelmente bela. Nunca antes contemplara tamanha beleza feminina. Assistir à estreia do filme, meses depois, revelou-se uma experiência penosa, pois grande parte das minhas melhores cenas fora descartada e a dublagem parecia artificial. O filme não alcançou o patamar de excelência esperado. Porém, naquela época, contava com a companhia de Elizabeth.
Após algumas breves considerações sobre as calças, recorri a questionamentos de cunho biográfico, numa tentativa de manter a conversa em andamento, uma vez que um grupo de convidados dava início a uma animada dança, à qual eu não desejava me juntar. Detesto dançar. Considero tal prática humilhante. Prefiro, mil vezes, enfrentar a exposição de utilizar um banheiro diante de uma plateia do que me aventurar na pista de dança. Elizabeth, por sua vez, mantinha-se esbelta e elegantemente ereta, cruzando ocasionalmente os braços sobre o peito. Lembrei-me de uma massagista que, certa vez, discorreu sobre a ciência do toque: “Há uma energia dentro de mim. Às vezes, está viva e ávida. Em outras, está morta. Não transmite nada”. Tal descrição poderia ser aplicada à presença de Elizabeth. Ela era, ao mesmo tempo, marcante e sutil, como uma fina cortina de gaze que, embora protegesse a privacidade, permitia a passagem da luz. Não que ela fosse monótona. Ao contrário, revelava-se perspicaz. Compartilhou comigo detalhes sobre seus pais, proprietários de uma lavanderia numa pequena cidade de Minas Gerais. Enquanto a dança atingia um ápice de frenesi, trocamos algumas reflexões sobre nossas origens modestas. Decidimos migrar para um canto mais tranquilo. Nesse ponto, havia desistido de renovar minha bebida. Acessar o bar tornara-se uma tarefa intransponível, tendo em vista o aglomerado de dançarinos que bloqueava minha passagem.
“Minha cidade natal é tão pequena”, partilhou Elizabeth, “que imperava uma espécie de mandamento – quase como um fenômeno. Se alguém fofocasse a respeito de outrem, a pessoa em questão surgiria na esquina em questão de segundos. E, acredite, isso ocorria com uma frequência impressionante.”
“Minha cidade”, eu disse. “Acho que ninguém conhecia ninguém. Todos simplesmente ficavam em suas casas.”
“Você nunca viu seus vizinhos?”
Minha mente buscava uma sensação, e, quando a encontrou, falei sem pensar, um deslize, um pedaço da minha vida anterior escapando para a luz. “Ninguém olhava para mim”, disse. “Porque meu pai era tão bravo e violento. O bairro todo podia ouvi-lo gritar.” Era fácil falar livremente sobre mim para Elizabeth. Não consigo explicar. Ela libertou algo em mim e varreu os cacos. Eu não corava ou piscava os olhos ou fazia qualquer coisa enquanto falava. Estava dizendo coisas que nunca tinha dito antes, e ainda assim não sentia nada. Essa era o poder de Elizabeth. Essa era sua magia. Eu não sentia absolutamente nada perto dela. “Os vizinhos não podiam olhar para mim, porque tinham pena de mim, mas não faziam nada a respeito, então se envergonhavam.”
“Como no filme, de certa forma”, disse Elizabeth. “Em ‘Seguindo em Frente’.”
Foi nesse momento que me apaixonei por ela.
“Sim”, eu disse. “Fico feliz que tenha notado isso. Trouxe muito de mim para o papel.”
“Eu realmente acreditei que você odiava seu pai tanto quanto o amava.”
“Esse era precisamente meu objetivo – habitar essa dualidade.”
“Muitos atores dependem de seu carisma. Apreciei o quanto você foi sincero.”
“Obrigado.”
Ela falava de maneira econômica e eficaz, como se soubesse que quanto menos palavras se usa, maior é seu impacto. Mas ela tinha uma maneira curiosa de segurar o cigarro, não entre o indicador e o dedo médio, como a maioria das pessoas, mas entre o dedo médio e o anelar. O efeito era tal que ela parecia acenar a mão diante do rosto a cada tragada, como se estivesse escondendo sua expressão. A forma como movia os braços me lembrava de uma marionete. Ela retirou seus cílios postiços quando saímos juntos da casa, e ninguém se despediu, ninguém se importou. A música cessou.
Meu carro estava estacionado ao virar da esquina, sob um poste de luz. O som dos nossos sapatos, lembro-me. E o peso de sua mão na minha, tão leve quanto água. As colinas estavam estranhamente silenciosas, como se as estradas ainda pertencessem à natureza. Eu dirigia a velha Picape da minha mãe. Havia buracos no assoalho. Uma vez, encontrei um ninho de rato embaixo do banco. Eu sabia que me casaria com Elizabeth.
“Eu odeio casamentos”, disse a ela.
Isso ainda é verdade. Eu odeio quando dizem: “Se alguém aqui tiver motivo para se opor a este casamento.” Eu sempre tenho vontade de me levantar e gritar: “Isso será o fim de vocês dois! Quando as estrelas colidem, elas formam um buraco negro!” Não sei de onde tirei esse fato, provavelmente de uma revista.
“Não são muito românticos, não é mesmo,” disse Elizabeth.
Paramos para tomar uma torta em um antigo restaurante afastado, já no Gonzaga.
Pode ter havido uma vida melhor para mim se a mulher com quem me casei fosse mais interessante. Mas sei por que a escolhi, é claro. Ela era, como um jornalista colocou, “uma coisa brilhante em branco” em meu braço. Ela não brilhava demais. Não era uma distração. Ela entendia que eu precisava de um espaço limpo ao meu redor, um lugar vazio onde pudesse ouvir meu eco contra as paredes. Essa era Elizabeth: ela era meu vazio.
José Fagner Alves Santos
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